terça-feira, fevereiro 27, 2007

Os milagres de frei Galvão

Poucas coisas são mais estranhas do que o costume católico de transformar mortos ilustres em santos. Um santo, lembremos, é simplesmente uma pessoa que se supõe ter ido para o “céu”, onde estabeleceu uma relação muito próxima com Deus, vindo a trabalhar como seu intermediário para as causas humanas. O fato de um ser onipotente, onisciente e onipresente precisar de um intermediário é um dos grandes mistérios não esclarecidos pelo catolicismo. Mesmo assim, no momento, existem mais de 10 mil santos na Igreja Católica Apostólica Romana, número que aumenta em muito se incluirmos os santos da Igreja Ortodoxa. Isso certamente transforma o catolicismo em uma das maiores religiões politeístas do mundo.

Na antiguidade, a maneira mais fácil de se tornar santo era morrendo pela causa religiosa. Em uma época de grandes conflitos entre as religiões pagãs e a nova fé, era sempre fácil encontrar gente disposta a ser martirizada. Hoje em dia a disponibilidade de mártires em potencial diminuiu bastante, pelo menos entre os católicos, e a igreja tem que recorrer a outro expediente para provar a santidade de quem quer que seja: os milagres.

Infelizmente, para nosso desalento, os alegados milagres nunca são algo como ressuscitar os mortos ou fazer crescer um cérebro em um bebê anencéfalo. No caso de Frei Galvão, que provavelmente se tornará o primeiro santo genuinamente brasileiro, os milagres são prosaicos ao extremo.

O milagre aprovado para a canonização de Frei Galvão ocorreu na gravidez de alto risco da paulistana Sandra Grossi de Almeida, que tinha um problema de má formação do útero, conhecido como “útero bicorno”. Isso resultava em grande dificuldade para engravidar e fez com que ela sofresse três abortos espontâneos no passado. Na quarta tentativa, em 1999, os médicos não acreditavam que a gestação pudesse chegar ao fim e consideravam muito difícil ultrapassar a 28ª semana.

Muito religiosa, Sandra sempre tomava as “pílulas de Frei Galvão” e rezava com toda a família. Apesar do prognóstico médico de provável aborto tardio, ou de que ela atingisse no máximo o 5° mês, a gestação evoluiu normalmente até a 32ª semana. Sandra fez repouso absoluto de junho a novembro de 1999 e o parto cesariano foi realizado no dia 11 de dezembro, depois da ruptura da bolsa. Não houve complicações e o menino, batizado como Enzo, é saudável e ativo.

Pessoalmente, fico feliz que uma mulher tão disposta a ser mãe consiga realizar o seu sonho. Que o nascimento do menino tenha se dado por razões sobrenaturais, por outro lado, é outra história. Como um pouco de ceticismo nunca é demais, cabe a seguinte pergunta: qual a probabilidade de uma mãe portadora de útero bicorno dar à luz uma criança saudável?

Ao fazer essa pergunta na lista de discussão CienciaList [1], um colega me enviou um link para um abstract de artigo sobre o assunto [2], no qual médicos da Universidade Católica do Sagrado Coração, em Roma, relatam as investigações realizadas em 21 pacientes portadoras de úteros bicornos. Segundo o abstract, a probabilidade de uma mulher com útero bicorno dar à luz uma criança viva, sem cirurgia de correção prévia, é de 30% no pior caso. Trata-se de uma probabilidade elevadíssima e, de fato, uma pesquisa rápida na internet mostra que a freqüência do nascimento de filhos saudáveis de mães portadoras de úteros bicornos é bastante grande.

Imagino que os especialistas do Vaticano, que fica bem perto da Universidade do Sagrado Coração, tenham examinado esse artigo ao avaliar o milagre atribuído a Frei Galvão. Imagino também que eles tenham concluído que, na situação específica da brasileira Sandra, a probabilidade de sucesso era reduzidíssima, sendo um milagre a melhor explicação do ponto de vista católico. Contudo, probabilidade reduzidíssima não significa probabilidade nula, e entramos em um terreno científico fascinante, cheio de conexões com nossa vida diária: o terreno das probabilidades de eventos improváveis.

Os seres humanos, vivendo vidas tão curtas, dificilmente conseguem entender intuitivamente um evento que ocorre com probabilidade de uma em um milhão, de uma em dez milhões, de uma em um bilhão. No entanto, tais eventos ocorrem o tempo todo. Basta ver o caso da Mega Sena brasileira. Um cálculo combinatório elementar mostra que a probabilidade de alguém acertar os seis números da Mega Sena é de uma em mais de 50 milhões. E, no entanto, desde que o prêmio foi criado, em 1996, mais de 230 ganhadores já foram contemplados com a Mega Sena. Existem duas justificativas para isso. A primeira é que o número de apostas é muito elevado, o que significa que, embora a probabilidade de sucesso individual seja baixa, a probabilidade de alguém ganhar, independente de quem, é maior. A segunda justificativa é que não é necessário que alguém repita uma aposta 50 milhões de vezes para obter sucesso. De fato, a história das loterias e dos jogos de azar mostra que o sucesso pode ser obtido na primeira tentativa, com uma única aposta, a despeito das baixas probabilidades. É isso que se chama “sorte de principiante”.

A nossa compreensão deficiente dos eventos de baixa probabilidade faz com que encaremos o universo de maneira mágica e atribuamos aos deuses aquilo que é apenas coincidência. Mas o fato é que uma probabilidade de uma em um trilhão ainda está infinitamente distante de uma probabilidade nula. E, se um evento é possível, ainda que altamente improvável, em algum ponto da história desse vasto e antiqüíssimo universo, ele poderá ter ocorrido. Interferência divina ou mera coincidência?

Assim, com todo respeito às pessoas que se julgam abençoadas por Frei Galvão ou por um dos milhares de santos e beatos católicos, um milagre é apenas um evento de baixa probabilidade que nossa limitada compreensão tende a atribuir a uma conspiração do universo. Ou então se trata simplesmente de uma história contada de maneira excessivamente otimista.

Apesar de tudo, minha opinião pessoal é que um santo brasileiro não melhorará a vida de nosso combalido e valoroso povo. A pergunta que importa não é quantos santos ou quantos beatos o Brasil ainda terá, mas sim: quando teremos nosso primeiro prêmio Nobel? (Obs.: não vale Nobel da Paz).

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[1] A CienciaList é uma das melhores listas brasileiras de discussões sobre assuntos científicos. A página da lista é http://br.groups.yahoo.com/group/ciencialist/ .

[2] MANESCHI, F. et al. Reproductive performance in women with bicornuate uterus. Acta Eur Fértil. v. 24, n. 3, p. 117-120, mai-jun 1993. Disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?cmd=Retrieve&db=pubmed&list_uids=7985453&dopt=Citation .






sexta-feira, fevereiro 23, 2007

O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte II: Consumidores Livres

Antes de 1999, todo consumidor brasileiro de energia elétrica era “cativo” de uma distribuidora de energia, ou seja, não era livre para escolher de quem iria adquirir energia elétrica ou para negociar os preços. O fornecedor de energia era obrigatoriamente a distribuidora que detinha a concessão da área onde o consumidor estava instalado. Em 1999, a Carbocloro S.A. Indústrias Química, instalada em São Paulo, transformou-se no primeiro consumidor livre brasileiro quando passou a ser atendida pela Companhia Paranaense de Energia – Copel, instalada no Paraná. Naquela época, distribuidoras de energia podiam atender consumidores livres, até mesmo na área de concessão de outras distribuidoras. No modelo atual, as distribuidoras não podem mais atender consumidores livres, somente os cativos, e não podem atuar fora de suas áreas de concessão.

Consumidores livres são aqueles que podem escolher livremente de quem adquirir energia elétrica. Fisicamente, o consumidor livre está sempre conectado à distribuidora local (ou à rede de transmissão, caso o acesso se dê em tensões iguais ou superiores a 230kV). Comercialmente, o consumidor adquire energia de uma fonte que pode estar em qualquer ponto do Sistema Interligado Nacional, o qual abrange 97% da capacidade de produção de energia do sistema elétrico brasileiro (ficam de fora apenas alguns sistemas isolados, localizados principalmente na Amazônia). O consumidor livre pode negociar livremente os preços da energia elétrica, mas deve pagar para ter acesso à rede por meio de uma Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD), caso esteja conectado a uma distribuidora, ou por meio de uma Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST), caso esteja conectado à Rede Básica de transmissão (tensões iguais ou superiores a 230kV). A atuação de comercializadoras de energia, empresas especializadas que podem atuar como “brokers” ou como “traders”, é bastante comum, pois o “core business” do gerador é produzir energia elétrica, não comercializá-la. Assim, do ponto de vista comercial, tanto geradores quanto comercializadoras podem ser caracterizadas como “fontes de energia”.

No momento atual, nem todo consumidor brasileiro pode se tornar livre, prerrogativa concedida penas aos consumidores que atendam os requisitos estabelecidos pela Lei 9.074/1995, que criou as figuras do Consumidor Livre e do Produtor Independente de Energia. O primeiro desses requisitos é pertencer ao “Grupo A”, que é o grupo dos consumidores de alta tensão. Assim, consumidores residenciais não podem se tornar livres, pois pertencem ao “Grupo B”, de baixa tensão. Os demais requisitos são os seguintes:

  • Consumidores instalados antes de 8/7/1995 (“consumidores velhos”): demanda mínima de 3 MW e tensão de atendimento maior ou igual a 69 kV.
  • Consumidores instalados após 8/7/1995 (“consumidores novos”): demanda mínima de 3 MW e atendimento em qualquer tensão do Grupo A.
  • Consumidores atendidos por Fonte de Energia Incentivada (Pequena Central Hidrelétrica, Biomassa, Solar ou Eólica): demanda mínima de 500 kW e atendimento em qualquer tensão do Grupo A.

Nota-se, no que diz respeito aos consumidores denominados “novos”, que a única restrição à migração para o mercado livre é a demanda contratada, que deve ser igual ou superior a 3 MW (consumidores com esse nível de demanda já são obrigatoriamente do Grupo A). Esses consumidores “novos”, contudo, são pouco numerosos se comparados aos consumidores instalados antes de 1995, que enfrentam a restrição adicional do atendimento em tensões iguais ou superiores a 69 kV.

Os consumidores incentivados são aqueles atendidos por Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), usinas de biomassa, solares ou eólicas, coletivamente denominadas Fontes de Energia Incentivada (FEI). A demanda mínima de tais consumidores deve ser de 500 kW e o contrato de compra e venda deve ser firmado diretamente entre consumidor e gerador. Embora não haja restrição de tensão, os preços de energia das FEI só tornam a migração viável quando o consumidor pertencer aos grupos A4 (2,2kV a 25kV), A3a (30kV a 44kV) ou AS (subterrâneo) [1].

Em julho de 2006 existiam cerca de 500 consumidores registrados como membros da CCEE. Isso não significa, contudo, que existam somente 500 unidades consumidoras livres, pois cada agente pode representar mais de uma unidade. De fato, o consumo das unidades livres já representa mais 25% do consumo nacional. E continua crescendo.

Nos países mais desenvolvidos, como é de se esperar, os consumidores livres são muito mais presentes. Na Inglaterra, todos os consumidores são livres. Na Austrália, 100% do mercado da Costa Leste é elegível, ou seja, qualquer consumidor, inclusive os residenciais, pode optar por outro fornecedor de energia, se assim o desejar. Na Europa, 80% do mercado é livre e a meta é atingir 100% de elegibilidade em 2007. Nos Estados Unidos, mais de 62% dos consumidores são livres, com o avanço da liberalização variando bastante de um estado para outro. Mesmo no Canadá, tradicionalmente monopolista e estatal, e onde o processo de desregulamentação se deu no velho estilo brasileiro “passinho pra frente, passinho pra trás”, mais de 40% dos consumidores já são livres [2].

Nos mercados mais desenvolvidos, as distribuidoras funcionam apenas como empresas de transporte e entrega de energia e não atendem mais o consumidor no que se refere à comercialização de energia em si. No jargão do setor elétrico, dizemos que tais distribuidoras são “empresas fio”, enquanto os contratos de compra e venda de energia são firmados entre consumidores e comercializadoras de energia, as quais, por sua vez, adquirem energia no atacado, por meio de contratos de curto ou longo prazo firmado com produtores independentes de energia. Outra possibilidade é a aquisição de energia em “bolsas de energia”, que funcionam de maneira semelhante às conhecidas bolsas de commodities. Assim, como todos os consumidores de tais mercados já são livres, não há mais competição “pelo mercado” (entre comercializadoras e distribuidoras). Toda a competição se dá “no mercado”, exclusivamente entre comercializadoras, com a possível participação dos produtores independentes, dependendo do modelo adotado. No Brasil, onde a figura do consumidor cativo foi mantida, ainda existe competição entre distribuidoras e comercializadoras, situação que se espera mudar nos próximos anos.

A figura dos produtores independentes de energia é assunto do nosso próximo artigo.

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[1] ALMEIDA, Alvaro A. A comercialização da energia elétrica no varejo: riscos e oportunidades. In: XVIII SNPTEE. Curitiba. 2005.

[2] LUDMER, Paulo. Expansão do setor elétrico: mercado, recursos escassos, obras prioritárias e administração dos riscos. In: ABRACE - Fórum Continuado de Energia. Agosto de 2004. Disponível: http://www.ebape.fgv.br/novidades/pdf/D01P02A03.ppt .

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Uma história horrorosa

Quem conta a história é o professor Francisco Antonio Doria (emérito, UFRJ), que a ouviu do professor Newton da Costa, um dos mais importantes lógicos brasileiros, atualmente na UFSC, que autorizou a divulgação.

Um primo do professor Newton, general reformado, morava no Rio de Janeiro, onde tinha dois apartamentos: um para residência e o outro para escritório. Neste, o primo do professor Newton acumulou uma vasta coleção paranista: primeiras edições, outros livros raros, documentos, etc, etc. Morreu há 25 anos. A viúva ofereceu, por preço razoável, a biblioteca a uma universidade estatal do Rio (não sei qual delas, pois o prof. Doria teve a elegância de não revelar). Pediu apenas que a coleção ficasse íntegra, e que a entidade garantisse a manutenção do bom estado da coleção. O pedido foi negado.

A viúva foi então a Curitiba e ofereceu o mesmo lá, mas agora de graça, sem custos. Pedia apenas o tal compromisso da conservação. Mais uma vez o pedido foi recusado.

A viúva já estava desesperada, quando um dia bateu à sua porta o cônsul da Austrália, que comprou todo o acervo por bom preço e o levou para a Austrália, onde está até hoje.

Assim, se você quiser estudar o Paraná a fundo, não se esqueça de incluir uma passagem para Canberra no seu projeto.

Essa curta história, tristemente recorrente, é típica do nosso modo de pensar e agir. Temos que mudar isso!

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte I: Introdução

Um fato ainda desconhecido de muitos tomadores de decisão, especialmente em empresas de médio porte, é que uma grande parcela dos consumidores brasileiros de energia elétrica já são livres para escolher de quem irão adquirir energia. Esses consumidores livres surgiram com a reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro, ocorrida a partir da publicação da Lei 9.074/1995, inspirada nas experiências de outros países e que criou também a figura do produtor independente de energia.

Na maior parte dos países que reestruturaram seus setores elétricos, a energia elétrica passou a ser vista como uma commodity negociada em um ambiente competitivo. Para viabilizar a competição e torná-la transparente, é necessário separar essa commodity dos serviços a ela associados (transmissão e distribuição). No Brasil, tal separação foi viabilizada em duas frentes. A primeira delas foi a desverticalização das empresas de energia elétrica, ou seja, a separação dos ativos de geração, transmissão e distribuição nos casos em que eram detidos por uma mesma empresa. Caso contrário, a competição oferecida pelas empresas verticalizadas seria desigual frente aos geradores não verticalizados. A segunda frente foi a separação das antigas tarifas de fornecimento em Tarifas de Uso (TUSD e TUST) e Tarifas de Energia (TE), no caso de consumidores cativos, e em Tarifas de Uso e Preços de Energia, no caso de consumidores livres. Desta forma, o consumidor de energia pode ter uma noção mais precisa dos respectivos valores pagos pelos serviços do sistema e pela energia efetivamente comprada.

Em alguns países, como Inglaterra e Noruega, os preços da energia elétrica variam diariamente em intervalos fixos (15, 30 ou 60 minutos, dependendo do caso) e são definidos pela livre interação entre a oferta e a demanda no curto prazo. Nesse regime, denominado loose pool, o despacho energético (*) é descentralizado e depende das ofertas dos geradores e das condições de carga. A comercialização de energia pode ser feita por meio de contratos bilaterais de longo prazo ou por meio de operações de curto prazo em um mercado spot (**), sujeito aos preços de curto prazo. Note-se que a variação diária de preços não é repassada aos consumidores, a não ser no caso daqueles que decidiram deliberadamente pela exposição aos preços spot. Em geral, o risco do curto prazo é gerenciado e assumido pelos agentes de geração e comercialização.

No Brasil, o consórcio de consultores que deu suporte à primeira rees­truturação do Setor Elétrico Brasileiro, conhecido como Projeto RE-SEB e concluído em 1998, não recomen­dou a livre negociação de energia em um mercado spot e nem o despacho descentralizado da geração [1]. Num regime que os consultores denominaram tight pool, o despacho continua a ser definido centraliza­damente pelo Operador Nacional do Sistema – ONS. O mercado spot existe, mas tem seus preços definidos com base nos cus­tos marginais de curto prazo (ou seja, custos marginais de operação), obtidos por meio de uma cadeia de programas computacionais conhecidos como “modelos de otimização”. Esses preços são atualmente denominados “Preços de Liquidação de Diferenças”, PLD.

O racionamento ocorrido entre 2001 e 2002, a falência fraudulenta da Enron, que atuava também como comercializadora de energia, e o ataque ao World Trade Center afetaram significativamente o ritmo da reestruturação que vinha sendo realizada no Brasil. Junte-se a isso a mudança para um governo brasileiro de centro-esquerda e estava formado um quadro de incertezas a respeito do livre mercado e da atuação de agentes setoriais privados. Tal quadro vigorou entre 2002 e 2004. Apesar de algumas vozes estatizantes dessa época, que viam o consumidor livre como uma falácia, o produtor independente como inconstitucional e as comercializadoras como meros atravessadores [2], a reforma setorial conduzida a partir de 2004 manteve as figuras de tais agentes, bem como o mercado livre.

No modelo atual do Setor Elétrico Brasileiro, os consumidores livres contratam energia junto a geradores ou comercializadoras e pagam pelo acesso à rede por meio de uma tarifa de uso, informalmente conhecida como “pedágio”. A maior parte dos consumidores paga o acesso à rede diretamente ao agente de distribuição local, mas os consumidores conectados em tensões de 230 mil volts ou superiores pagam o acesso à rede aos agentes de transmissão. Os consumidores cativos continuam a existir e são aqueles não qualificados para a migração para o mercado livre, ou então aqueles consumidores qualificados, mas que ainda não efetivaram a migração. Este último caso ocorre basicamente por três razões: (a) contratos cativos ainda não vencidos; (b) falta de conhecimento da existência do mercado livre ou; (c) falta de viabilidade em se migrar para a modalidade livre.

A estrutura atual do Setor Elétrico Brasileiro é regulada pela Lei 10.848/2004, pelo Decreto 5.163/2994 e legislação acessória. Os principais agentes setoriais são:

- Ministério das Minas e Energias - MME (www.mme.gov.br): detém o poder concedente.
- Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL (www.aneel.gov.br): detém os poderes regulador e fiscalizador.
- Operador Nacional do Sistema - ONS (www.ons.com.br): responsável pela operação física do sistema e pelo despacho energético centralizado.

- Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE (www.ccee.org.br): responsável pela operação comercial do sistema.

A comercialização de energia elétrica é atualmente realizada em dois ambientes diferentes:

- Ambiente de Contratação Livre (ACL): destinado ao atendimento de consumidores livres por meio de contratos bilaterais firmados com produtores independentes de energia, agentes comercializadores ou geradores estatais. Estes últimos só podem fazer suas ofertas por meio de leilões públicos.

- Ambiente de Contratação Regulada (ACR): destinado ao atendimento de consumidores cativos por meio das distribuidoras, sendo estas supridas por geradores estatais ou independentes que vendem energia em leilões públicos anuais.

Esse modelo híbrido, simultaneamente estatal e liberal, inédito no mundo, foi a maneira encontrada pelo governo atual para dar vazão à sua ideologia de planejamento centralizado e controle estatal, ao mesmo tempo em que respeitava as regras e contratos estabelecidos no modelo do governo anterior, inspirado no modelo liberal inglês.

A CCEE é responsável pela liquidação das operações do ACL e pela operacionalização de alguns aspectos do ACR, como os leilões de energia e o MCSD (Mecanismo de Compensação de Sobras e Déficits).

Todos os agentes de geração e consumo que desejem comercializar energia no ACL devem registrar seus contratos mensais de maneira eletrônica, por meio de uma ferramenta computacional conhecida como SINERCOM. Os consumidores livres devem obrigatoriamente se tornar agentes da CCEE, assim como os geradores com potência instalada acima de 50MW. Geradores com potência abaixo de 50MW podem ser representados na CCEE por meio de outro agente (um comercializador, por exemplo).

A CCEE determina e publica semanalmente os Preços de Liquidação de Diferenças, PLD. Ao final do mês, após o registro e validação de todos os contratos, a CCEE usa os PLDs para liquidar as operações de compra e venda de energia, alocando sobras e déficits energéticos aos agentes adequados. Os PLDs são calculados individualmente para cada um dos quatro submercados existentes (Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Norte e Nordeste). Adicionalmente, as penalidades, em caso de déficit energético (consumo superior à energia contratada), são calculadas por meio do Valor Anual de Referência, VR. Para o ano de 2007, o VR foi fixado em R$ 77,70/MWh e corresponde ao preço máximo da energia vendida nos leilões de empreendimentos existentes do ACR, realizados em 2004, com entrega em 2007 [3].

Vale a ressalva de que o termo “déficit energético” diz respeito somente a uma falta de energia contratada em determinado período. Na operação física do sistema, excetuando-se condições de racionamento ou de interrupção acidental de fornecimento, nenhum consumidor adimplente deixa de ter suas necessidades energéticas atendidas.

A existência de um Ambiente de Contratação Livre permite a interação adequada e competitiva entre consumidores livres e fornecedores de energia. Já existem mais de 500 consumidores livres no Brasil, a maioria deles de grande e médio porte, pertencentes ao setor industrial e somando mais de 25% do consumo nacional. Contudo, nem todo consumidor de energia pode se tornar livre. Esse é o assunto do nosso próximo artigo.

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(*) “Despacho” é um termo usado internacionalmente para caracterizar a entrega de energia ou potência por parte de um gerador.

(**) O termo “mercado spot” tem, no setor elétrico, o mesmo significado daquele do mercado de commodities convencionais: um mercado onde as transações são feitas com pagamento a vista e entrega no curto prazo. No Brasil, devido a características particulares do processo de comercialização, o curto prazo é definido como um mês.

[1] BORN, P.H.; ALMEIDA, A.A. Mudanças estruturais no setor elétrico: formação e regulação de preços. CIER/SUPLAMA, 1998.

[2] SAUER, I et al. Um novo modelo para o setor elétrico brasileiro, Programa Interunidades de Pós-graduação em Energia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2002.

[3] BRASIL. ANEEL. Boletim Energia. n. 243. outubro 2006. Disponível: http://www.aneel.gov.br/arquivos/PDF/boletim243.htm. Acesso : 15 de fev 2007.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Indignação

"Bless the beasts and the children,
For in this world they have no voice,
They have no choice."

Até quando vamos deixar que crianças inocentes sejam assassinadas?

domingo, fevereiro 04, 2007

Esses engenheiros fantásticos e suas calculadoras maravilhosas

A quantidade de coisas que acabamos por descobrir nessa era de blogs, comunidades virtuais e listas de discussão é realmente impressionante. Se, há meros 10 anos, um professor de uma universidade estadual brasileira qualquer, situada em uma cidade interiorana qualquer, publicasse uma curta nota em um jornal local afirmando ter descoberto um erro no cálculo de uma importante quantidade matemática, pessoas como eu, que moram a centenas de quilômetros de distância, dificilmente ficariam sabendo. E é precisamente isso que faz o engenheiro e professor Carlos Pereira de Novaes, da Universidade Estadual de Feira de Santana , que diz ter descoberto um erro no cálculo do número e, a base dos logaritmos naturais e freqüentemente denominado "constante de Napier" ou "número de Euler". Nessa era da internet, contudo, a notícia nos chega por e-mail e podemos perder com ela algum tempo de um fim de semana
No curto artigo em questão, intitulado "Professor da Uefs verifica erro em simbologia matemática" (*), o professor inicia com a definição mais conhecida do número de Euler, dada pela seguinte equação:


A seguir, o autor, pedindo desculpas a Euler (**), afirma ter usado uma calculadora eletrônica para estimar o limite, tendo obtido, não o número 2,71828182846, mas sim o número 1.

Imediatamente após ler o artigo, abri uma planilha eletrônica e fiz alguns cálculos. Para x maior do que 107 e menor do que 1011, o resultado é dado pela planilha com erro de 10-7. Acima de 1011, o erro começa a aumentar até que o resultado se torna unitário a partir de 1016. O que percebemos é que, obviamente, a planilha calcula inicialmente o número (1+1/x), e depois o eleva a x. Para x>1016, o resultado para 1/x é tão pequeno que a planilha simplesmente o arredonda para zero, obtendo-se e=1, pois o número 1 elevado a qualquer número é também igual a 1. O gráfico da evolução do erro de cálculo de acordo com o aumento de x é ilustrado a seguir.



O autor faz então a ressalva de que o resultado é esse mesmo e que o número (1+1/x) deve ser calculado antes de ser elevado a x. Se isso fosse verdade, a questão não seria simplesmente de “simbologia”, mas sim de uma verdadeira revolução na matemática, com reflexos na física, química e também na engenharia. Só para começar, muita coisa que os estudantes de engenharia elétrica aprendem sobre circuitos elétricos estaria simplesmente errada!

O autor diz ter usado uma calculadora científica HP para obter seus resultados. Infelizmente, tenho apenas uma Casio fx-82TL, que realmente fornece e=1 para a equação (1) e com x>1016. Coisas da vida.

Evidentemente, existem métodos matematicamente formais para se demonstrar a validade da equação (1), mas engenheiros preferem verificações numéricas a demonstrações analíticas. Mas como contornar as limitações de planilhas e calculadoras eletrônicas, sem recorrer a complicados pacotes numéricos?

Uma possibilidade é desenvolver um programa de computador que faça o cálculo com precisão maior do que uma calculadora ou planilha eletrônica. O Turbo Pascal, por exemplo, dispõe de variáveis reais de precisão estendida (extended), que constituem em números com mais de 400 casas decimais. Usando a função Power do Pascal, implementada no Turbo Delphi Explorer, escrevi então um pequeno programa para calcular o número de Euler. A situação melhorou, mas não muito. Em vez dos cálculos entrarem em colapso para x>1011, o colapso ocorreu para x>1014, quando o erro se tornou maior do que 10-6. Nem mesmo as variáveis extended resistem a cálculos com esses números enormes (é verdade que usei um laptop com um modesto processador Celeron de 1,5 GHz).

Pensei então em contornar as limitações da função Power usando um processo iterativo: calcula-se inicialmente o número (1+1/x), multiplicando-se o resultado por ele mesmo x vezes. O processo funcionou admiravelmente bem, com um pequeno detalhe: para números realmente grandes, digamos x>1020, os testes indicam que o processamento demoraria alguns dias, talvez anos. Esse é o problema com limites com variáveis tendendo ao infinito: eles demoram uma eternidade para serem testados! Para manter o tempo de processamento inferior a 40 minutos, por exemplo, o valor máximo de x deve ser 1011.

Mas, como diz o velho ditado matemático, “quando você não puder vencer, trapaceie”. Após quebrar a cabeça por algum tempo, descobri que “trapaça”, nesse caso, consiste em realizar as iterações de maneira recursiva. Primeiro multiplicamos (1+1/x) por ele mesmo, obtendo (1+1/x)2. A seguir, multiplicamos (1+1/x)2 por ele mesmo, obtendo (1+1/x)4 e assim por diante. Esse método implica em que o número x deve ser da forma x=2n, onde n é o número de iterações. O número 2 aparece porque os fatores de uma iteração, são multiplicados aos pares.

Usando o método de iterações recursivas, foi possível reduzir o número de iterações para apenas 63, realizadas em menos de um milisegundo e não em algumas décadas. O valor correspondente de x é 263=9,22x1018, ou aproximadamente 1019, uma melhoria de pelo menos 1.000 vezes em relação aos métodos anteriores.

Para n>64, infelizmente, o método entra em colapso novamente e o resultado torna-se unitário. Contudo, o uso de métodos computacionais progressivamente mais sofisticados, com resultados condizentes para e, deixa claro que o problema em questão diz respeito às limitações computacionais existentes, e não a qualquer problema com a definição do número de Euler.

O programa executável, o respectivo código-fonte em Turbo Delphi Explorer e a planilha que usei para fazer alguns cálculos estão disponíveis em http://www.daelt.sh06.com/profs/alvaug/Euler.zip. É só verificar.

É claro que mesmo o número 1019 ainda está tão longe do infinito quanto o número 10, e nenhum matemático que se preze aceitaria verificações numéricas como prova de um teorema. Felizmente, há outras definições para o número de Euler, tais como a que se segue, baseada na expansão da função exponencial em série de McLaurin:



onde x! é o fatorial de x. Inserindo essa definição em uma planilha eletrônica, obtemos resultados com erro decrescente até que, em x=16, o erro se anula, obtemos o valor correto para o número de Euler e o grande matemático pode descansar em paz. O problema certamente está na maneira como os computadores tratam números muito pequenos em algumas situações, mas não em outras.

O problema levantado pelo professor Novaes e a reação a ele deixam algumas lições, a primeira delas dirigida especialmente aos alunos de engenharia de todos os tempos e lugares:

  • Não confie demais na sua HP.

  • Quando um pesquisador independente afirma ter descoberto provas de que um resultado conhecido há séculos, testado e comprovado pelas mais diversas pessoas nos mais diversos lugares, está errado, é muito provável que este pesquisador esteja enganado. Contudo, ele jamais se convencerá disso.

  • Quando confrontados com a contestação de um resultado conhecido há séculos, publicada por um pesquisador independente, a maioria dos profissionais de qualquer área responderá com argumentos pessoais, visando desqualificar o pesquisador em vez de contestar os argumentos dele.

  • Antes de publicar seus resultados revolucionários, envie-os para ser revisado por profissionais da área. Isso diminuirá o constrangimento e possíveis ameaças de
    morte. Coisas da vida.

(*) O artigo original, publicado em http://www.uefs.br/portal/news/2007/professor-da-uefs-verifica-erro-em-simbologia-matematica, foi removido, mas continua disponível em http://www.universiabrasil.net/noticia/materia_dentrodocampus.jsp?not=35247. O assunto também está em discussão em algumas comunidades do Orkut, tais como http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=68052&tid=2511957267834183215.
(**) Não é necessário pedir desculpas a Euler. O número e foi introduzido pelo matemático John Napier e a equação (1) foi estudada pelo matemático Jacob Bernoulli. Tudo o que Euler fez, nesse caso, foi introduzir a notação e (de “exponencial”), em sua obra Mechanica, de 1736.


sábado, fevereiro 03, 2007

Apocalypto: o retorno do maia intergaláctico

Advertência: o texto abaixo contém spoilers.

Após assistir Apocalypto (2006), de Mel Gibson, a sensação é de certa decepção. Do pouco que eu havia lido antes, o esperado era um épico passado em meio à civilização maia, que vicejou na América Central entre 250 e 900 dC. O que vi, entretanto, foi pouco mais do que um filme de correria no meio da selva, com um herói maia, provavelmente dotado de poderes sobrenaturais, tentando fugir de seus captores.

A história do herói Jaguar Paw começa com uma caçada em meio à floresta (como todos sabem, o filme é falado em maia yucatec, mas, por alguma razão misteriosa, as legendas em português mantiveram os nomes em inglês dos personagens). A seguir, somos levados até a aldeia maia, que lembra em muito uma aldeia indígena comum em meio à floresta. Nada de civilizações exuberantes por enquanto, nada de pirâmides monumentais. Nesse ponto a narrativa é arrastada e aborrecida, agravada com a necessidade constante da leitura das legendas, que desvia a atenção dos acontecimentos. É interessante que um diretor se empenhe tanto em reconstruir a indumentária e costumes de uma civilização e depois direcione a atenção do espectador para o terço inferior da tela. Em sua defesa, Gibson afirma que a ação do filme é tão frenética que não é preciso entender as palavras para acompanhá-lo. Se fosse assim, por que as personagens deveriam falar, afinal? No início do filme, contudo, a intenção de Gibson deve ser apenas mostrar a harmonia da vida em comunidade da tribo de Jaguar Paw; uma espécie de paraíso, como arriscou a crítica Isabela Boscov [1].

Então, chegam os opressores. Não os espanhóis, mas os maias de uma tribo mais avançada. As cenas que se seguem, de estupros, assassinatos e subjugação, já foram mostradas uma centena de vezes em filmes como “Dança com lobos” (Kevin Costner, 1990), “Coração valente” (Mel Gibson, 1995) e até mesmo “Conan, o Bárbaro (John Milius, 1982). Gibson, como sempre, retrata as cenas com crueldade explícita, mas deixa escapar a primeira imprecisão histórica: não há evidências de que os maias percorressem as selvas em busca de vítimas para serem sacrificadas aos deuses. De qualquer forma, é aí que tem início o sofrimento de Jaguar Paw e seus companheiros. Amarrados e humilhados, eles são conduzidos pelos seus captores em um longo caminho rumo ao sacrifício. Impossível não tecer comparações com “A Paixão de Cristo”, também de Gibson, onde a via-crúcis e o sacrifício de Jesus de Nazaré foram retratados com requintes de sadismo.

No filme, entretanto, os maias não crucificam suas vítimas, mas dão a elas um tratamento muito mais sumário: a extirpação do coração ainda vivo, ato necessário para aplacar a sede dos deuses, que, raivosos, estavam dando pouca atenção às plantações do povo da cidade. Na última hora, um eclipse salva Jaguar Paw do sacrifício.

Para milhões de pessoas no mundo, a impressão final dos maias será a de um povo sanguinário, escravagista, cruel e sádico. Esse aspecto do filme deixou em pânico alguns acadêmicos, especialmente antropólogos e arqueólogos, que afirmam que a civilização maia, embora violenta, era a mais sofisticada das civilizações do Novo Mundo [2]. Em resumo, os maias criaram cidades monumentais e grandes obras de arte, foram astrônomos precisos e não um bando de selvagens assustados com um eclipse solar. Embora correto em alguns aspectos, como o uso de tatuagens, piercings, esculturas em pedra, etc., Apocalypto retrata os maias apenas como um povo bárbaro do Novo Mundo. Para muitos espectadores, a mensagem de Gibson será a de que os maias eram tão cruéis que mereciam morrer.

Para os acadêmicos, o interesse no filme deve acabar com o quase-sacrifício de Jaguar Paw. O que se segue não passa de um filme de ação qualquer. Por causa do eclipse, o sacerdote maia desiste do sacrifício e as vítimas são entregues novamente a seus captores, sendo submetidas a um jogo do tipo “corra tudo o que puder antes que eu o acerte com uma lança”. O herói maia consegue escapar, mas acaba sendo perseguido de maneira obsessiva, tentando retornar para casa com um pedaço de lança enfiado na barriga e recorrendo a todo tipo de truque para escapar do chefe dos captores, cujo filho teve que matar durante a fuga. Uma pessoa normal jamais conseguiria tal feito, mas Jaguar é um tipo especial de maia, talvez um descendente dos “maias intergalácticos” de Lulu Santos.

A correria acaba quando Jaguar Paw e os dois captores restantes chegam à praia e se deparam com os navios espanhóis. Isso é realmente estranho, pois a civilização maia já estava em acentuado declínio em 900 dC, quando as cidades começaram a ser abandonadas. Os espanhóis somente chegaram à península de Yucatán, onde presumivelmente se passa a história, em 1.517 dC. Os maias ainda estavam por lá e, na verdade, resistiram aos espanhóis por 150 anos e resistem aos conquistadores até hoje, mas a civilização e as cidades cerimoniais já haviam desaparecido há séculos. Mais estranho é que Gibson inicie seu filme com uma citação do historiador Will Durant a respeito dos romanos: “Uma grande civilização não pode ser conquistada de fora antes de ter se destruído por dentro”. Aplicada aos romanos, a frase é precisa. Aplicada aos maias, é apenas retórica. Talvez Gibson tenha confundido os maias com os astecas, civilização existente quando da chegada dos espanhóis e dizimada por eles com auxílio de cavalos, armas de ferro e de fogo e, principalmente, da varíola. A propósito, a pequena “menina profeta” que Jaguar Paw e seus colegas encontram a caminho da cidade cerimonial apresenta sinais de varíola, mas essa doença só chegou à América com os espanhóis.

A chegada dos espanhóis no filme serve apenas como um “deus ex machina”, um recurso narrativo banal usado para que Jaguar Paw consiga escapar. Finalmente, o herói consegue salvar sua esposa, que estava escondida em um poço com seus dois filhos, um dois quais havia acabado de nascer dentro do poço que se enchia progressivamente por causa das chuvas incessantes. Mais um feito digno de heróis intergalácticos.

Uma menção final deve ser feita quanto ao título do filme. Gibson diz que “Apocalypto” significa “um novo começo” e é em busca desse novo começo que Jaguar Paw sai no final do filme. Gibson justifica o título dizendo que “para que algo de novo possa começar, algo tem que acabar”. Nesses dias de informação barata e abundante não foi difícil descobrir que “apocalypto” é na verdade um verbo grego que significa “descobrir”, “revelar” e que está mais ligado ao termo “apocalipse”, que significa “revelação”, do que Gibson quer dar a entender. Somente uma mente conturbada é capaz de misturar história maia a profecias bíblicas e querer achar algo de profundo nisso.


[1] BOSCOV, Isabela. Apocalíptico e desintegrado. In: Veja. 24 jan 2007. pp. 102-103. Disponível em < http://veja.abril.com.br/240107/p_102.html>. Acesso: 03 fev 2007.


[2] BOOTH, William. Culture shocker. In: Washington Post. 9 dez 2006. Disponível em < http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/12/08/AR2006120801815.html>. Acesso: 03 fev 2007.