terça-feira, fevereiro 27, 2007

Os milagres de frei Galvão

Poucas coisas são mais estranhas do que o costume católico de transformar mortos ilustres em santos. Um santo, lembremos, é simplesmente uma pessoa que se supõe ter ido para o “céu”, onde estabeleceu uma relação muito próxima com Deus, vindo a trabalhar como seu intermediário para as causas humanas. O fato de um ser onipotente, onisciente e onipresente precisar de um intermediário é um dos grandes mistérios não esclarecidos pelo catolicismo. Mesmo assim, no momento, existem mais de 10 mil santos na Igreja Católica Apostólica Romana, número que aumenta em muito se incluirmos os santos da Igreja Ortodoxa. Isso certamente transforma o catolicismo em uma das maiores religiões politeístas do mundo.

Na antiguidade, a maneira mais fácil de se tornar santo era morrendo pela causa religiosa. Em uma época de grandes conflitos entre as religiões pagãs e a nova fé, era sempre fácil encontrar gente disposta a ser martirizada. Hoje em dia a disponibilidade de mártires em potencial diminuiu bastante, pelo menos entre os católicos, e a igreja tem que recorrer a outro expediente para provar a santidade de quem quer que seja: os milagres.

Infelizmente, para nosso desalento, os alegados milagres nunca são algo como ressuscitar os mortos ou fazer crescer um cérebro em um bebê anencéfalo. No caso de Frei Galvão, que provavelmente se tornará o primeiro santo genuinamente brasileiro, os milagres são prosaicos ao extremo.

O milagre aprovado para a canonização de Frei Galvão ocorreu na gravidez de alto risco da paulistana Sandra Grossi de Almeida, que tinha um problema de má formação do útero, conhecido como “útero bicorno”. Isso resultava em grande dificuldade para engravidar e fez com que ela sofresse três abortos espontâneos no passado. Na quarta tentativa, em 1999, os médicos não acreditavam que a gestação pudesse chegar ao fim e consideravam muito difícil ultrapassar a 28ª semana.

Muito religiosa, Sandra sempre tomava as “pílulas de Frei Galvão” e rezava com toda a família. Apesar do prognóstico médico de provável aborto tardio, ou de que ela atingisse no máximo o 5° mês, a gestação evoluiu normalmente até a 32ª semana. Sandra fez repouso absoluto de junho a novembro de 1999 e o parto cesariano foi realizado no dia 11 de dezembro, depois da ruptura da bolsa. Não houve complicações e o menino, batizado como Enzo, é saudável e ativo.

Pessoalmente, fico feliz que uma mulher tão disposta a ser mãe consiga realizar o seu sonho. Que o nascimento do menino tenha se dado por razões sobrenaturais, por outro lado, é outra história. Como um pouco de ceticismo nunca é demais, cabe a seguinte pergunta: qual a probabilidade de uma mãe portadora de útero bicorno dar à luz uma criança saudável?

Ao fazer essa pergunta na lista de discussão CienciaList [1], um colega me enviou um link para um abstract de artigo sobre o assunto [2], no qual médicos da Universidade Católica do Sagrado Coração, em Roma, relatam as investigações realizadas em 21 pacientes portadoras de úteros bicornos. Segundo o abstract, a probabilidade de uma mulher com útero bicorno dar à luz uma criança viva, sem cirurgia de correção prévia, é de 30% no pior caso. Trata-se de uma probabilidade elevadíssima e, de fato, uma pesquisa rápida na internet mostra que a freqüência do nascimento de filhos saudáveis de mães portadoras de úteros bicornos é bastante grande.

Imagino que os especialistas do Vaticano, que fica bem perto da Universidade do Sagrado Coração, tenham examinado esse artigo ao avaliar o milagre atribuído a Frei Galvão. Imagino também que eles tenham concluído que, na situação específica da brasileira Sandra, a probabilidade de sucesso era reduzidíssima, sendo um milagre a melhor explicação do ponto de vista católico. Contudo, probabilidade reduzidíssima não significa probabilidade nula, e entramos em um terreno científico fascinante, cheio de conexões com nossa vida diária: o terreno das probabilidades de eventos improváveis.

Os seres humanos, vivendo vidas tão curtas, dificilmente conseguem entender intuitivamente um evento que ocorre com probabilidade de uma em um milhão, de uma em dez milhões, de uma em um bilhão. No entanto, tais eventos ocorrem o tempo todo. Basta ver o caso da Mega Sena brasileira. Um cálculo combinatório elementar mostra que a probabilidade de alguém acertar os seis números da Mega Sena é de uma em mais de 50 milhões. E, no entanto, desde que o prêmio foi criado, em 1996, mais de 230 ganhadores já foram contemplados com a Mega Sena. Existem duas justificativas para isso. A primeira é que o número de apostas é muito elevado, o que significa que, embora a probabilidade de sucesso individual seja baixa, a probabilidade de alguém ganhar, independente de quem, é maior. A segunda justificativa é que não é necessário que alguém repita uma aposta 50 milhões de vezes para obter sucesso. De fato, a história das loterias e dos jogos de azar mostra que o sucesso pode ser obtido na primeira tentativa, com uma única aposta, a despeito das baixas probabilidades. É isso que se chama “sorte de principiante”.

A nossa compreensão deficiente dos eventos de baixa probabilidade faz com que encaremos o universo de maneira mágica e atribuamos aos deuses aquilo que é apenas coincidência. Mas o fato é que uma probabilidade de uma em um trilhão ainda está infinitamente distante de uma probabilidade nula. E, se um evento é possível, ainda que altamente improvável, em algum ponto da história desse vasto e antiqüíssimo universo, ele poderá ter ocorrido. Interferência divina ou mera coincidência?

Assim, com todo respeito às pessoas que se julgam abençoadas por Frei Galvão ou por um dos milhares de santos e beatos católicos, um milagre é apenas um evento de baixa probabilidade que nossa limitada compreensão tende a atribuir a uma conspiração do universo. Ou então se trata simplesmente de uma história contada de maneira excessivamente otimista.

Apesar de tudo, minha opinião pessoal é que um santo brasileiro não melhorará a vida de nosso combalido e valoroso povo. A pergunta que importa não é quantos santos ou quantos beatos o Brasil ainda terá, mas sim: quando teremos nosso primeiro prêmio Nobel? (Obs.: não vale Nobel da Paz).

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[1] A CienciaList é uma das melhores listas brasileiras de discussões sobre assuntos científicos. A página da lista é http://br.groups.yahoo.com/group/ciencialist/ .

[2] MANESCHI, F. et al. Reproductive performance in women with bicornuate uterus. Acta Eur Fértil. v. 24, n. 3, p. 117-120, mai-jun 1993. Disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?cmd=Retrieve&db=pubmed&list_uids=7985453&dopt=Citation .






3 comentários:

  1. Excelente!

    Parabéns pelo artigo. Tenho acompanhado seus comentários no meu blog. Sempre pertinentes.

    Abraços,

    Rodrigo

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  2. Anônimo4:39 AM

    Caro Álvaro Augusto,

    Sabemos os católicos chamam a tudo de bom que não se explica de acordo com sua doutrina de "milagre" e a tudo de ruim, de "coisa de Satanás". Isso acontece desde que a igreja foi criada, há mais de 1800 anos.

    Como engenheiro que é (somos colegas, embora de outra área) você "brinca" fácil no campo da ciência das probabilidades e lembro que um colega nosso, engenheiro mecânico e militar, Tenente (se não me engano) Murphy, teria dito (não há provas) que se um evento pode ocorrer, fatalmente ocorrerá.

    Como dito acima "de acordo com sua doutrina" (a católica e derivadas) impõe a inexistência da reencarnação. Assim, é evidente que não conseguem explicar por que Deus precisa de intermediários. Entretanto, segundo os espíritas (não sou um), a explicação é muito simples: é apenas uma questão de hierarquia em que o superior dá oportunidades a seus subordinados para praticar o bem e, assim, poderem crescer. Isso significa que Deus não faz absolutamente nada, a não ser orientar os espíritos mais próximos dEle (como o espírito de Jesus), que passam orientações a seus subordinados, que, por sua vez, passam aos subordinados, etc.. etc.. até que o trabalho seja executado pelo espírito que não tenha subordinados capacitados.

    Em tempo: o que chamam de Deus é o conjunto de toda a energia do Universo. Como somos energia, somos parte de Deus, daí a frase "Todos somos um". Isto não é teoria. O "mundo espiritual", que identificamos como "o outro lado do véu" é totalmente explicado cientificamente.

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  3. Anônimo12:31 PM

    Ótimo artigo. Informativo e divertido!

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