domingo, dezembro 31, 2006

Fim de ano

Eis que se aproxima mais uma transição entre dois estados arbitrariamente definidos pela humanidade. Os judeus já comemoraram, os chineses ainda comemorarão, mas para grande parte dos ocidentais, será hoje. Que nossas moléculas continuem unidas em 2007, formando esses macroagregados corpóreos e produzindo essa sutil oscilação elétrica que insiste em desafiar a segunda lei da termodinâmica! Que o governo desista dessa infeliz idéia de se tornar sócio majoritário de todos os brasileiros e que todos nós possamos, algum dia, comprovar na prática a realidade da utilidade marginal decrescente.

Feliz 2007!

sábado, dezembro 30, 2006

A execução de Hussein foi um erro

A execução de Hussein traz à memória uma cena de “Coração Valente”, dirigido e estrelado por Mell Gibson em 1995. No filme, o escocês William Wallace tem a esposa barbaramente degolada pelo xerife local, após ter agredido um soldado inglês que tentara violentá-la. Wallace rapidamente prepara um contra-ataque, reunindo alguns conterrâneos sedentos de vingança e cansados da opressão inglesa na Escócia. Após invadir a propriedade do xerife, Wallace o captura, encosta-o a um poste e o degola. E é só isso. Wallace, em uma mistura de exaustão, fúria e decepção, permanece olhando, como quem espera que todos aqueles anos de tensão e ódio acumulado escoem junto com o sangue.

Contra a pena de morte sempre há argumentos humanitários, mas esse não parece ser o caso de Hussein, contra quem pesavam acusações muito sérias e irrefutáveis. Mesmo assim, existiam pelo menos duas razões contra a execução dele. A primeira delas é o risco de transformá-lo em mártir.

Em outros tempos e em outras civilizações, um ex-ditador ou guerreiro jamais teria se deixado capturar com vida. O romano Marco Antônio, acusado de traição pelo compatriota Otávio Augusto, tirou a própria vida no fio da espada. Muitos anos antes, o cartaginês Aníbal preferiu ingerir veneno a se deixar capturar pelos romanos. Da mesma forma, nenhum bom samurai hesitaria em cometer harakiri muito antes de ser ameaçado com a pena de morte. Mesmo Hitler, com quem Hussein frequentemente é comparado, agiu de forma mais honrada.

Hussein, por outro lado, parecia desejar a execução, e os iraquianos lhe deram justamente aquilo que ele queria. Morrendo como mártir, colocando-se na condição de vítima e segurando o Corão até pouco antes do instante final, ele deve ter apostado no fato de que sempre existe gente louca o suficiente para seguir um maníaco que mostrou ser capaz de qualquer método de governo.

A segunda razão contra a execução é que, como descobriu o William Wallace do filme, a sede de vingança não pode ser aplacada durante os poucos segundos em que um corpo se debate na forca, agoniza na cadeira elétrica ou em qualquer outro aparelho inventado para tirar vidas. Os parentes das 80 pessoas mortas hoje, depois da execução de Hussein, talvez tenham uma medida mais exata da inutilidade da vingança.

A verdadeira vingança do povo iraquiano teria sido deixar Hussein viver, perpetuamente trancado em uma prisão de segurança máxima, e mostrar que é possível construir um país livre e próspero sem ele. Mas isso é muito difícil. A execução na forca, por outro lado, só exige alguns metros de corda, um cadafalso e dois homens mascarados.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

De Quito a Manaus, nas asas da Ecuatoriana (reminiscências pessoais)

A crise pela qual vem passando o setor brasileiro de aviação civil me lembrou de uma viagem a Quito, capital do Equador, para apresentar um trabalho em um congresso internacional da CIER. Era o ano de 1998, quando o Projeto RE-SEB era jovem, o racionamento de energia estava ainda no futuro e o termo “controlador de vôo” não havia sido incorporado ao vocabulário do brasileiro médio.

O trabalho em questão era “Mudanças Estruturais no Setor Elétrico: Formação e Regulação de Preços”, escrito em conjunto com Paulo Born (que era o primeiro autor, mas, com a gentileza habitual, cedeu-me a oportunidade de fazer a apresentação). Na época, Paulo Born, hoje diretor da Light, estava na ANEEL, cedido pela Copel, e eu estava na Copel. Outro colega da Copel, Renê Bettega (hoje na CPFL), também iria apresentar um trabalho sobre o MRE, então uma novidade no setor. Embarcamos juntos e aproveitei para fazer um esforço financeiro adicional e levar a Sandra, minha esposa.

Era minha primeira viagem de longa distância dentro da América Latina e eu esperava ingenuamente embarcar em um MD-11, os aviões então usados pela VASP em viagens internacionais. Qual não foi minha surpresa ao ver um singelo Boeing 727 taxiando na pista de Guarulhos! Pelo que me lembro, o percurso era Curitiba-São Paulo-Brasília-Manaus-Quito, tudo a bordo de uma lata de sardinhas! Apesar do aperto, a viagem de ida foi tranqüila, com direito a uma vista aérea diurna da selva amazônica, sempre impressionante.

O aeroporto de Quito tem aquele jeitão de rodoviária de cidade pequena, mas não é muito pior do que vários aeroportos de algumas capitais brasileiras, com a diferença dos aviões militares misturados aos aviões civis, que conferem aquele toque de filme de Indiana Jones. O táxi que pegamos para o hotel não tinha taxímetro e o preço foi previamente combinado: cinco dólares. Em um época em que um táxi entre o centro de Curitiba e o aeroporto Afonso Pena não saía por menos de trinta reais, cinco dólares (pouco menos de R$ 6,50, a preços da época) pareciam pouca coisa. Mas a formação de preços no Equador guardava ainda outras surpresas.

Logo na primeira manhã em Quito, ficamos sabendo que, como já esperado, o café da manhã do hotel não era no estilo brasileiro “coma tudo que puder”. Não havia, por exemplo, presunto e queijo. Perguntamos ao garçom por esses itens e ele nos informou que eles seriam cobrados à parte. “Quanto é?” – perguntamos. A resposta: “cinco dólares!” Tudo bem, cinco dólares por uma passagem de táxi é pouco, mas por duas fatias de queijo e duas de presunto, já é demais! Mas o Equador atravessava um período de hiperinflação e, com os preços já informalmente dolarizados (especialmente para turistas), as referências de valores flutuavam bastante.

Chegando ao hotel do congresso, um imprevisto: o secretário brasileiro não havia conseguido chegar a tempo e, por razões que sempre me pareceram um pouco obscuras e tinham a ver com minha reduzida compreensão do espanhol equatoriano, fui escalado para a função. O secretário brasileiro tinha a função de resumir as palestras dos brasileiros, acompanhado de um secretário de língua espanhola. Como o secretário brasileiro nunca apareceu, acabei investido dessa nobre função durante todo o congresso. Em resumo, tive que assistir a todas as palestras brasileiras, até mesmo as que não eram da minha área, e, por uma questão de elegância, também assisti a todas as palestras em espanhol. Não conheci quase nada de Quito, a não ser à noite, mas aprendi um bocado sobre o sistema elétrico de outros países latino-americanos.

No segundo dia, fui almoçar com o Renê no hotel onde estávamos hospedados, pois o restaurante do hotel cinco estrelas do evento ainda era caro demais para nós. Em dada altura, percebi que o Renê estava balançando insistentemente a perna, a ponto dos copos sobre a mesa começarem a balançar também. Olhei para a cortina e notei que ela também estava balançando. “Será que ele está nervoso por causa da palestra que vai dar?” – pensei. Uma fração de segundo depois, notei que o barulho era forte demais para ser provocado por um palestrante nervoso, o que também não explicaria o comportamento dos garçons, que àquela altura já estavam correndo para fora do restaurante. Era um terremoto! Logo depois ficamos sabendo que o tremor havia se iniciado no litoral, perto de Guaiaquil, chegando até Quito com intensidade moderada. Naquele dia fiquei sabendo que muitas coisas da vida, como terremotos e orgasmos, não podem ser plenamente apreciadas da primeira vez em que ocorrem, pois simplesmente não sabemos o que se passa!

O congresso veio e se foi, minha participação foi apenas razoável e, após quatro ou cinco dias de palestras, chegou a hora de voltar para casa. Durante o congresso eu havia conhecido Dorel Soares Ramos, atualmente assistente da diretoria da Bandeirante Energia, experiente em eventos da CIER e em vôos pela VASP/Ecuatoriana. Ele rapidamente sugeriu que recolhêssemos nossas trouxas e nos dirigíssemos ao aeroporto, pois, devido ao grande número de congressistas voltando para o Brasil, havia o risco de overbooking.

A Compañia Ecuatoriana de Aviación, fundada em 1957 por equatorianos e norte-americanos, era a empresa aérea nacional do Equador. Durante os anos 70, os americanos se retiraram da empresa, que foi transformada na Empresa Estatal Ecuatoriana de Aviación, adquirindo rapidamente a reputação de baixa confiabilidade, acumulando atrasos e cancelamentos de vôos. Em 1993, com o arresto de alguns de seus aviões por parte de credores, a empresa encerrou as operações. Dois anos depois, a Ecuatoriana foi comprada pela VASP, que retomou as operações durante cinco anos, vendendo sua participação no ano 2000 para a Lan Chile, que posteriormente a vendeu para o Lloyd Aéreo Boliviano.

Imagine voar por uma empresa pós-falimentar, arruinada por vários anos de corrupção estatal, e que havia sido salva pela VASP! Pela VASP! Os equatorianos são gente boa, muito mais cordiais do que outros povos da América Latina, mas devia ser estressante trabalhar em uma empresa dessas.

Após várias horas de espera no aeroporto, onde pude engraxar meu sapato pela módica quantia de cinco dólares, escapamos do overbooking e finalmente entramos na sala de embarque. Pela janela era possível ver os aviões estacionados na pista e lá estava aquela visão paradisíaca, brilhando sob o sol equatorial, pintada com o logotipo da Ecuatoriana: um McDonnell-Douglas MD-11, um trijato comercial wideboy de longo alcance, com nove fileiras de poltronas e máquina de café espresso! A viagem de volta ao Brasil prometia ser muito mais confortável.

Quando nosso vôo foi chamado, um ônibus estacionou do lado de fora, para nos conduzir até o avião (ou “aeronave”, como eles insistem). Embarcamos no ônibus e, quando já havíamos percorrido um trecho do trajeto, notamos um funcionário do aeroporto correndo atrás do ônibus e gritando algo incompreensível. Depois de alguns momentos de confusão, fomos informados que aquele ônibus deveria conduzir os passageiros do vôo Quito-Miami, não nós. Pensei ingenuamente que, apesar das ordens, o motorista do ônibus teria um mínimo de elegância e não se importaria em conduzir ambos os grupos de passageiros, um de cada vez, se necessário. Mas que nada. Fomos levados novamente para a sala de embarque, descemos do ônibus e tivemos que caminhar até o avião.

Naquela altura já havia sido esclarecido que o MD-11 estava na verdade indo para Miami. Nosso avião (adivinhem!) era um 727, que até aquele momento estava estrategicamente escondido atrás do MD-11! Apesar de tudo, poderia ser pior (poderia ser um Legacy, por exemplo).

Muito pacientemente, entramos na lata de sardinhas e esperamos por todo o ritual pré-decolagem. Já era noite e, com um pouco de sorte, conseguiríamos evitar colidir com as montanhas que circundavam Quito. Mas os equatorianos têm sempre algumas surpresas na manga. Após taxiar, o avião dirigiu-se para a cabeceira da pista e aguardou a autorização para decolagem. Ao receber a ordem, o piloto acelerou conforme previsto nas normas, já se preparando para ganhar os céus, conforme previsto nas normas. O avião acelerou, acelerou, acelerou e, quando estava quase decolando, pof, pof, pof..., decepção geral. Os deuses equatorianos ainda nos queriam por uns momentos.

Após muita consternação entre os passageiros, fomos informados que um problema com a torre de controle havia impedido a decolagem. Não me lembro se a mensagem foi transmitida em português ou em espanhol, mas ficamos sabendo que o avião deveria voltar à cabeceira da pista e aguardar nova autorização de decolagem.

Então, voltamos à cabeceira da pista. Éramos vários brasileiros corajosos, alguns argentinos e uma tripulação equatoriana que parecia muito a fim de brincar conosco.

Novamente, o avião acelerou, acelerou, acelerou e ... pof, pof, pof... Tudo indicava que iríamos passar mais uma noite em Quito, dessa vez com a cortesia da Ecuatoriana.

O comandante informou que um problema qualquer com a torre de controle havia impedido a decolagem e, para surpresa geral, avisou que deveríamos voltar à cabeceira da pista para aguardar nova decolagem. Tudo bem, talvez eles já tivessem removido o controlador de vôo que havia desmaiado. Talvez não fosse um problema com o transponder nem nada parecido. Talvez fosse só uma antena solta ou um estagiário que havia apertado o botão errado.

Voltamos à cabeceira da pista. Eu sempre tentara imaginar o que se passa na cabeça de passageiros que estão prestes a sofrer um acidente aéreo. Bem, de maneira geral, ou não se passa nada, ou os pensamentos são irrelevantes ou apenas totalmente impublicáveis.

Novamente, o combalido 727 acelerou, acelerou, acelerou e ... decolou! Gargalhadas, risos histéricos, sorrisos, aplausos. Nunca uma decolagem foi tão esperada! O avião deu um forte solavanco (mais risos histéricos) e estabilizou. Estávamos a salvo.

Com a paciência já habitual, esperamos pelos esclarecimentos do comandante, pois muitos de nós queriam saber qual tipo de problema havia ocorrido (é bom lembrar que o avião estava cheio de engenheiros e esse tipo de bicho costuma ser muito chato). Os esclarecimentos nunca vieram e muitos passageiros passaram a viagem até Manaus segurando certas partes do corpo, tentando evitar a saída do almoço (ou, em alguns casos, tentando evitar a saída do almoço do dia anterior).

O serviço de bordo começou logo, e as comissárias passaram servindo refrigerante, cerveja, whisky, chá de camomila e passiflora. Então a tempestade equatorial mais próxima resolveu entrar na brincadeira. Turbulência, turbulência, turbulência. As luzes da cabine foram reduzidas, as comissárias e um comissário dirigiram-se aos respectivos assentos e amarraram-se fortemente. Eu sempre imaginara que uma das funções dos comissários de bordo era assegurar a manutenção da calma a bordo, mas garanto que não me acalma nada ver um comissário agarrando-se nervosamente a um cinto de segurança, ao mesmo tempo em que segura um microfone para advertir, em espanhol, uma passageira que insistia em ir ao banheiro: “Señora, toma assento! Señora, toma assento” (imagino que em português isso possa ser traduzido como “senta logo, vaca velha!”).

Para finalizar, mais um toque de elegância da tripulação. Pouco antes do jantar, levantei-me para ir ao banheiro. Ao sair daquela caixinha apertada, o chefe da tripulação estava dando instruções para uma das comissárias sobre como servir o jantar. Só me lembro da parte em que ele disse: “Essas são para os pobres”, o que significava que aquelas bandejas eram destinadas à classe executiva, não à primeira classe (que ficava separada da ralé por uma mera cortina). Bem, minha passagem havia sido financiada pela Copel, mas a passagem da minha esposa foi paga com nosso próprio dinheiro, em suaves prestações. E é assim que a tripulação se refere àquele pessoal que economiza bravamente para pagar os salários deles? Em todo caso, achei melhor não reclamar naquela hora. Ninguém gosta de espaguete ao molho de cuspe.

E assim, depois de muitas emoções e apesar de todos os prognósticos, chegamos vivos em Manaus, onde a tripulação equatoriana foi trocada por uma de brasileiros, e seguimos para São Paulo, onde minha passagem para Curitiba foi roubada. Mas essa é outra história!

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Deus e Richard Dawkins

É divertido imaginar como seria um universo no qual o céu e o inferno realmente existissem. No céu certamente encontraríamos Madre Teresa de Calcutá, alguns santos católicos (mas não todos) e, talvez, um ou dois papas, além de James Clerk Maxwell e Michael Faraday. No inferno encontraríamos gente como Sigmund Freud, Albert Einstein, Carl Sagan, Richard Feynman, Bertrand Russel, Hipácia de Alexandria, Charles Darwin, Daniel Dennett, James Randi, Michael Shermer, Carlos Drumond de Andrade, Linus Torvalds, Newton da Costa, Ligia Fagundes Teles, Isaac Asimov, Douglas Adams, Arthur C. Clarke, Stanislaw Lem, Woody Allen, Marcelo Gleiser, Peter Singer, Albert Camus, Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre e vários outros. Resumidamente, quase todas as pessoas interessantes e com quem valeria a pena conversar estariam no inferno. É claro que também encontraríamos lá algumas figurinhas difíceis, como Hitler, Stalin, Getúlio Vargas e Carlos Prestes, mas em um lugar tão grande seria fácil encontrar um cantinho reservado para uma conversa demorada (já que o tempo não seria problema) com as maiores mentes científicas e literárias que já existiram. E isso incluiria, é claro, Richard Dawkins.

Richard Dawkins é um biólogo evolucionista nascido em 1941, no Quênia, mas educado na Inglaterra. A partir de 1976, com a publicação de “O gene egoísta” [1], Dawkins começou a se sobressair como divulgador da ciência, humanista e grande defensor do dawinismo e do racionalismo, levando tal defesa tão longe que, se Thomas Huxley foi apelidado de “o buldogue de Darwin”, muitos acreditam que Dawkins deveria ser apelidado de “o rottweiler de Darwin”.

A pregação anti-religiosa tem sido a principal atividade de Dawkins nos últimos tempos, principalmente após a publicação do livro “The God delusion” [2], em setembro de 2006. Dawkins também acaba de inaugurar a “Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência”[3], atualmente em fase de desenvolvimento. Em uma entrevista concedida à BBC [4], Dawkins afirma que não deseja atingir as pessoas profundamente religiosas, mas apenas os indecisos, aquelas pessoas levemente religiosas, que vão à igreja uma vez por ano e nunca pensam muito sobre o assunto. “Eu quero dar a elas muito em que pensar”, diz Dawkins.

Em vários pontos, Dawkins tem razão. Ele condena, por exemplo, a visão preconceituosa de que os ateus seriam necessariamente pessoas “más”. De fato, quando alguém pergunta “você acredita em Deus?”, a pergunta verdadeiramente implícita é “você acredita em um Deus que possa mandá-lo para o inferno caso você faça algo moralmente condenável?”. Nas mentes simples de tais pessoas, Deus seria a única razão capaz de evitar, por exemplo, que alguém cometa assassinato. Contudo, mesmo ateus radicais têm uma razão muito simples para não matar outras pessoas: ao realizarmos tal ato, estaríamos dando a autorização explícita para que os outros nos matem. Imagino que assassinos devam se tornar inquietos, desconfiados e hipertensos, pois passam a vida tentando evitar que os outros façam com eles aquilo que eles fizeram com os outros.

A raiz da verdadeira bondade não reside na crença em Deus ou no juízo final, mas em uma forma altamente refinada de altruísmo recíproco que só os seres humanos, até onde sabemos, foram capazes de desenvolver. Além disso, todas as sociedades humanas desenvolveram um sistema de controle de atividades, que funciona bem em alguns lugares e muito mal em outros, mas certamente muito melhor do que um sistema baseado no temor divino: o sistema judiciário, ao qual todos estamos sujeitos.

Dawkins também tem razão quando levanta a questão do “abuso mental” sofrido pelas crianças de todas as religiões. Ele argumenta que não há maior sentido na expressão “criança católica” do que há na expressão “criança marxista”. Assim, deveríamos deixar as crianças crescerem livremente, imersas somente em algum tipo de filosofia moral que possibilitasse a formação de valores, e deixar a questão da escolha religiosa para mais tarde, quando a criança tivesse argumentos para tal. Só que esse mundo ideal jamais existirá, a não ser em poucos casos, pois os pais estão quase sempre ansiosos para impor seus sistemas de crenças sobre os filhos, seja por medo, tradição ou um misto dos dois. O que dizer, por exemplo, daquele ritual de purificação para recém-nascidos que os católicos tanto prezam? A quem se destina tal ritual? À criança ou aos pais e à comunidade religiosa?

Em outros pontos, Dawkins parece um pouco ingênuo ao considerar a mente religiosa. Após descrever detalhadamente que a vida na Terra e a consciência humana resultam de milhões de anos de seleção natural, e que não haveria papel algum para Deus nesse processo, ele sempre se depara com a afirmação de que Deus está além da razão e da compreensão humanas e de que as leis da física nada são para ele. Em outras palavras, por que um ser onipotente deveria ser limitado pela lógica humana? Dawkins responde que, se deixarmos de lado a razão (ou seja, a ciência), poderemos demonstrar a existência de qualquer coisa, desde fadas encantadas até o monstro de espaguete voador, o bule de chá orbital, o unicórnio dourado e outros milhões de coisas. Esse argumento não é propriamente original, embora Dawkins o use com maestria, mas ele tem apelo a um público específico: o público dotado de mente cética e científica. O argumento pode ter ainda algum apelo aos indecisos de Dawkins, mas os religiosos jamais admitirão um deus limitado pela lógica humana, pois os deuses, desde o início, foram imaginados como criaturas sobre-humanas, vivendo em um mundo à parte (Olimpo, Valhalla, Vorta Vor, Sha Ka Ree, Céu, etc), criadores das leis físicas e não regidos por elas.

Em todos os tempos, vários cientistas e intelectuais têm se posicionado contra a religião. Dawkins, contudo, vai longe demais. Ele chegou à conclusão de que não é suficiente ensinar ciência, mas que é necessário atacar frontalmente as religiões, as quais representariam “a raiz de todo o mal”.

Por exemplo, no segundo capítulo de seu livro mais recente, ele afirma que: “O deus do Antigo Testamento é provavelmente o personagem mais desagradável de toda a ficção: ciumento e orgulhoso disso; um maníaco por controle, miserável e injusto; um abusador vingativo, eugenista sedento por sangue, misógino, homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista e caprichosamente malévolo”. Quando foi lido frente a uma audiência de 600 pessoas [5], esse parágrafo provocou risos e aplausos, mas dificilmente atrairá a simpatia de judeus, cristãos e muçulmanos, os quais rapidamente apresentarão centenas de argumentos para provar que Deus não é tão mau assim.

Esse “ateísmo radical”, “militante” ou “beligerante” não é novidade, embora os propósitos tenham variado ao longo do tempo. Em 1844, Karl Marx, um sujeito muito menos bem-humorado do que Dawkins e bem menos agradável de se ler, escreveu: “A religião é o ópio do povo. É preciso combater a religião como felicidade ilusória das pessoas em nome da felicidade real”. O materialismo dialético de Marx e Engels, uma filosofia tão boa quanto qualquer religião fundamentalista, encontrou terreno fértil nas mentes doentias de gente como Lênin e Stalin, que tentaram implantar o comunismo (ou, mais apropriadamente, o socialismo de Estado) na URSS, ao mesmo tempo em que combatiam qualquer tipo de religião por meio da força. Na verdade, todos os assassinatos cometidos em nome do comunismo, na ex-URSS ou em qualquer outra parte, constituem uma grande prova de que Dawkins está errado, ou ao menos parcialmente enganado, ao afirmar que a religião é a raiz de todo o mal. A raiz de todo o mal são idéias totalitárias e dogmáticas, papel freqüentemente encarnado pela religião, mas não só por ela. E se o ateísmo se tornar dogmático, terá aberto a porta para todo tipo de arbitrariedades.

Minha posição pessoal, portanto, é a do liberalismo. Não me sinto à vontade em ver propostas para que o ensino religioso seja oferecido em escolas públicas. Não me sinto à vontade quando me perguntam se acredito em Deus, pois sei o que está por trás da pergunta. Não gosto de ver crianças freqüentando igrejas (e não só por causa da doutrinação explícita, mas também porque as crianças têm muito mais o que fazer com um tempo que não volta mais). Acho simplista demais acreditar que uma comunidade de camponeses semi-alfabetizados às margens do Mediterrâneo descobriu todos os segredos do Universo. Mas também não gosto de ver pessoas sendo forçadas a abandonar a religião. Já vimos essa história antes e sabemos como ela acaba.

A falsa ciência certamente deve ser combatida, o que inclui a nova praga do “design inteligente”, anteriormente denominado “criacionismo científico”. Mas esse combate deve ser feito por meio da divulgação de idéias científicas, não do confronto direto. Os religiosos continuarão a argumentar que Deus existe além da matéria, que não devemos estudar o momento inicial da criação, que o evolucionismo é “apenas uma teoria”, que homens e dinossauros foram contemporâneos, que a Bíblia deve ser adotada como livro-texto nas escolas e que todas as respostas estão no Gênesis. A ciência tem respostas para todas essas questões, além de ter uma vantagem que a religião não tem: a ciência é capaz de evoluir e de corrigir seus próprios erros. São essas respostas que devemos divulgar, e não a idéia de que a religião deve ser erradicada da face da Terra.

Não estou sozinho nesse pensamento liberal. Marcelo Gleiser escreveu recentemente dois artigos criticando o radicalismo de Dawkins [6] [7]. Gleiser, que tem se declarado ateu em bem mais de uma oportunidade, diz que “o sobrenatural é completamente incompatível com uma visão científica do mundo”. Mesmo assim, ele diz não acreditar em extremismos e intolerância. De fato, se o ateísmo for capaz de provocar uma única morte devido à radicalização proposta por Dawkins e outros, esses novos ateus terão provado serem tão ruins quanto os religiosos, e de nada servirão para a humanidade.

[1] DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Ed. Itatiaia. 2001.
[2] DAWKINS, Richard. The God delusion. Houghton Mifflin. 2006
[3] Disponível em http://www.richarddawkins.net/foundation . Acesso em: 04 dez. 2006.
[4] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=LC9fB_oX4Y0 . Acesso em: 04 dez. 2006.
[5] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=YA9sFkYZSk8 . Acesso em: 04 dez. 2006.
[6] GLEISER, Marcelo. Ateísmo radical. Folha de São Paulo. 26 nov 2006.[7] GLEISER, Marcelo. Ateísmo (menos) radical. Folha de São Paulo. 3 dez 2006.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Meu sonho com Alckmin e Lula

Muito provavelmente sou o único cidadão desse país que tem sonhos com políticos e não é político. Certa vez, ao me recuperar de uma anestesia após uma endoscopia, sonhei com FHC. Pouco antes das eleições presidenciais de 2006, sonhei com Lula. Hoje, voltei a sonhar com ele, dessa vez acompanhado de Alckmin.

No sonho, Lula e Alckmin estavam participando de um debate televisivo durante a campanha para a prefeitura de São Paulo (!). Lula estava do jeito de sempre, mas Alckmin estava mais baixo, menos calvo e um pouco parecido com Ross Perrot. Em vez de ser realizado em um estúdio de TV, o debate era realizado em uma espécie de ginásio de esportes, com os debatedores no centro da quadra e o público nas arquibancadas.

Após várias trocas de acusações, o debate começou a ficar mais acalorado e Alckmin partiu literalmente para cima de Lula. Após sacudir Lula por uns instantes, deu-lhe um soco no ombro direito, usando uma luva de boxe. Não me perguntem de onde surgiu a luva, mas o público adorou! Então, Lula demoliu Alckmin e tornou-se o único candidato da história brasileira a vencer um debate por nocaute.

Uma bela metáfora freudiana do que aconteceu durante a campanha para o segundo turno. Pena que não chegou a tempo de avisar Alckmin.

terça-feira, novembro 21, 2006

Máquinas impossíveis

Na condição de engenheiro e professor de máquinas elétricas, freqüentemente recebo e-mails ou me envolvo em discussões com um tipo especial de inventor: o inventor de moto perpétuo. Não se trata de nada novo, pois a primeira tentativa de se construir um moto perpétuo, ou perpetuum mobile, data de 700 dC, mas a internet tem ajudado a divulgar o sonho da energia livre, barata e inesgotável.

Um moto perpétuo (ou moto contínuo) é uma máquina hipotética que seria capaz de operação contínua, sem consumo de energia ou ação externa, apenas por meio de conversões internas de energia. Sabemos atualmente que tais máquinas são impossíveis, por duas razões. Primeira, porque elas violam as leis da termodinâmica, que dizem ser impossível criar energia, a qual seria necessária para suprir as perdas. Segunda, porque, caso tais máquinas existissem, elas dificilmente poderiam ser escondidas do público. O impacto tecnológico seria tão grande que o inventor seria elevado imediatamente à categoria de um sucessor de Leonardo da Vinci, Thomas Alva Edison e Einstein (todos juntos). Como isso não aconteceu, decorre logicamente que os motos perpétuos não existem.

Ainda assim, qualquer estudante de engenharia elétrica já pensou, mesmo que brevemente, em construir uma máquina desse tipo. Afinal, máquinas elétricas podem funcionar como gerador ou como motor, dependendo da maneira como são ligadas. Se conectarmos uma máquina de corrente contínua a uma bateria, ela funciona como motor. Se, por outro lado, conectamos o eixo da máquina a uma turbina, aparece uma tensão elétrica nos terminais. Então bastaria conectarmos o eixo de um gerador ao eixo de um motor e ligar em paralelo os terminais de ambas as máquinas. Um impulso inicial faria o gerador gerar tensão elétrica, que seria usada pelo motor para produzir potência mecânica no eixo, que seria absorvida pelo gerador, induzindo tensão e assim por diante até o infinito.

Funciona? Bem, funciona, mas não até o infinito. Um dispositivo desses, desde que adequadamente construído, lubrificado, balanceado e super-dimensionado de modo a reduzir perdas, funcionaria durante algum tempo, talvez uma fração de segundo, mas não mais do que alguns segundos, e estaria longe de ser um moto perpétuo.

Teoricamente, existiriam dois tipos de moto perpétuo: os de primeira espécie, e os de segunda espécie. Os de primeira espécie produziriam mais energia do que consomem, violando a lei da conservação da energia, que é a primeira lei da termodinâmica. Já os de segunda espécie converteriam energia térmica espontaneamente em trabalho mecânico, violando a segunda lei da termodinâmica, que diz que a entropia de um sistema sempre aumenta entre conversões sucessivas de energia (ou, em palavras mais simples, o calor não pode passar espontaneamente de um corpo frio para um corpo quente).

Naturalmente, nenhum desses argumentos convencerá os inventores de motos perpétuos, especialmente porque alguns deles sabem que as leis da termodinâmica foram desenvolvidas, em parte, para explicar a impossibilidade de se construir motos perpétuos! Além disso, do ponto de vista de um leigo, a termodinâmica parece ausente do problema de se construir uma máquina elétrica perfeita. Contudo, quase todas as perdas em uma máquina elétrica (motor ou gerador) são de natureza térmica, de modo que a termodinâmica está sempre presente.

Do ponto de vista de um engenheiro projetista de máquinas elétricas, que passa boa parte da vida tentando aumentar o rendimento operacional de 90% para 91%, o sonho do moto perpétuo é mais distante do que o sonho do PIB brasileiro ultrapassar o norte-americano antes do final da década. Afinal, uma máquina que tenha um rendimento (*) de "apenas" 99,99999999% ainda estará infinitamente distante de se tornar um moto perpétuo. Sem falar que, se uma máquina dessas for realmente inventada, levará uma eternidade para testá-la!

É claro que sempre há o argumento de que o nosso conhecimento das leis da física pode ser incompleto (ninguém duvida disso!) ou que, no futuro, poderemos ser capazes de alterar essas leis. Talvez. Mas isso acontecerá só um pouco depois de termos conquistado as estrelas, acabado com a pobreza e adquirido a capacidade de mutiplicar os pães e andar sobre as águas. Até lá, continuará valendo a frase popularizada por Milton Friedman, economista norte-americano recentemente falecido: "não existe almoço de graça"!

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(*) O rendimento, ou eficiência, de uma máquina é a relação entre a potência de saída e a potência de entrada. Como não se pode obter na saída mais do que se tem na entrada, o rendimento é sempre menor do que 100%.

segunda-feira, novembro 20, 2006

CNBB: uma no cravo, outra na ferradura

Em entrevista coletiva organizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na última sexta-feira, Dom Aldo Pagotto, presidente da Pastoral Social da CNBB, fez duras críticas ao programa Bolsa Família:

Não estamos muito satisfeitos com o programa como está. No Nordeste existem pessoas que não querem trabalhar porque se contentam com o mínimo. As pessoas precisam ser inseridas no mundo do trabalho. A capacitação não pode ser só pelas universidades, mas é preciso investir em educação profissionalizante para os trabalhos. Do modo como está sendo levado, (o Bolsa Família) é um programa assistencialista que vicia. É só uma ajuda pessoal familiar. O povo tem que se organizar. Do jeito como está, levou à acomodação e ao empanzinamento”.

É surpreendente que uma entidade representante da era do bronze, que frequentemente sugere coisas como a suspensão do pagamento da dívida externa, ato que mergulharia o Brasil em mais uma década perdida, seja capaz de esboçar um raciocínio com um mínimo de validade econômica. Só faltou citar o termo "incentivo perverso".

Contudo, para mostrar que continua aferrada às práticas do passado, quando o Estado era o único e grande empreendedor do país, o representante da CNBB diz que "foi providencial que o governo tenha colocado 'freios' na onda de privatização instalada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso". A CNBB informa ainda que quer realizar um "plebiscito educacional" sobre a privatização da Companhia Vale do Rio Doce, no momento uma das empresas mais lucrativas do país e cuja estatização seria um retrocesso impensável. Tudo bem. Os plebiscitos da CNBB rendem tantos resultados quanto os pedidos por paz do Papa.

O presidente da Caritas (organismo da CNBB), D. Demétrio Valentini, afirma que "é preciso ter coragem para conferir o que foi feito" (na privatização da Vale). Ele se esquece de dizer que a Vale foi privatizada em leilão público e que cabe ao Judiciário, não à Igreja, investigar possíveis irregularidades. Também se esquece de dizer que o verdadeiro ato de coragem teria sido fazer o pronunciamento sobre o Bolsa Família antes das eleições presidenciais.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Novembro de 1906: um brasileiro nos céus de Paris

Em outubro de 1906, o brasileiro Alberto Santos-Dumont já havia feito seu primeiro vôo com o 14 Bis, a primeira aeronave mais pesada do que o ar a levantar vôo sem equipamentos auxiliares. Pela façanha, recebeu um prêmio de 3.000 francos (cerca de R$ 30.000 atuais). Em 12 de novembro do mesmo ano, o brasileiro voltou ao comando do 14 Bis, realizando o primeiro vôo reconhecido pela Federação Aeronáutica Internacional.

Muitos brasileiros ficam irritados quando os norte-americanos afirmam que o avião foi inventado pelos irmãos Wright. O interessante é que muitos países têm seus pioneiros da aviação. Os neozelandeses têm Richard Pearse, os alemães têm Karl Jatho, os romenos têm Traian Vuia e até mesmo os irmãos Wright têm concorrentes nos Estados Unidos, pois muitos dizem que Gustave Whitehead teria alçado vôo em uma aeronave mais pesada do que o ar em 1901, dois anos antes de Wilbur e Orville. Na época, havia uma grande concorrência entre inventores de diversas partes do mundo, pois, com a invenção do motor a combustão interna, era só uma questão de tempo até que alguém resolvesse o complicado problema do vôo com o mais pesado do que o ar. Assim, para nós, brasileiros, a questão da primazia de Santos-Dumont não é realmente importante.

Lembremos que, por volta do início do século XX, os Estados Unidos já haviam ultrapassado o PIB da Inglaterra. Já havia naquele país, como sempre houve, um grande respeito pela iniciativa privada, por invenções e por inovações. De fato, Wilbur e Orville Wright trabalharam em terra pátria, de olho no potencial comercial do invento, escondendo o projeto dos concorrentes. O Brasil, por outro lado, era uma grande fazenda recém-saída do Império. Não havia aqui indústria de porte, pois ainda sofríamos os efeitos devastadores da administração colonial de um Portugal tão atrasado que impedia que as colônias tivessem indústrias de qualquer espécie ou sequer imprimissem livros. A Santos-Dumont, como a tantos outros antes e depois dele, não restava alternativa a não ser atravessar o Atlântico e instalar-se no centro do mundo civilizado: Paris.

Na França, Santos-Dumont construiu 11 dirigíveis entre 1898 e 1905. Usando o dirigível Número 6, ele conquistou um prêmio de 100.000 francos, após partir do Parque Saint Cloud, contornar a Torre Eiffel e retornar em menos de 30 minutos, mantendo velocidade acima de 22km/h. Depois disso, Santos-Dumont tornou-se uma celebridade em Paris, a ponto de ter seu estilo de vestuário copiado pelos parienses, e viajou aos Estados Unidos em 1904, sendo recebido pelo presidente Theodore Roosevelt. Isso tudo ocorreu antes do 14 Bis e daquele que foi a mais perfeita de todas as aerovaves primitivas: o Número 19, mais conhecido como Demoiselle. Ao contrário dos irmãos Wright, que tinham ambições militares para o Flyer, Santos-Dumont sonhava com um futuro no qual todos teriam um avião particular.

Santos-Dumont não precisa ser lembrado por ter sido o inventor do avião, por ter sido o primeiro a levantar vôo sem equipamentos auxiliares em uma aeronave mais pesada do que o ar ou por ter sido o inventor do ultra-leve. Ele deve ser lembrado simplesmente por ter mostrado que, dadas as condições adequadas, os brasileiros podem concorrer em pé de igualdade em ciência e tecnologia de ponta. É isso que realmente importa.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Projeto de lei do controle de acesso à internet retirado da pauta da CCJ

Ainda há alguma esperança no ar. O Projeto de Lei Substitutiva 124/06, que está em tramitação na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado e prevê uma maior regulamentação sobre o acesso à internet, foi retirado da pauta nesta terça-feira (7/11).

O comentário do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos sobre o projeto foi: "Qualquer tentativa de coibir a liberdade de expressão deve ser liminarmente afastada. Como dizia aquele juiz da Suprema Corte americana, a Constituição não quer que a imprensa seja justa. A Constituição quer que a imprensa seja livre. Acredito que o projeto tem problemas."

Não há data prevista para que o projeto volte a à pauta.

terça-feira, novembro 07, 2006

Controle do acesso à internet, declive escorregadio e liberdades individuais

De acordo com reportagem da Folha de São Paulo , a "Comissão de Constituição e Justiça do Senado votará, na próxima quarta-feira, um projeto de lei que obriga a identificação dos usuários da internet antes de iniciarem qualquer operação que envolva interatividade, como envio de e-mails, conversas em salas de bate-papo, criação de blogs, captura de dados (como baixar músicas, filmes, imagens), entre outros. " [1] .

O projeto prevê ainda pena de reclusão de dois a quatro anos para quem acessar a internet sem se identificar, sendo que os provedores de internet ficariam responsáveis pela veracidade dos dados cadastrais dos usuários e estariam sujeitos à mesma pena.

Não tenho dúvidas que há muita liberdade na internet e que muita gente é colocada em perigo por causa disso, especialmente crianças, que se tornam vítimas de pedófilos, e clientes de bancos, que se tornam vítmas de hackers. As dúvidas que tenho são apenas duas:

1. Quem garante que, após a entrada em vigor da lei, um infrator não poderá ter acesso aos documentos de outra pessoa, usando-os para abrir uma conta em um provedor qualquer, cometendo os mais variados crimes e fazendo a culpa recair sobre o dono dos documentos? Se contas bancárias, que exigem RG e CNPF, são abertas facilmente com o uso de documentos de terceiros, quem garante que o mesmo não acontecerá com contas de acesso à internet?

2. Quem garante que essa cassação da liberdade de acesso não será o início de um processo maior de controle? Quem garante que esse declive em que estamos prester a entrar não é escorregadio? Afinal, como dizia David Hume, filósofo escocês do século XVIII, "raramente se perde qualquer tipo de liberdade de uma única vez".


[1] LOBATO, Elvira. Projeto quer controlar acesso à internet. Folha de São Paulo. 6 de nov. 2006. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u20908.shtml>. Acesso em 7 de nov. 2006.

sexta-feira, outubro 13, 2006

CEFET-PR é a primeira Universidade Tecnológica do Brasil!

O CEFET-PR, instituição de 96 anos de idade, acaba de ser transformado na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UTFPR, pela sanção da lei 11.184, de 7 de outubro de 2005.

De acordo com o professor Eden Januário Netto, diretor da instituição e reitor pró-tempore, a transformação do CEFET-PR em universidade acarreta nos seguintes benefícios:

  • Maior acesso a investimentos, pois as universidades têm prerrogativas específicas oriundas da Constituição Federal da República.
  • Maior facilidade de planejamento das atividades.
  • Possibilidade de obtenção de recursos para projetos específicos.
  • Internacionalização da instituição, pois o termo "Universidade Tecnológica", ao contrário de "Centro Federal de Educação Tecnológica", é globamente conhecido.

A UTFPR já nasce com 14 mil alunos, 1.330 professores e campi em Curitiba, Pato Branco, Dois Vizinhos, Medianeira, Cornélio Procópio, Ponta Grossa e Campo Mourão.

Atualmente, são oferecidos 41 cursos de graduação, 4 programas de mestrado, um doutorado, 10 cursos técnicos de nível médio e cerca de 50 cursos de especialização. A estrutura dos programas de pós-graduação, aliada à excelência do corpo técnico, foi um dos fatores decisivos para a mudança.

Je vous salue, UTFPR!

segunda-feira, outubro 09, 2006

Alckimn X Lula - Primeiro combate

O bloggeiro Ricardo Noblat comparou o primeiro debate entre Alckmin e Lula a uma luta de boxe e foi isso mesmo. Lula ficou a maior parte do tempo nas cordas, pois Alckmin já iniciou batendo, relembrando o custo da corrupção, de acordo com dados do Banco Mundial. Lula parece ter ficado tão assustado que se esqueceu de cumprimentar seus eleitores e o público presente. Coisa lamentável para um decano de campanhas presidenciais.

Quando Lula batia, parecia desajeitado, assassinando o português, cometendo erros pavorosos de concordância, lendo textos preparados por assessores despreparados, insistindo que o biodiesel é a solução para nossos problemas energéticos, repetindo que não sabia de nada, afirmando que cabe a ele o mérito de ter afastado os corruptos (quando se sabe que todos os escândalos foram levantados por Roberto Jefferson e pela imprensa).

Alckmin, por outro lado, perdeu umas boas oportunidades de jabs. Deixou de atacar quando o outro candidato lembrou que "essa quadrilha começou no governo anterior", esqueceu de dizer que o crescimento econômico do Brasil não foi o maior dos últimos 20 anos, como aventado por Lula, esqueceu de lembrar que a política econômica do governo do PT, a qual, segundo Lula, "salvou o país", é idêntica à do governo FHC. Talvez Alckmin queira descolar sua imagem da de FHC, mas ele poderia ao menos ter lembrado que o dólar só foi a R$4,00 em 2002 por causa do medo da eleição de Lula, e que muita coisa que aconteceu entre 2003 e 2006, aconteceu apesar do governo, não por causa dele.

No final, Lula se despediu, agradecendo aos "telespectadores da Rádio Bandeirantes". A Coréia do Norte parece ter gostado do debate, pois comemorou soltando bombas.

sábado, setembro 30, 2006

De quem você compraria um carro usado?


No livro "O Mundo Assombrado por Demônios", Carl Sagan argumenta que as pessoas tomam todo o cuidado do mundo para comprar um carro usado, mas não tomam o mesmo cuidado em relação a decisões mais importantes. Nesse espírito, antes de depositar seu voto amanhã é oportuno perguntar-se de qual dos candidatos abaixo você compraria um carro usado:

a) Geraldo Alckmin;
b) Cristovam Buarque;
c) Helóisa Helena;
d) Lula;
e) NDA.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Bento XVI e a teoria da evolução

É sempre curioso ver um religoso argumentando que alguma teoria científica é irracional. Quando o religioso em questão foi professor de teologia dogmática em uma universidade conservadora, isso é ainda mais curioso. Pois é precisamente isso que o Papa Bento XVI tem feito. Ontem, durante uma missa a 230 mil fiéis na cidade alemã de Regensburg, ele declarou:

"O que existe na origem? A razão criadora, o espírito que opera em tudo e proporciona o desenvolvimento, ou a irracionalidade que, despojada de toda razão, produz estranhamente um universo ordenado de maneira matemática, assim como o homem e sua razão?"


Voltamos assim ao problema da regressão infinita: se foi necessário um criador para o universo, quem criou o criador? E quem criou o criador do criador? O papa, sendo dogmático, pode muito bem argumentar que Deus é "incriado" e existia antes de todas as coisas e criaturas, mas tal argumento seria visto pelos cientistas como um dogma irracional.


Os cientistas não se preocupam em viver em um universo onde a vida surgiu por acaso, como o resultado de reações químicas entre macromoléculas orgânicas. A ocorrência de eventos improváveis parece deixar os religosos perplexos, mas não há motivo para tal. Afinal, sabemos que a vida surgiu. Isso é um fato, e se a única resposta racional residir em um evento improvável, tal resposta é melhor do que qualquer outra. Ao cientista interessa saciar sua curiosidade. Recorrer a um poder sobrenatural criador não é suficiente, não por falta de fé, mas porque não sacia a sede de saber. O céu do religioso é habitado por um deus que sabe todas as respostas, mas esse é precisamente o inferno do cientista, que ficaria sem nada o que fazer.


João Paulo II, que era um pouco menos conservador do que Bento XVI, também teve seus atritos com cientistas. Por exemplo, ele concordava que os físicos poderiam investigar tudo o que quisessem, menos o momento da criação, pois esse era o "ato de Deus", conhecido somente por ele. O físico Stephen Hawking estava presente quando João Paulo fez tal declaração, e teria ficado com vontade de dizer que, segundo algumas teorias cosmológicas recentes, o universo pode ter sempre existido, não tendo sido criado e eliminando-se, portanto, a necessidade de um criador. Mas Hawking, lembrando-se dos problemas de Galileu com a inquisção, achou melhor ficar em silêncio.


Apesar dos atritos freqüentes, a Igreja Católica está milhares de anos à frente de outras religiões, com a possível exceção do budismo, no que diz respeito à tolerância de idéias científicas. Bento XVI, ao posicionar-se contra o evolucionismo e, aparentemente, contra a cosmologia, lança alguma sombra sobre essa história de tolerância. É uma pena, pois todos só tem a perder.


Ao comentar sobre a "ordem matemática", Bento XVI revela-se até mesmo desconhecedor de algumas teorias modernas. De fato, a mecânica quântica, com seu princípio da incerteza, e a ciência do caos, com sua sensibilidade às condições iniciais, mostraram que nosso conhecimento da natureza é necessariamente limitado. Há várias décadas sabemos que o universo não é o relógio matematicamente preciso imaginado pelos físicos newtonianos.


Ciência e religião podem, e devem, coexistir, mas não podem se misturar. O objetivo da ciência é procurar respostas para as perguntas existentes e, talvez mais importante, formular novas perguntas. O objetivo da religião é formular um conjunto de regras de convívio social, ancoradas em algum tipo de divindade que só se conhece e só se aceita por meio da fé. Qualquer religião, portanto, baseia-se em algo misterioso e incognoscível, e livrar-se dos mistérios é exatamente o objetivo da ciência. Se confrontadas, a ciência tentará mostrar que os dogmas religiosos não têm fundamento, e a religião tentará mostrar que o conhecimento científico é incompleto. De vez em quando, é claro, o religioso e o cientista habitam o mesmo corpo e, por alguma razão misteriosa, ainda assim a pessoa consegue manter a sanidade mental.


Há também outra diferença importante entre religião e ciência, que é o mecanismo de auto-correção. Embora osacionalmente os cientistas possam agir de maneira tão humana e dogmática quanto os religiosos, a ciência está sempre em busca de conhecimentos mais amplos e mais precisos sobre a natureza. A ciência nunca se contenta com a ignorância, nunca se contenta com menos conhecimento. E a existência de um mecanismo de correção e eliminação de teorias é a única maneira de se evitar que os cientistas caiam vítimas do auto-engano e passem a acreditar em "raios N" ou coisas parecidas. Nas palavras de Albert Einstein:


"O cientista teórico não deve ser invejado, pois a Natureza, ou, mais precisamente, o experimento, é um juiz inexorável e não muito cordial de seu trabalho. Ele nunca diz "Sim" a uma teoria. Nos casos mais favoráveis, ele diz "Talvez" e, na grande maioria dos casos, simplesmente "Não". Se um experimento concorda com uma teoria, isto significa, para esta, "Talvez", e se não concorda, "Não". Provavelmente, toda teoria algum dia experimentará o seu "Não" - a maioria das teorias, logo após sua concepção."

terça-feira, setembro 12, 2006

O dia seguinte

Então, as torres caíram. Na época, escrevi um artigo bem intencionado, que hoje me parece otimista demais, intitulado "Hoje sou americano, hoje sou muçulmano". Por coincidência, no mesmo dia o Le Monde estampou em sua primeira página a manchete "Hoje somos todos americanos". Contudo, as chuvas de bombas que cairam posteriormente no Afeganistão e no Iraque tornaram muito difícil nos solidarizarmos com os norte-americanos. Da mesma forma, as freqüentes ameaças da Al-Qaeda e o atentado ao metrô de Londres tornaram muito difícil nos solidarizarmos com os radicais islâmicos. Hoje, de ambos os lados do Atlântico, todos são terroristas.

No dia seguinte ao 11 de setembro, as bolsas de valores caíram, a economia entrou em recessão, o leilão de privatização da Copel (Companhia Paranaense de Energia, única empresa energética posta à venda e não vendida) resultou vazio. Mais tarde, algum paranaense ilustre mencionou que "foi um ato de Deus que impediu a privatização". Estranho Deus esse, que condena milhares de pessoas à morte com o objetivo de garantir o emprego de outras milhares. Não foi assim que me ensinaram no catecismo!

O mundo após o 11 de setembro é muito pior. Antes, tínhamos ao menos alguns chefes de estado ensaiando passos de estadistas. Tínhamos promessas e chances de integração entre as Américas e uma Organização Mundial do Comércio progressivamente liberal. Hoje, temos Chávez, Morales e Lula. Temos protecionismo e rodadas da OMC canceladas. Nos EUA, tínhamos um presidente eleito de maneira fraudulenta, sem apoio popular e sem nada a fazer a não ser se esconder nas moitas da Casa Branca, jogar golfe e esperar o fim do mandato. Hoje, temos um herói da luta contra o terrorismo, que deve estar repetindo até agora, para si mesmo, entre um prezzel e outro, "não contavam com a minha astúcia!".

Após o 11 de setembro, coisas incríveis aconteceram. Vimos o país mais rico do mundo se lançar em guerra contra dois dos mais pobres, em busca do chefe da Al-Qaeda, que nunca foi encontrado, e de armas de destruição em massa, que nunca existiram. Vimos passageiros sendo revistados dos pés à cabeça antes de embarcarem em um avião, só para se sentarem calmamente e receberem facas e garfos metálicos para o jantar. Vimos a canção Imagine, de John Lennon, sendo banida das rádios e TVs norte-americanas, sob alegação de "letra questionável". A lista completa de canções banidas (ou "não recomendadas", para ser mais exato) indica o nível de neurose atingido após o ataque terrorista. Mas essa é uma era neurótica e não devemos nos espantar. Mesmo assim, se Yeshua e Muhammad (ou Jesus e Maomé) soubessem o que seria feito em nome deles, o primeiro teria voltado a martelar pregos e o segundo teria acabado seus dias como um comerciante anônimo na região de Meca.

domingo, agosto 27, 2006

Harmonia do Mundo, de Marcelo Gleiser

Em palestra recente para divulgar seu livro Harmonia do Mundo (Cia. das Letras, 327p.), Marcelo Gleiser esclareceu porque decidiu escrever romance biográfico sobre Johannes Kepler. Segundo ele, outros gênios da história da ciência não foram tão psicologicamente complexos quando Kepler. Copérnico, por exemplo, que tirou a Terra do centro do universo, não era exatamente um revolucionário, era bastante acanhado e passou anos trabalhando em segredo, temendo as represálias da igreja católica. Seu livro Sobre as revoluções das esferas celestes (De Revolutionibus Orbium Coelestium) foi publicado em 1543 quase postumamente, pois Copérnico só recebeu a cópia impressa em seu leito de morte, possivelmente não tendo forças para examiná-la. É verdade que Copérnico tinha certa razão, pois seu livro foi atacado por teólogos protestantes, até mesmo por Lutero, e foi incluído pela igreja católica no índice dos livros proibidos, onde permaneceu até 1835.

Já Galileu envolveu-se em problemas com a Igreja Católica, mas era muito arrogante e gostava de afrontar a autoridade papal. Imagino que, talvez, Giordano Bruno, filósofo e astrônomo queimado na fogueira em 1600, rendesse um bom romance. Ocorre que a principal acusação contra Bruno dizia respeito a uma heresia conhecida como "docetismo", condenada pelo Conselho de Calcedônia, segundo a qual Jesus Cristo não tinha um corpo físico e a crucificação teria sido apenas aparente. Além disso, o trabalho teórico de Bruno não pode ser considerado propriamente científico e, embora ele fosse um copernicano, a igreja católica que o condenou não tinha posição oficial contra Copérnico por volta de 1600. Bruno, portanto, é muito mais um mártir religioso do que um herói científico.

Kepler, por outro lado, representa o verdadeiro gênio científico angustiado. Ao mesmo tempo em que se recusava a abandonar o luteranismo no qual havia sido criado, Kepler não conseguia aceitar o modelo geocêntrico de Ptolomeu, recomendado pelo pastores luteranos, e o fazia em bases simultaneamente filosóficas e científicas: por um lado, ele acreditava que, colocando o Sol no centro do Universo, poderia revelar a harmonia oculta usada por Deus na criação; por outro, Kepler descobriu que as medições astronômicas de Tycho Brahe eram incompatíveis com o modelo geocêntrico e epiciclos de Ptolomeu.

Mas Harmonia do Mundo não é só sobre Kepler. Gleiser constrói uma espécie de diptico, onde quase toda a vida de Kepler é contada em paralelo com parte da vida de seu mestre Michael Maestlin. Em 1630, Maestlin recebe o diário de Kepler em sua casa, em Tübingen, Alemanha, juntamente com uma carta que só deveria ser lida após a leitura do diário. Pouco tempo depois, Maestlin fica sabendo que Kepler havia morrido há pouco. Maestlin, que não conseguiu dar a Kepler todo o apoio necessário e que está com 80 anos, vê desaparecer toda chance de redenção. Nunca poderá se desculpar com Kepler, o gênio criador. Nunca poderá dizer que estava errado ao condenar as idéias revolucionárias de seu pupilo. Poderá, entretanto, obter algum conforto lendo o diário, que Gleiser usa como costura entre as vidas dele e de Kepler.

Não sabemos exatamente como era Kepler fisicamente. Não sabemos como eram seus gestos e entonação de voz. Sabemos apenas que ele era dado a frases complicadas e vivia em uma época marcada pela reverência e afetação no tratamento pessoal, fato do qual Gleiser não se esquece. Os retratos mais conhecidos de Kepler mostram uma figura um pouco sizuda, com feições variando de acordo com o talento orçamento de cada pintor. Sobre Maestlin, sabemos muito menos, mas, em ambos os casos, Gleiser constrói personagens vivos, tridimensionais, repletos de emoções e conflitos. É como se o Kepler sizudo dos retratos pulasse em frente a nós e dissesse: "esse fui eu, minha vida foi desse jeito e minha visão do mundo era assim e assim". Em resumo, personagens apaixonantes e assustadores.

Gleiser também se esforça para mostrar o dia-a-dia de um cientista, a busca por patrocínio, a dificuldade em divulgar novas idéias, o inferno dos cálculos intermináveis. Tendo vivido em uma época na qual não existiam calculadoras e nem mesmo réguas de cálculo - esta última tendo sido inventada na última década de vida de Kepler - só lhe restavam os cálculos manuais. O máximo que ele pode fazer, e é basicamente isso que uma régua de cálculo faz, foi usar logaritmos para transformar as difíceis operações de multiplicação e divisão nas relativamente fáceis operações de adição e subtração, respectivamente. A importância dos logaritmos como ferramenta computacional foi tanta que Kepler dedicou suas Efemérides de 1620 a John Napier, o matemático escocês que inventou esse conceito matemático. Imagino o que faria Kepler se tivesse em mãos um microcomputador moderno, mesmo que não muito potente, com apenas uma planilha eletrônica e um editor de textos instalados. Não precisaria ser um supercomputador com capacidade de processamente paralelo e software astronômico altamente preciso. Uma mera planilha eletrônica teria economizado anos de cálculo e, quem sabe, permitido que Kepler descobrisse suas quarta, quinta e sexta leis, modernamente conhecidas como "as três leis de Newton".

Essa última frase pode parecer exagerada, mas nunca o saberemos. O que sabemos é que Kepler havia intuido corretamente o conceito de "lei física". Ele não conhecia a gravitação, mas acreditava que uma força emanava do Sol, regendo o movimento dos planetas. Ainda, ele acreditava que essa leis eram quantitativas e universais, e que poderiam ser validadas experimentalmente. Essa, na verdade, foi uma das razões de Maestlin ter relutado em dar apoio a Kepler. Maestlin, aferrando-se à tradição aristotélica de disciplinas desenvolvidas à exaustão, mas isoladas entre si, não gostava de ver a astronomia (que media os céus) misturada à física (ou "filosofia natural", a qual procurava explicações para os fenômenos). Kepler não via problema algum em misturar as disciplinas, pois acreditava que tudo era parte de um mesmo plano divino, parte da harmonia do mundo.

Em Harmonia do Mundo, de Gleiser, a última entrada do diário fictício de Kepler data de maio de 1618, quando o astrônomo descreve as descobertas que culminariam na publicação do seu Harmonia do Mundo, em 1619, que apresenta a terceira lei de Kepler ("o quadrado do período orbital de um planeta é diretamente proporcional ao cubo do semi-eixo maior da elipse orbital"). Assim, ficamos sem conhecer as impressões de Gleiser sobre uma das últimas obras de Kepler: o conto Somnium, escrito entre 1620 e 1630 e publicado postumamente, geralmente considerado o primeiro conto de ficção científica da história.

Gleiser comenta que decidiu escrever um romance, e não um livro de divulgação nos moldes dos anteriores (O fim da Terra e do céu, A dança do universo e Micro-macro) por querer atingir um público diferente, interessado em ciência, mas que costuma ler e comprar romances. Talvez esses leitores, acostumados às reviravoltas nas tramas, possam perdoá-lo pelo final-surpresa, que não revelarei aqui. Usando as vantagens da ficção, bem como aproveitando-se de lacunas históricas, Gleiser revela-se bastante ousado ao estender ao máximo a angústia existencial de Maestlin. E deixa seus leitores querendo mais.

sábado, agosto 26, 2006

Reservatórios do Sul

A figura ao lado mostra a razão do racionamento de água em Curitiba e do aumento do PLD, que fechou ontem em R$ 129/MWh no Sul.

Até o mês de abril de 2006, o nível dos reservatórios do Sul estava seguindo o nível de 2004, embora um pouco abaixo. De abril em diante, em vez do armazenamento aumentar, como esperado, continuou na mesma linha descendente, vindo a atingir o menor nível dos últimos cinco anos.

É claro que a situação só é crítica para quem depende de água ou energia elétrica. Os outros não precisam se preocupar.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Meu sonho com Lula

Sonhei com Lula essa noite. Sério. Quase sempre tenho dificuldades para dormir e, nessa rara noite de sono tranqüilo, ele invadiu meus sonhos! Estávamos participando de um evento qualquer, em uma espécie de estância no campo. Lula saiu para dar um passeio no bosque e fui atrás dele. Nada de guarda presidencial, nada de seguranças, nada disso. Só Lula e eu. Aproximei-me dele, com toda a cortesia que o cargo exige, e disparei: "Presidente, eu sei que o senhor é um homem muito ocupado, mas gostaria de fazer uma única pergunta". Ele assentiu, como fazem as pessoas muito assediadas que não conseguem se livrar de mais um chato, e continuou andando calmamente. Fui atrás dele e perguntei como seria o tratamento dado à educação superior nesse segundo governo que ora parece inevitável. Ele começou a responder, mas nesse ponto o sonho entrou naquela espécie de bruma ou penumbra, onde não se sabe direito o que aconteceu, ou não se quer lembrar.

Algumas pessoas sonham com Ana Paula Arósio, Angelina Jolie, Patricia Arquette, etc. Talvez um espírita dissesse que eu fiz algo de muito errado em uma vida passada e estou pagando por isso ao sonhar com Lula. Mas o sonho foi real e, até onde me lembro, Lula não respondeu minha pergunta. Espero que esse seja um daqueles casos que Freud comentava, onde um charuto é só um charuto...

quarta-feira, agosto 23, 2006

Sessão de autógrafos com Marcelo Gleiser

Marcelo Gleiser esteve em Curitiba ontem, 22/8, para dar uma palestra e participar de uma sessão de autógrafos. O Teatro Regina Vogue estava lotado e fiquei razoavelmente surpreso com a tietagem, com várias menininhas querendo tirar fotografias ao lado dele. Talvez isso seja bom. Um físico brasileiro elevado à categoria de pop star é a prova de que o Brasil talvez ainda tenha jeito.

A palestra foi sobre o último livro de Gleiser, "A Harmonia do Mundo", uma biografia romanceada de Johannes Kepler. Gleiser discorreu sobre alguns modelos cosmológicos, dos gregos antigos a Kepler, e respondeu algumas perguntas. Apesar das credenciais, ele tem aquele jeito calmo que lhe permite não perder a paciência nem mesmo com as onipresentes perguntas que tentam misturar física e misticismo.

Estou na metade do livro de Gleiser, que é realmente muito bom. Ele faz um um díptico entre as vidas de Kepler, o gênio revolucionário, e de Maestlin, o mestre conservador que o renegou. Gleiser afirma ter escolhido Kepler, e não Galileu ou Copérnico, por causa da personalidade mais complexa e psicanalítica de Kepler. Copérnico, segundo ele, era conservador e retraído demais, tendo recebido a cópia impressa de seu livro somente em seu leito de morte. Já Galileu era muito arrogante e suas controvérsias com a Igreja Católica se devem em parte a isso, não à adoção do modelo copernicano. Kepler, por outro lado, representa a medida certa do gênio angustiado e oprimido pelas instituições e cultura da época, um verdadeiro descobridor de novos mundos.

Quando esteve em Curitiba em 2001, Marcelo Gleiser lotou o teatro de bonecos do Shopping Estação. Dessa vez, ele lotou o Teatro Regine Vogue. No andar da carruagem, da próxima vez teremos que reservar o Teatro Guaíra!

segunda-feira, agosto 21, 2006

De como o Brasil trata a ciência e a tecnologia, 3ª Parte: Brain Drain

Quando eu estava na quarta-série do ensino primário, a escola em que eu estudava organizou um concurso intitulado "esse é um país que vai pra frente", bem ao sabor da ditadura então em voga. Para participar, deveríamos desenhar um cartaz que ilustrasse o inevitável crescimento do Brasil. Meu pai, sempre com seu humor cáustico e inteligente, sugeriu que eu desenhasse um mapa do Brasil repleto de mulheres grávidas, mas comentou que talvez os militares não entendessem muito bem a idéia. Após algum tempo, resolvi desenhar um mapa do Brasil com uma escola ao centro e crianças se dirigindo a ela. Minha mãe me ajudou com o esboço e passei várias horas pintando o mapa, a escola e as crianças com lápis de cor. Um desenho tamanho A-zero com lápis de cor! Até hoje me lembro que um dos meus colegas ficou impressinado com a minha paciência e, até onde me lembro, ganhei a primeira fase do concurso, mas nunca soube o que aconteceu depois.

Era o longínquo ano de 1975 e aquela cena das crianças se dirigindo a uma escola nunca me saiu da memória. Mais tarde, já no segundo grau, posteriormente rebatizado, sabe-se lá com que razão, para "ensino médio", lembro-me de ter participado de um debate sobre desenvolvimento tecnológico, um tema recorrente para quem cursava o técnico em eletrônica. Não me lembro dos detalhes, mas me lembro vividamente de alguém ter comentado que o Japão havia investido maciçamente em educação, e que essa deveria ser a chave do grande sucesso que esses país estava alcançando. Lembro-me também de alguém ter comentado que o Brasil exportava minério de ferro, enquanto o Japão importava aço e ferro e exportava tecnologia. O exemplo de "tecnologia" dado por essa pessoa foi uma mera agulha de toca-discos, mas os tempos eram outros.

Esse debate deve ter ocorrido por volta de 1982, não mais que 1983. Já se passaram, portanto, mais de 20 anos. Durante todo esse tempo, todos os presidentes e governadores brasileiros não deixaram de apregoar seu compromisso perene com a educação. É claro que tivemos que nos virar com a praga da inflação, mas não tivemos que viver com os escombros do pós-guerra, como os japoneses. Hoje, o Japão é para nós inatingível. Tentamos até copiá-los tardiamente, na década de 90, quando a febre da Qualidade Total contaminava todos por aqui. A crise japonesa do final da década de 90 talvez tenha diminuído nosso ímpeto em imitá-los, mas raramente nos lembramos que a "crise" japonesa só existiu quando medida em termos dos altíssimos padrões japoneses. Para nós, teria sido uma mera turbulência.

Desde a década de 70 até agora, alguns países aprenderam que a receita japonesa dá certo. O caso mais bem sucedido talvez seja a Coréia do Sul, seguida recentemente pela China e pela Índia. Tudo indica que vamos ficar para trás.

Uma boa medida da efetividade das políticas educacionais de um país é o brain drain, fenônmeno que pode ser traduzido por "perda de cérebros". Todo país sofre com isso, inclusive os mais avançados. Não é raro toparmos com um norte-americano ou europeu que veio fazer um curso no Brasil, ou participar de algum programa de incentivo, ou assumir uma diretoria temporária em uma multinacional, apaixonou-se por uma brasileira e aqui ficou, apesar dos pesares. Mas, quando o brain drain é excessivo é que a porca torce o rabo.

O jornal O Globo desse domingo dá números assustadores. A cada ano, entre 140 a 160 mil profissionais qualificados deixam o Brasil. É como se, a cada ano, perdêssemos a USP, a UFRJ, a UFF e uma parte da UFMG. O motivo são os baixos salários, a falta de empregos qualificados e, sobretudo, a nossa falta de respeito pela competência profissional.

Franciso Antônio Dória, professor emérito da UFRJ, já havia apontado para esse problema em dezembro do ano passado, em entrevista ao Estadão, quando criticou a política do CNPq e a falta de respeito com a pesquisa. O problema, contudo, é muito maior do que o CNPq. Somos historicamente pouco afeitos à educação. Nosso negócio é praia, churrasco e futebol. O brasileiro cresce sonhando em ser jogador ou pagodeiro, profissões que exigem um quase nada de educação formal. O CNPq, do qual o professor Dória pode falar com muito mais porpriedade do que eu, é apenas um efeito dessa cultura, não a causa.

Enquanto perdemos milhares de profissionais por ano, o governo continua exercendo todo o populismo que os programas assistenciais permite. Mas é fácil perceber que assistencialismo não basta. Somos uma nação formada maciçamente por pobres capazes de absorver qualquer verba assistencial na qual o governo seja capaz de pensar, e que será desviada dos verdadeiros programas educacionais. Quanto mais investirmos em assistencialismo, mais pobres ficaremos, pois nunca haverá dinheiro suficiente. E, dentro de poucos anos, Índia e China terão nos atropelado, apesar dos enormes problemas deles mesmos.

Tenho dúvidas se o Brasil do futuro será um lugar melhor. Seremos mais burros, pois teremos perdido todos nossos gênios e até mesmo os profissionais apenas razoavelmente inteligentes. Seremos mais violentos, pois a falta de educação terá perpetuado a pobreza, que só enxergará o tráfico como meio de sobrevivência. Seremos mais racistas, pois os "brancos" terão se insurgido contra os "negros" detentores de quotas para todos os tipos de cargos públicos. E, finalmente, não tendo outra opção, teremos que retornar à nossa natureza de país exportador de commodities. É claro que nada disso precisa acontecer, bastanto que direcionemos os investimentos para as áreas de educação, ciência e tecnologia, e que administremos os recursos de maneira eficiente, profissional e desburocratizada. Mudanças culturais demoram, são caras e dolorosas, mas são possíveis.

sexta-feira, agosto 18, 2006

Chuva no Sul!


Até que enfim começou a chover no Sul! A imagem ao lado mostra a precipitação nas últimas 24 horas, que ultrapassou 100mm em algumas regiões. Em Curitiba, choveu intensamente ontem à noite e agora a garoa está de moderada a forte. Segundo os meteorologistas, as chuvas não deverão continuar, apresentando uma "dinâmica bastante instável". Mas já deve dar para amenizar o racionamento de água e reduzir um pouco o PLD no sul, que deverá ser divulgado hoje à tarde.

sábado, agosto 12, 2006

Newton da Costa no "Café com Ciência"

O matemático e filósofo Newton da Costa esteve em Curitiba no último dia 9/8 para participar do projeto Cáfé com Ciência do SESC da Esquina. O título da palestra era para ser "23 problemas abertos da matemática" (os problemas de Hilbert), mas da Costa acabou falando sobre filosofia do conhecimento científico, pois achou o tema original árido demais para uma audiência diversificada. Foi melhor assim, pois nem mesmo haveria tempo suficiente para falar detalhadamente sobre os 23 problemas de Hilbert.

Newton Carneiro Affonso da Costa nasceu em Curitiba, em 1929, e graduou-se em engenharia civil e em matemática pela Universidade Federal do Paraná. Seu reconhecimento internacional veio a partir de 1974, com a publicação do artigo "On the theory of inconsistent formal systems", que o lançou como um dos fundadores da lógica paraconsistente.

A lógica clássica, lembremos, não admite contradições. Dadas duas proposições contraditórias, qualquer proposição do sistema pode ser deduzida e este se torna trivial. Newton da Costa mostrou que é possível construir sistemas formais onde podem existir contradições sem que o sistema se torne trivial. Segundo muitos, o surgimento da lógica paraconsistente e de outras lógicas não clássicas representa uma revolução comparável à das geometrias não euclidianas no século XIX. Outros trabalhos de da Costa relacionam-se ao conceito de "quase verdade", à axiomatização das teorias da física (sexto problema de Hilbert) e, mais recentemente, ao problema P=NP, que é um dos "problemas do milhão".

Na palestra da última quarta-feira, da Costa procurou conceituar o conhecimento científico, principiando por dizer que conhecimento é uma crença justificável e que não pode ser confundido com opinião. Contudo, as dimensões dedutiva e indutiva não são suficientes, pois a crítica é fundamental em ciência, devendo ser exercitada diariamente. Nenhuma verdade é definitiva e, se um determinado corpo de conhecimentos não se expõe à crítica, não pode ser considerado científico.

Em uma das perguntas ao final da palestra, fez-se menção ao critério da refutação (ou falseabilidade) de Popper, segundo o qual uma teoria só pode ser considerada científica se puder ser experimentalmente refutada. Nesse ponto, da Costa disse não concordar totalmente com Popper, pois, segundo ele, existiriam teorias não científicas que podem ser refutadas, e citou a astrologia. Imagino que da Costa seja otimista demais em relação aos astrólogos, por razões que passarei a discutir brevemente.

A teoria da relatividade geral foi publicada por Albert Einstein em 1915. Dentre outras coisas, essa teoria prevê que os raios de luz devem se curvar ao passar perto de um corpo pesado, e Einstein foi capaz de calcular o ângulo de deflexão. Se a previsão estivesse errada, todo o edifício teórico da relatividade geral desabaria, sem possibilidade de reparo. Em tal situação, seria até preferível continuar usando a gravitação newtoniana, que prevê uma deflexão menor, mas que é uma teoria muito mais simples. Contudo, em 1919 algumas expedições organizadas por Sir Arthur Eddington aproveitaram um eclipse solar para observar a deflexão da luz das estrelas ao passar perto do sol. Apesar da incerteza experimental, os resultados se mostraram mais de acordo com a relatividade geral do que com a gravitação newtoniana. A teoria einsteiniana sobreviveu a esse experimento crucial e a muitos outros desde então, mas isso não significa que venha sobreviver a todos os testes futuros. Como disse o próprio Einstein, em 1922:

"O cientista teórico não deve ser invejado, pois a Natureza, ou, mais precisamente, o experimento, é um juiz inexorável e não muito cordial de seu trabalho. Ele nunca diz "Sim" a uma teoria. Nos casos mais favoráveis, ele diz "Talvez" e, na grande maioria dos casos, simplesmente "Não". Se um experimento concorda com uma teoria, isto significa, para esta, "Talvez", e se não concorda, "Não". Provavelmente, toda teoria algum dia experimentará o seu "Não" - a maioria das teorias, logo após sua concepção." (H. DUKAS; B. HOFFMANN, Albert Einstein: o lado humano, 1979, p. 19).

As boas teorias da física não permitem remendos: uma vez que não concorde com o experimento, a teoria desaba irremediavelmente. O mesmo não acontece com a astrologia, que usa remendos em profusão. É nesse sentido, imagino, que a astrologia deve ser considerada irrefutável, pois a teoria sempre pode ser modificada de maneira a se ajustar aos fatos.

Newton da Costa é mais otimista e argumenta que a astrologia pode ser refutada por meio de experimentos cuidadosamente projetados. Os astrólogos, contudo, são incansáveis e muito imaginativos. Se inquiridos, muitos deles argumentarão que existem provas abundantes a favor da astrologia e lançarão mão de dados históricos mostrando correlações entre configurações celstes e acontecimentos terrestres. Outros dirão que a astrologia existe há milhares de anos, incorrendo em uma falácia clássica conhecida como "argumento da antigüidade" (se é antigo e ainda existe, deve estar correto). Finalmente, muitos deles, ao serem confrontados com falhas em previsões astrológicas, lembrarão do remendo astrológico definitivo e dirão que "os astros impelem, mas não compelem".

É claro que, se a astrologia pode ser refutada ou não, tudo depende do significado que se dê ao termo "refutar". Se por isso entendemos a elaboração de um conjunto de experimentos que mostrem à comunidade científica internacional que os princípios astrológicos não são válidos, então a astrologia pode ser refutada. Isso, de fato, já foi feito mais de uma vez. Por outro lado, se por "refutar a astrologia" entendemos "convencer os astrólogos, imagino que isso jamais acontecerá. Da experiência que tenho com astrólogos, eles jamais aceitarão qualquer prova. É claro que isso somente mostra que a astrologia é imune a críticas e, assim sendo, não é ciência. QED.

Newton da Costa também lembra que não é possível justificar logicamente todas as nossas crenças, pois sempre existe um conjunto de crenças primitivas assumidas anteriormente. A maioria das pessoas não se dá conta de tais crenças primitivas e as tem como embutidas no funcionamento do universo. A ciência é o único ramo do conhecimento humano que invoca a crítica constante como maneira de verificar a validade de qualquer crença, primitiva ou não. Nessa singela característica reside sua enorme importância.

O contato com cientistas como Newton da Costa é sempre estimulante. Na voz dele, até mesmo afirmações aparentemente triviais, como "algumas pessoas são mais inteligentes do que outras", se revestem de um significado especial. É fascinante que ele, em uma idade na qual muitos brasileiros já se aposentaram há muito, continue escrevendo e participando de congressos e eventos científicos. Que isso sirva de exemplo a todos nós.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Marcelo Gleiser está de volta

O físico Marcelo Gleiser é capa da revista Época desta semana. Já tivemos outros cientistas, brasileiros ou não, aparecendo em capas de revistas semanais, como César Lattes e Stephen Hawking, mas Gleiser é nosso primeiro cientista "pop". E, ao contrário do que possam pensar os puristas, isso é bom.

Tive a oportunidade de conhecer Marcelo Gleiser quando do lançamento do livro "O Fim da Terra e do Céu", em 2001. Ao vivo, ele não tem nada de espalhafatoso, não se veste com roupas esquisitas, fala calmamente e a única afirmação escandalosa que faz, no entender de muitos, é dizer que não acredita em Deus. Ele não é pop nesse sentido de causar tumulto e, espero, nunca participará da "dança dos famosos" ou de coisa parecida. Ele é pop apenas por divulgar a ciência aos leigos e por não ter se esquecido do Brasil, mesmo morando nos EUA desde os 23 anos de idade.

O primeiro cientista pop de que se tem notícia foi Albert Einstein (1879 - 1955), criador da teoria da relatividade. Em 1919, algumas expedições destinadas a observar eclipses solares comprovaram as previsões de Einstein a respeito da deflexão da luz e ele foi rapidamente alçado ao estrelato. A personalidade de Einstein ajudou bastante nesse ponto. Espontâneo, ele não tinha medo de falar em público e a câmara gostava dele. Pouco mais tarde ele se arrependeu dessa fama súbita, que ele dizia não entender e que prejudicava suas pesquisas.

Muitos cientistas pop vieram depois de Einstein, como Richard Feynman, Carl Sagan e Stephen Hawking. Como eles, Gleiser, vivendo em uma era de crescente globalização e de comunicações instantâneas, usa a mídia a favor da educação. No próximo dia 20/08, por exemplo, ele começa a apresentar uma série de 12 episódios intitulada "Poeira das Estrelas", no Fantástico. Ainda há vida inteligente na TV aberta!

Como toda personalidade da mídia, Gleiser tem colhido sua quota de críticas. Em 1998, pouco após o lançamento do livro "A Dança do Universo", o físico Roberto de Andrade Martins, da Unicamp, publicou o artigo "Como distorcer a física: considerações sobre um exemplo de divulgação científica". O "exemplo" em questão é, naturalmente, o livro de Gleiser. Para se ter uma idéia do preciosismo a que chega Martins, ele critica Gleiser por ter usado a frase "Sabemos que o calor sempre flui de objetos quentes para objetos frios". O correto, segundo ele, seria dizer que "Sabemos que o calor sempre flui espontaneamente de objetos quentes para objetos frios". Outros exemplos citados por Martins vão na mesma linha. Como dizia Tom Jobim, "no Brasil, sucesso é ofensa pessoal", e o sucesso público de nossos cientistas ofende profundamente alguns membros da Academia.

O que me preocupa em relação à divulgação científica não diz respeito a essa minúcia de detalhes e a esse rigor, que se espera de um artigo científico, mas que é até mesmo irritante em uma obra destinada ao grande público. O que me preocupa é a dificuldade em se fazer leigos entenderem conceitos difíceis sem o uso da matemática. Um exemplo bastante conhecido é o da mecânica quântica, atualmente usada por vários místicos e autores de auto-ajuda como se fosse uma cura para todos os males, mas que não pode ser compreendida sem a resolução de vários problemas complicados. Gleiser acredita que nem todos os leitores entenderão o que ele tem a dizer, mas que o benefício produzido para muitos é maior do que o prejuízo causado a poucos.

Uma prova dos benefícios da divulgação é o caso, citado pela revista Época, de um estudante de 14 anos, chamado Leonardo Motta, que leu "A Dança do Universo" e começou a se corresponder com Gleiser por e-mail. Orientado por Gleiser, Leonardo começou a estudar física, passou no vestibular da USP e embarca mês que vem para a Universidade de Yale, onde iniciará o doutorado em física de partículas. Esse singelo benefício - outros devem existir - supera de longe qualquer falta de rigor que Gleiser possa ter cometido.

O livro mais recente de Gleiser, "A Harmonia do Mundo", segue uma linha um pouco diferente dos anteriores, pois é um romance sobre a vida do astrônomo Johannes Kepler. Aguardem comentários.

quinta-feira, agosto 10, 2006

Heloísa Helena e falácias lógicas

A entrevista da senadora Heloísa Helena ao Jornal Nacional, em 8/8, me deixou mais surpreso pela forma do que pelo conteúdo. Não tenho dúvidas de que ela é uma das candidatas mais simpáticas do momento atual, mas a impaciência apresentada não revela uma pessoa preparada para assumir a presidência da República. Cortar perguntas pelo meio e respondê-las começando com um "meu amor" me dá a idéia de uma pessoa que está mais preocupada em apresentar uma visão de mundo do que em construir a sociedade igualitária que ela tanto prega. A primeira tarefa pode ser realizada isoladamente, pois cada um pode ter a visão de mundo que bem entenda, por absurda que seja. Mas construir uma sociedade melhor do que atual exige compreender as necessidades dos outros e parece-me que Heloísa Helena está muito mais preocupada em adivinhar tais necessidades, adaptando-as à sua ideologia, do que em entendê-las.

Esses detalhes, contudo, poderão ser polidos por um marketeiro qualquer em todas as campanhas futuras da qual a senadora participará. O problema é o conteúdo da entrevista, já esperado. Os "ismos" (socialismo, marxismo, catolicismo, etc) escorrem da boca da senadora a cada palavra, assim como as falácias lógicas. Perguntada se invadiaria fazendas improdutivas, ela respondeu que não poderia fazê-lo, pois, como presidente da República, deverá seguir a lei. Um belo exemplo de non sequitur, uma falácia lógica que ocorre quando o argumento não decorre logicamente das premissas. Ora, o que o entrevistador desejava saber era se a senadora era favorável à invasão de terras, não se ela conhecia a lei, coisa que se espera de qualquer candidato minimamente preparado. Em outra oportunidade, Heloísa afirmou saber mais de reforma agrária do que a entrevistadora, esbarrando perigosamente em um imperdoável argumento de autoridade.

A distorção do conceito de "democracia" também ficou evidente, mas tal distorção é tão comum em nossos dias que quase não a percebemos. Democracia é simplesmente um sistema de governo no qual o povo tem o poder de decisão, ao contrário da monarquia absolutista, onde o monarca é detentor de tal poder, ou da ditadura, onde o poder de decisão é exercido por um tirano que tomou o governo a força. Decorre que os regimes democráticos são mais liberais e o povo pode se manisfestar livremente, dentro dos limites de leis escritas por ele mesmo, sem temor de represálias. Isso não significa, contudo, que regimes democráticos impliquem automaticamente em desenvolvimento econômico. Heloísa Helena cai nesse erro ao afirmar que a democracia não está consolidada no Brasil porque "48% de toda a riqueza produzida nacionalmente fica com 0,005% da população". As raízes de nossa péssima distribuição de renda estão muito mais relacionadas à nossa cultura patrimonialista e cartorial, além da nossa exuberante incapacidade administrativa, do que à consolidação imperfeita da democracia.

Outra confusão da senadora é o argumento de que o socialismo não pode ser criticado porque nunca existiu verdadeiramente em nenhuma parte do mundo. Essa afirmação não é original, muito menos verdadeira. O socialismo pode ser criticado em tese e de fato. Pode ser criticado em tese porque parte de hipóteses incorretas a respeito da natureza humana. Marx, por exemplo, relevou grandemente o papel do egoísmo humano. E o socialismo pode ser criticado de fato porque as dificuldades de implantação são tão grandes que a tarefa nunca foi levada a cabo. Muitos experimentos não precisam ser completamente realizados para que o fracasso se evidencie. Por exemplo, não precisamos percorrer uma estrada do início ao fim para percebermos que tomamos o caminho errado.

Finalmente, a senadora Heloísa Helena nos apresentou sua já célebre confusão entre socialismo e cristianismo, dizendo que "aprendeu socialismo na Bíblia". Ora, isso é o mesmo que tentar aprender mecânica quântica lendo Aristóteles! Embora alguns dos fundamentos do socialismo utópico sejam semelhantes aos do cristianismo primitivo, misturar ambos significa confundir política e religião, confusão da qual Jesus de Nazaré foi hábil em fugir. E, se eu tenho medo de um socialista ateu, tenho muito mais medo de um socialista cristão, que tem Deus a seu lado para justificar todos os seus atos. Destes, nunca se sabe o que esperar.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Coincidências 2


Há pouco menos de 10 anos, estive em Toronto, Canadá, participando de um treinamento para o projeto "Custos de Interrupção de Energia" da Copel. Viajando em companhia de três colegas mais velhos e conversando sempre com profissionais mais velhos, fui rapidamente apelidado de "mascote".

No segundo dia, à mesa de almoço, a conversa começou a girar em torno do assunto "experiência profissional". Sentado ao lado do Dr. Frank Chu, atualmente vice-presidente da Ontario Power Technologies, o contraste entre experiências profissionais era gritante, mas ele me garantiu que a experiência viria com o tempo (lembro-me claramente de ele ter usado a expressão "in due time"). Então, acabamos o almoço, pedimos a sobremesa, passamos para o café (espresso, que é o único café que um brasileiro consegue beber no Canadá), e vieram aqueles biscoitos da sorte chineses. No meu estava escrito:

"Experience is gained only by living."

"A experiência só se ganha vivendo". Uma das coincidências mais incríveis que já presenciei.

quarta-feira, agosto 02, 2006

Os comerciais mais cretinos do mundo

Até meados da década de 90 era fácil topar com um comercial cretino na TV brasileira. Bastava assistir um comercial de cigarro.

Sim, crianças, houve época nesse país em que os fabricantes de cigarro anunciavam seus produtos em horário nobre. No intervalo da novela das oito, por exemplo, entre um sorriso artificial de Tarcísio Meira e um ataque histérico de uma Helena qualquer, você podia assistir aqueles caubóis cancerosos do Marlboro, montados em seus cavalos cancerosos, perseguindo vacas cancerosas e bebendo café canceroso. Ou então você podia assistir um ator famoso qualquer dizendo que você e ele tinham "alguma coisa em comum". Ou então um ex-jogador qualquer dizendo que gostava de "levar vantagem em tudo, cerrrto?"

A cretinice fumarenta acabou em janeiro de 2001, quando os comerciais de cigarro foram banidos da TV brasileira, esperemos que para sempre. Mas isso não quer dizer que a cretinice publicitária acabou. De fato, com o advento da TV por assinatura e com o aumento da concorrência, ela só se intensificou.

Não estou falando daqueles famosos "infomerciais", que não passam de arremedos de lavagem cerebral tentando nos empurrar furadeiras revolucionárias, equipamentos para ginástica, roupas que emagrecem, chás que emagrecem, comidas que emagrecem e máquinas fotográficas que emagrecem. Estou falando apenas de comerciais comuns, embora cretinos.

Antes de prosseguir, contudo, é conveniente observar que nesses tempos politicamente corretos é arriscado proncunciar a palavra "cretino", pois, de acordo com nosso velho amigo Aurélio, ela significa:

1. Patol. Que sofre de cretinismo.
2. P. ext. Lorpa, pacóvio, idiota.

Assim, em respeito aos cinco leitores desse blog, nenhum dos quais é um lorpa, vou passar a usar o termo "pacóvio" em substituição a "cretino". Os pacóvios não entenderão nada, é claro, mas nessa altura eles já devem ter parado de ler minha pequena "preleção".

Voltando ao assunto, minhas pesquisas televisivas indicam que a pacovice migrou dos comerciais de cigarro para os comerciais de creme dental. Talvez isso esteja relacionado à "lei de conservação da pacovice", que decorre do fato que os publicitários que trabalhavam em comerciais de cigarro tiveram que migrar para outras áreas, levando junto sua pacovice.

Poucas coisas são mais irritantes que assistir um comercial que tenta vender uma mistura pastosa de sabão, flúor, pó abrasivo e hortelã (ou menta americana, ou pimenta mexicana, ou qualquer coisa parecida). Um comercial de creme dental bem feito já é ruim, mas um comercial de creme dental pacóvio é mais irritante que Chitãozinho e Xororó tentando cantar uma ópera de Verdi, acompanhados de uma araponga no cio e de um porco sendo estripado.

Em um deles, direcionado a crianças pacóvias e embalado por uma musiquinha muito da lorpa, os publicitários tentam nos convencer que "com um belo sorriso, você pode chegar a presidente". Tudo bem, recomenda-se que presidentes de empresa tenham o sorriso em dia, mas só isso não basta, né?

Mas isso não é nada. Em uma série recorrente de comerciais, um ator amador, conversando com uma pessoa fora da cena, comenta sobre seus problemas dentais. Presume-se que, em meio a uma conversa qualquer, as pessoas finalmente chegam naquele ponto em que começam a falar de seus problemas com mau hálito, placas bacterianas, tártaro, dentaduras, gengivas inchadas, fístulas purulentas e dentes podres. E um ator em início de carreira, incapaz de conferir a ênfase correta a uma curta frase, é capaz de conferir a dose exata de autoridade necessária para que um consumidor compre o creme dental XYZ, não é?

E isso ainda não é o pior, pois esses comerciais simplíssimos, rodados em uma única sala de estar, com uma única câmera e um único ator, são pacóvios a ponto de conter erros de continuidade! Em um deles, por exemplo, o cabelo da atriz oscila da frente dos ombros para trás, e vice-versa, enquanto a câmera faz os cortes. Fantástico!

Para nosso terror, nunca é demais lembrar Murphy, que dizia: "sorria hoje, pois amanhã será pior". De fato, os comerciais pacóvios de dentifrício não são nada perto da verdadeira lorpice profissional que invadirá as televisões brasileiras a partir de 15 de agosto próximo: o horário eleitoral gratuito. Senhor, tende piedade de nós!