sexta-feira, março 23, 2007

O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte V: Comercializando Energia

O processo de compra de energia por parte de um consumidor cativo é muito simples, envolvendo apenas o consumidor e uma distribuidora de energia. No caso de um consumidor livre, o processo gera economias e é bastante mais flexível, mas, por envolver mais de um agente, torna-se um pouco mais complicado, exigindo assessoria especial.

Digamos que um consumidor C, na área de concessão de uma distribuidora D1, queira adquirir energia elétrica de um gerador G, na área de concessão de uma distribuidora D2. O processo de comercialização é o seguinte:

1. A energia é entregue fisicamente a C por D1.

2. C paga a D1 pelo serviço de acesso à rede, por meio de uma tarifa regulada conhecida como TUSD (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição).

3. G deve pagar a D2 pelo acesso à rede, também por meio de uma TUSD do gerador.

4. C e G assinam um contrato de compra e venda de energia, negociando livremente preços, prazos e demais condições.

5. No final do mês, C divulgará seus dados de consumo de energia (CE), os quais serão confrontados com o montante mensal contratado (M) junto ao gerador. Se CE>M, terá faltado energia contratada, e C terá entre 10 a 15 dias para providenciar um contrato adicional de curto prazo. Se M>CE, terá sobrado energia contratada, e C terá entre 10 a 15 dias para tentar negociar as sobras de energia (consumidores não podem comercializar energia diretamente, mas isso pode ser feito por meio de uma comercializadora).

6. Se CE>M e C não tiver conseguido contratos de curto prazo, ele ficará "exposto" aos preços mensais determinados pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). Isso significa que o déficit de contratação será faturado pela CCEE, ao preço do mês, cerca de 40 dias após o encerramento do mês comercial. Adicionalmente, a CCEE cobrará uma penalidade por insuficiência de contratação (R$ 77,70/MWh, tarifa de 2007).

7. Se M>CE e C não tiver conseguido negociar suas sobras, estas serão faturadas pela CCEE ao preço do mês, também cerca de 40 dias após o fechamento do mês. Nesse caso não haverá penalidade.

8. Como os contratos de compra e venda de energia são livremente negociados, uma condição usual é que haja uma certa flexibilidade (digamos, +/- 10%) em torno do valor mensal contratado M. Os desvios em torno desse valor dão origem ao mercado de curto prazo (antes da atuação da CCEE), que no Brasil atual funciona como um mercado de balcão, onde geradores, consumidores e comercializadoras oferecem montantes e preços. Em mercados mais desenvolvidos já há verdadeiras "bolsas de energia", onde contratos multilaterais de curto prazo são firmados. Um dia chegaremos lá, mas por enquanto nosso mercado não tem liquidez suficiente.

Pode parecer um pouco complicado no começo, mas o funcionamento é bem parecido com o de uma bolsa de commodities convencionais, com a diferença de que os preços da energia variam semanalmente (não diariamente, como em uma bolsa de commodities) e é formado um preço médio ao final do mês. O papel da CCEE, que funciona como uma câmara de compensação, é assegurar a liquidação mensal do mercado, com montantes consumidos confrontados aos montantes gerados e sobras e déficits alocados aos agentes responsáveis.

No próximo artigo falaremos um pouco mais sobre as fontes de energia incentivada, que deram origem a um mercado interessante, atraente e de baixo impacto ambiental.

quarta-feira, março 21, 2007

Os jornalistas e a energia elétrica

Primeiro princípio de Alvaro: “Ao ler um artigo jornalístico sobre energia elétrica, a probabilidade de que você se depare com os termos ‘W/h’ ou ‘watt por hora’, ou seus múltiplos, nos primeiros cinco parágrafos é de 30%, subindo exponencialmente até atingir 99,5% ao final do artigo".

Trata-se de uma constatação já feita por qualquer estudante de engenharia, mas resolvi apropriar-me dela, ao menos até que alguém reclame. Afinal, a redação é minha, embora a reclamação não seja exclusiva.

Eu até consigo imaginar o que se passa na mente jornalística ao tentar entender como se mede o consumo ou produção de energia elétrica. Quando um jornalista entrevista um fabricante de parafusos, por exemplo, é provável que ouça o fabricante dizer que a capacidade produtiva de uma determinada planta é de 2 milhões de “parafusos-hora”, ficando perfeitamente entendido que o fabricante quis dizer “parafusos por hora”, mas não o fez, provavelmente com o intuito de dar um certo charme ao enunciado ou então deixar claro que não tem tempo a perder com preposições.

Ao entrevistar um gerador de energia, por outro lado, é provável que o mesmo jornalista ouça que a capacidade produtiva de uma determinada usina é de 100 “megawatts-hora”. Por analogia com o caso dos parafusos, o jornalista entende “megawatts por hora”.

O problema é que energia (qualquer tipo de energia) e parafusos (qualquer tipo de parafuso) são coisas diferentes.

A unidade watt (com inicial minúscula), adotada pelo Sistema Internacional de Unidades (S.I.) em homenagem a James Watt (com iniciais maiúsculas), é usada para medir a potência, que não é uma grandeza exclusivamente elétrica. Por exemplo, podemos falar na “potência mecânica” do motor de um automóvel ou na “potência elétrica” de um secador de cabelos. Nos dois casos, trata-se do mesmo conceito físico: a taxa de conversão de energia em determinada circunstância. A energia, por sua vez, é medida no S.I. usando-se o joule, em homenagem a James Prescott Joule. Por definição, a relação entre o watt e o joule é 1 W = 1 J/s, ou seja, um watt equivale a um joule por segundo. Da mesma forma, por meio de uma operação matemática simples, podemos dizer que um joule equivale a um watt vezes segundo, ou 1 J = 1 W.s. Como a expressão soa estranha, ela é freqüentemente abreviada para “watt-segundo”.

Ocorre que o joule (ou o watt-segundo) é uma unidade muito pequena e, no caso do consumo ou geração de energia elétrica, os números finais seriam muito grandes. Por exemplo, uma lâmpada de 100 W, ligada sem interrupções durante um mês inteiro, consumiria 262.800.000.000 joules, ou seja, quase 270 bilhões de joules, número que assustaria qualquer dona de casa ao final do mês. Assim, as concessionárias de energia elétrica inventaram o watt-hora, que é igual a um watt-segundo convertido durante todos os segundos contidos em uma hora. Considerando que uma hora tem 3.600 segundos, concluímos que um watt-hora é igual a 3.600 watts-segundo. Contudo, o watt-hora ainda é uma unidade pequena e é mais comum usarmos o quilowatt-hora, que equivale a mil watts-hora. Assim, temos que um quilowatt-hora é igual a 3.600.000 watts-segundo. E, lembrando que watt-segundo e joule são a mesma coisa, temos que um quilowatt-hora é igual a 3.600.000 joules.

Medido em quilowatt-hora, o consumo da nossa prosaica lâmpada ficaria em meros 73 quilowatts-hora, ou 73 kWh, pelos quais nossa dona de casa pagaria cerca de R$ 30,00 (sem considerar os impostos e com grandes variações tarifárias entre os estados brasileiros).

Quando falamos do consumo industrial de energia ou da produção de energia, mesmo o quilowatt-hora (kWh) é pequeno demais e é mais comum usarmos o megawatt-hora (MWh), que equivale a um milhão de watts-hora, ou o gigawatt-hora (GWh), que equivale a um bilhão de watts-hora. O quilowatt-hora, o megawatt-hora e o gigawatt-hora são múltiplos do watt-hora, assim como o terawatt-hora (um trilhão de watts-hora), que só aparece quando a encrenca é realmente muito grande.

A confusão surge porque, quando falamos em “parafusos por hora”, o que queremos dizer é “unidades produzidas por hora”, ou seja, estamos nos referindo à taxa de produção horária da fábrica de parafusos. Mas quando falamos em “watt-hora”, a própria unidade watt já é uma medida da taxa de conversão de energia, pois um watt é igual a um joule por segundo, ou seja, uma unidade de energia convertida por segundo. Logo, falar em “watt por hora” seria o mesmo que falar em “joule por segundo por hora”, uma unidade de medida que não faz muito sentido.

Assim, por mais estranho que pareça, a unidade de medida da energia elétrica é realmente o “watt-hora”, e não o “watt por hora”. A culpa pela confusão, naturalmente, é dos engenheiros que, por um lado, não se esforçam em explicar esses mistérios elétricos, e, por outro lado, insistem em usar uma unidade de medida não oficializada pelo S.I. (o watt-hora).

Em defesa dos jornalistas, tenho que acrescentar que o erro não é exclusivo deles. Por exemplo, tenho em mãos uma fatura de venda de energia, emitida por um conhecido Produtor Independente de Energia, onde consta a célebre unidade “MW/h”. Em tese, tal erro poderia acarretar no cancelamento da nota ou na aplicação de multa por parte da Receita Estadual. Duvido, entretanto, que isso aconteça algum dia.

É claro que sempre é possível complicar um pouco mais. Por exemplo, em vez de usar sempre o GWh para medir o consumo ou geração de grandes blocos de energia, podemos inventar uma unidade completamente nova, como o megawatt médio. Mas essa é outra história e fica para a próxima vez.

segunda-feira, março 19, 2007

Artigo para o XIX SNPTEE

Finalmente, após várias semanas de pesquisa, consegui submeter meu artigo para o XIX SNPTEE, a ser realizado no Rio de Janeiro em outubro próximo. O título do artigo é “Custos de transação e forças propulsoras: uma visão estratégica da desverticalização no setor elétrico”, e contém uma ou duas especulações interessantes.

sexta-feira, março 09, 2007

O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte IV: as Comercializadoras

A primeira comercializadora de energia brasileira surgiu em 1998, com a missão de negociar sobras de energia e atender os primeiros consumidores livres do país. Em fevereiro de 2006, de acordo com dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, já existiam 46 comercializadoras registradas oficialmente, embora nem todas atuantes. Destas, 25 eram associadas à Associação Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Elétrica – ABRACEEL.

Apesar de existentes desde 1998, as operações de comercialização de energia no mercado livre só vieram a ganhar volume a partir do início do século XXI, período particularmente difícil para o mercado de energia em boa parte do mundo. Em 2001 vieram a público as práticas fraudulentas da Enron e ocorreu o ataque ao World Trade Center, este último vindo a causar uma desaceleração da economia mundial. Entre 2000 e 2001 a Califórnia mergulhou em uma crise energética causada, dentre outros motivos, por falhas no processo de reestruturação e desregulamentação. No Brasil o racionamento energético, ocorrido entre junho de 2001 e março de 2002, provocou a primeira mudança no novo modelo setorial, prejudicou a privatização de geradoras e foi incorretamente atribuído à reestruturação do setor e à criação do Mercado Atacadista de Energia – MAE. Todos esses problemas, especialmente o escândalo da Enron, afetaram negativamente a imagem das comercializadoras. A recuperação deu-se aos poucos e hoje tais agentes gozam de grande prestígio, sendo reconhecidos pela agilidade na criação e implementação de soluções para o mercado livre. Nos EUA e na Europa, as comercializadoras também estão se recuperando do impacto negativo causado pela Enron [1].

No Brasil, devido a particularidades do processo de reestruturação, as comercializadoras dividem-se em dois tipos básicos: as “independentes”, desvinculadas de grandes grupos, e as “vinculadas”, que atuam no bojo de uma grande distribuidora ou geradora, ainda que com personalidade jurídica diferente. No primeiro caso, a comercializadora atua agressivamente, de modo a conquistar mercado. No segundo, especialmente quando a comercializadora é vinculada a uma distribuidora, a atuação é defensiva, na tentativa de se evitar ou minimizar a perda de consumidores cativos. Comercializadoras vinculadas a geradores geralmente operam no mercado atacadista, não no varejista. Isso ocorre porque a gestão de contratos de pequenos montantes não é atrativa do ponto de vista de um gerador detentor de capacidade produtiva da ordem de centenas ou milhares de mega-watts. Uma exceção é o caso das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), usinas de biomassa, eólicas e fotovoltaicas, autorizadas a vender energia a consumidores de alta tensão, desde que estes tenham demanda igual ou superior a 500 kW. Nesse caso, tanto os consumidores quanto as usinas são de pequeno porte, e o gerador geralmente é representado na CCEE por outro agente.

No início do Mercado Livre brasileiro, as comercializadoras eram vistas como meras atravessadoras. Tal pensamento era certamente reflexo do ambiente monopolista e fechado à competição que vigorava até então. Com o tempo, ficou evidente que o papel desempenhado pelas comercializadoras é importante e relevante, pois elas:

- Efetivam a aproximação entre os demais agentes do Setor Elétrico, principalmente geradores e consumidores, aumentando a liquidez do mercado, incentivando a competição e reduzindo os preços aos consumidores finais.

- Com seu know-how especializado, contribuem para a divulgação e melhoria das regras e procedimentos do mercado de energia.

- Oferecem assessoria clara e segura aos demais agentes do mercado.Assumem riscos de preços, prazos, crédito e performance de consumidores e geradores.

Assim, as comercializadoras atuam como intermediários de alto nível entre geradores e consumidores, fornecendo assessoria durante o processo de migração para o mercado livre e oferecendo os melhores preços e condições após a migração. Dentre as várias atividades realizadas pelas comercializadoras, encontram-se:

- Análise econômico-financeira comparativa entre as modalidades de fornecimento de energia elétrica como Consumidor Cativo e como Consumidor Livre.

- Análise jurídica dos contratos atuais firmados entre as unidades consumidoras do cliente e as respectivas distribuidoras locais.

- Apresentação da base legal que qualifica cada unidade consumidora do cliente a migrar para a modalidade Consumidor Livre.

- Realização de cotações e leilões de compra de energia elétrica no mercado, e efetivação da contratação aprovada pelo cliente.

- Assessoria em todas as etapas envolvidas na obtenção dos contratos de conexão e uso e de outros contratos que venham a ser necessários.

- Determinação do tipo e montante das garantias a serem aportadas, frente à CCEE ou a geradores, referentes ao fornecimento de energia elétrica.

- Instalação e disponibilização do sistema de acompanhamento de medição de energia das unidades consumidoras do cliente.

- Emissão de relatórios mensais e detalhados de comercialização.

- Acompanhamento do consumo das unidades consumidoras e avaliação das necessidades de aquisição de energia adicional.

- Acompanhamento, junto ao MAE e ao ONS, das mudanças nas regras e procedimentos de mercado.

- Acompanhamento da legislação do Setor Elétrico junto à ANEEL, e manutenção constante das condições legais de fornecimento.Representação e estruturação de leilões de energia elétrica, caso sejam de interesse do cliente.

A contratação de uma comercializadora não é obrigatória para que um consumidor de energia se torne livre, mas facilita bastante o processo, garantindo segurança a todas as partes envolvidas.

No próximo artigo detalharemos o processo de compra de energia no mercado livre.

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[1] BARRIONUEVO, A. Energy Trading, Post-Enron. In: New York Times, 15 de janeiro de 2006.

terça-feira, março 06, 2007

Um pouco mais de Calvin & Hobbes

Em 9 de novembro de 1995, Bill Watterson, criador das tiras de Calvin & Hobbes (“Calvin e Haroldo” no Brasil), escreveu uma carta a seus editores anunciando que iria parar de publicar as tiras até o final daquele ano. Como prometido, a última tira foi publicada em 31 de dezembro de 1995. No início de 1996, após pouco mais de dez anos de diversão, os fãs de Calvin e Haroldo foram deixados órfãos.

Agora, mais de vinte anos após o início das aventuras de Calvin e Haroldo, a editora Conrad anunciou que irá relançar no Brasil a coleção completa das tiras [1]. O primeiro volume da coleção (“O Mundo é Mágico”) foi lançado em fevereiro deste ano e já esteve em primeiro lugar na lista de livros de ficção mais vendidos da Livraria Cultura. No momento, encontra-se em segundo lugar, perdendo apenas para “O Caçador de Pipas” [2].

Para quem não conhece Calvin e Haroldo (se é que existe alguém que não conheça essa dupla!), Calvin é um menino de seis anos e Haroldo é seu tigre de pelúcia, que toma vida somente quando não há ninguém por perto. Calvin é imaginativo, insubordinado e não gosta da escola. Por vezes, ele pode ser egoísta ao extremo, mas é capaz de se emocionar com o sofrimento dos animais. Sua imaginação o leva a incorporar personagens fantásticos, como o Homem Estupendo, o astronauta Spiff, o capitão Napalm (um super-herói que protege “a verdade, a justiça e o American Way”), além de uma grande quantidade de animais, como camaleões, crocodilos, águias, lagartos, etc. Em resumo, Calvin é um menino normal de seis anos, daqueles que se deixam arrastar apenas pelo trenó e por animais imaginários.

Calvin & Haroldo têm muitos fãs no Brasil. Infelizmente (ou felizmente?), ao contrário do que aconteceu com outros personagens dos quadrinhos, Bill Watterson nunca permitiu que sua obra se transformasse em uma franquia. Ele também nunca permitiu que outras pessoas desenhassem suas tiras e até mesmo criticou Jim Davis, o criador de Garfield, por causa do caráter excessivamente comercial dado por Davis a seus trabalhos. Assim, se você encontrar por aí algum adesivo de Calvin, bem como chaveiros, bonecos, etc., pode ter certeza que é tudo falso e não autorizado por Watterson, um autor que sempre se recusou a comprometer a qualidade de seu trabalho frente às demandas do mercado editorial.

Atualmente, Watterson vive recluso em Chagrin Falls, Ohio, com sua esposa e vários gatos. Ele diz que está “aprendendo a pintar” e dá pouquíssimas entrevistas. Aos saudosistas, resta uma visita ao “Museu online de Calvin e Haroldo” [3], ou então torcer para que Watterson mude de idéia algum dia. Pelo andar da carruagem, contudo, isso acontecerá somente depois da volta dos Beatles.

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[1] Algumas páginas do primeiro volume (“O Mundo é Mágico”), estão disponíveis em http://www.lojaconrad.com.br/trecho/Calvin_p1.asp .
[2] Livraria Cultura. http://www.livrariacultura.com.br/ .
[3] The Calvin and Hobbes online Museum, http://calvinandhobbes.michaelgoonan.net/billwatterson.php .

segunda-feira, março 05, 2007

O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte III: Produtores Independentes de Energia

Os Produtores Independentes de Energia (PIEs) surgiram nos Estados Unidos e se espalharam pelo mundo. Após o primeiro choque do petróleo, na década de 70, o órgão regulador norte-americano, a FERC – Federal Energy Regulatory Comission, começou a investigar possíveis alternativas de suprimento de energia para os cenários futuros, que projetavam preços elevados para os combustíveis fósseis. Em 1978, a FERC publicou o Public Utility Regulatory Policies Act (Lei Regulamentadora das Políticas das Concessionárias Públicas), conhecido como PURPA. Um dispositivo importante desta lei era a obrigação de que as concessionárias de energia elétrica comprassem uma parcela de suas necessidades energéticas a partir de Produtores Independentes, a um preço igual ao respectivo “custo evitado” da concessionária. O custo evitado é aqui entendido como o custo que seria incorrido pela concessionária, caso ela tivesse que gerar a mesma parcela de energia.

Os detalhes da implementação do PURPA ficaram a cargo de cada um dos 50 estados norte-americanos. Em alguns casos, especialmente em Nova Iorque e na Califórnia, vários contratos de longo prazo foram assinados entre Produtores Independentes e concessionárias. A posterior queda das cotações internacionais do petróleo e derivados tornou tais contratos um pouco caros, pois, na época, a energia gerada por Produtores Independentes, geralmente detentores de usinas pequenas ou usinas de co-geração (*), era mais cara do que a energia gerada pelas concessionárias em um cenário de preços baixos do petróleo e derivados.

A partir da década de 80, o preço da energia gerada por Produtores Independentes começou a sofrer reduções, principalmente devido ao desenvolvimento das turbinas a gás a ciclo combinado, que podem ser bastante compactas e têm rendimentos mais elevados do que os das turbinas a vapor convencionais (carvão e biomassa). Para efeito de comparação, já em 1998 uma usina a carvão tinha potência ótima entre 600 e 800 MW, com custos de geração de US$ 35/MWh, enquanto usinas a gás podiam ser construídas com potências entre 40 e 150 MW e custos de geração semelhantes (1). Atualmente os custos da geração a gás são menores do que os da geração a carvão.

O mercado de geração de energia passou então a se tornar atrativo também para os “pequenos” investidores em energia (aqueles que têm apenas alguns milhões de dólares) e não somente para os grandes investidores (aqueles que têm vários bilhões de dólares).

No Brasil, o desenvolvimento da turbina a gás (que é basicamente uma turbina de avião que não voa) não causou tanto impacto. A razão é que nossa base de geração é hidrelétrica, energia ainda mais barata do que a das melhores turbinas a gás. Nossas termelétricas (gás e carvão) são então usadas para complementar a geração de energia em períodos de consumo elevado, em um regime que os especialistas chamam de “complementação hidrotérmica”. Ainda assim, o barateamento das tecnologias de geração hidrelétrica e o desenvolvimento de sistemas eletrônicos de medição de energia contribuíram para reduzir os benefícios de escala das grandes concessionárias, ainda que em menor proporção do que em outros países, tornando mais atrativas as usinas de pequeno porte.

Há que se salientar que o termo “Produtor Independente de Energia” é usado no Brasil de forma um pouco diferente. Nos EUA, o termo “independente” aplica-se porque os produtores são independentes da estrutura das concessionárias de energia (“utilities”), mas estas concessionárias também podem ser privadas. No Brasil, o PIE tende a ser visto simplesmente como um produtor privado de energia, que explora recursos naturais por sua conta e risco, independente do seu porte e da fonte energética explorada.

No Brasil, a figura institucional do Produtor Independente de Energia foi criada pela Lei 9.074/1995, que também criou as figuras de consumidor livre e abriu espaço para a criação dos agentes comercializadores de energia. No âmbito da legislação atual, os PIEs podem vender energia diretamente aos consumidores livres ou aos comercializadores de energia. Essa operação se dá no Ambiente de Contratação Livre, ACL, operacionalizado pela CCEE- Câmara de Comercialização de Energia Elétrica. Alternativamente, os PIEs podem vender energia nos leilões do Ambiente de Contratação Regulada, ACR, também operacionalizado pela CCEE. Nesse caso, os compradores são as distribuidoras de energia, que repassam a energia aos consumidores cativos atendidos por elas.

O surgimento dos PIEs no Brasil deu-se em paralelo com o programa de reestruturação iniciado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Uma das metas desse programa era privatizar todos os geradores nacionais. Contudo, dificuldades políticas e conjunturais não permitiram que se atingisse tal meta. Ainda assim, considerando-se somente os agentes de maior porte, o Brasil conta hoje com 70 PIEs, 49 Autoprodutores (que podem comercializar excedentes energéticos no mercado livre) e 41 concessionárias públicas de geração (2). Os PIEs brasileiros são também bastante diversificados e servem a diversas finalidades (3):

- Usinas direcionadas ao mercado, como a UHE Cana Brava (466 MW), da Tractebel.
- Usinas construídas por grandes consumidores, como a UHE Pedra do Cavalo (160 MW), da Votorantin.
- Usinas construídas em parceria com concessionárias privadas, como a UTE Uruguaiana (639 MW), construída pela AES (privada) e CEEE (estatal).
- Usinas que suprem sistemas isolados, como as usinas de Manaus e Porto Velho.
- Usinas que produzem energia alternativa (PCHs, biomassa, solar e eólica) e vendem sua produção a consumidores livres ou por meio de programas governamentais, como o Proinfa.

A expansão futura do parque gerador brasileiro não será feita sem dificuldades. Embora nosso potencial hidrelétrico inexplorado ainda seja grande, as restrições ambientais tornarão difícil a construção de usinas hidrelétricas de médio e grande porte. Em termos de usinas termelétricas, não dispomos de grandes reservas de carvão mineral e de gás natural. Particularmente quanto ao gás natural, nossas relações com nosso maior fornecedor, a Bolívia, não tem sido estáveis o suficiente para se fazer apostas no longo prazo. A opção nuclear existe, mas, devido a questões de segurança, ela será certamente explorada pelo Governo Federal.

Apesar das incertezas, usinas de pequeno porte, como PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas), usinas de biomassa, usinas eólicas, bem como usinas de maior porte, continuarão a ser construídas por investidores privados. A liberalização do mercado é irreversível, e também necessária, pois o Governo, amarrado pelas obrigações da Constituição de 1988 e pelo déficit da previdência pública, não terá mais condições de ser o único investidor em geração de energia.

No próximo artigo, abordaremos a atuação dos agentes comercializadores de energia elétrica no Brasil.

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(*) Usinas de co-geração são aquelas instaladas em indústrias, produzindo energia elétrica, vapor e calor para uso em processos industriais, e vendendo os excedentes no mercado.
(1) VAN DOREN, P.M. The deregulation of the electricity industry: a primer. Cato Institute, Policy Analysis, out. 1998. Disponível: . Acesso: mar. 2007.
(2) ELETRICIDADE MODERNA. Perfil do Setor Elétrico – jul. 2006. p. 93, 96.
(3) DE OLIVEIRA, A.; WOODHOUSE, E.J.; LOSEKANN, L.; ARAUJO, V.S. The IPP experience in the Brazilian electricity market. Stanford University, Program on Energy and Sustainable Development Working Paper #53, out. 2005. Disponível: <http://iis-db.stanford.edu/pubs/20995/Brazil_IPP.pdf>. Acesso: mar. 2007.