domingo, dezembro 31, 2006

Fim de ano

Eis que se aproxima mais uma transição entre dois estados arbitrariamente definidos pela humanidade. Os judeus já comemoraram, os chineses ainda comemorarão, mas para grande parte dos ocidentais, será hoje. Que nossas moléculas continuem unidas em 2007, formando esses macroagregados corpóreos e produzindo essa sutil oscilação elétrica que insiste em desafiar a segunda lei da termodinâmica! Que o governo desista dessa infeliz idéia de se tornar sócio majoritário de todos os brasileiros e que todos nós possamos, algum dia, comprovar na prática a realidade da utilidade marginal decrescente.

Feliz 2007!

sábado, dezembro 30, 2006

A execução de Hussein foi um erro

A execução de Hussein traz à memória uma cena de “Coração Valente”, dirigido e estrelado por Mell Gibson em 1995. No filme, o escocês William Wallace tem a esposa barbaramente degolada pelo xerife local, após ter agredido um soldado inglês que tentara violentá-la. Wallace rapidamente prepara um contra-ataque, reunindo alguns conterrâneos sedentos de vingança e cansados da opressão inglesa na Escócia. Após invadir a propriedade do xerife, Wallace o captura, encosta-o a um poste e o degola. E é só isso. Wallace, em uma mistura de exaustão, fúria e decepção, permanece olhando, como quem espera que todos aqueles anos de tensão e ódio acumulado escoem junto com o sangue.

Contra a pena de morte sempre há argumentos humanitários, mas esse não parece ser o caso de Hussein, contra quem pesavam acusações muito sérias e irrefutáveis. Mesmo assim, existiam pelo menos duas razões contra a execução dele. A primeira delas é o risco de transformá-lo em mártir.

Em outros tempos e em outras civilizações, um ex-ditador ou guerreiro jamais teria se deixado capturar com vida. O romano Marco Antônio, acusado de traição pelo compatriota Otávio Augusto, tirou a própria vida no fio da espada. Muitos anos antes, o cartaginês Aníbal preferiu ingerir veneno a se deixar capturar pelos romanos. Da mesma forma, nenhum bom samurai hesitaria em cometer harakiri muito antes de ser ameaçado com a pena de morte. Mesmo Hitler, com quem Hussein frequentemente é comparado, agiu de forma mais honrada.

Hussein, por outro lado, parecia desejar a execução, e os iraquianos lhe deram justamente aquilo que ele queria. Morrendo como mártir, colocando-se na condição de vítima e segurando o Corão até pouco antes do instante final, ele deve ter apostado no fato de que sempre existe gente louca o suficiente para seguir um maníaco que mostrou ser capaz de qualquer método de governo.

A segunda razão contra a execução é que, como descobriu o William Wallace do filme, a sede de vingança não pode ser aplacada durante os poucos segundos em que um corpo se debate na forca, agoniza na cadeira elétrica ou em qualquer outro aparelho inventado para tirar vidas. Os parentes das 80 pessoas mortas hoje, depois da execução de Hussein, talvez tenham uma medida mais exata da inutilidade da vingança.

A verdadeira vingança do povo iraquiano teria sido deixar Hussein viver, perpetuamente trancado em uma prisão de segurança máxima, e mostrar que é possível construir um país livre e próspero sem ele. Mas isso é muito difícil. A execução na forca, por outro lado, só exige alguns metros de corda, um cadafalso e dois homens mascarados.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

De Quito a Manaus, nas asas da Ecuatoriana (reminiscências pessoais)

A crise pela qual vem passando o setor brasileiro de aviação civil me lembrou de uma viagem a Quito, capital do Equador, para apresentar um trabalho em um congresso internacional da CIER. Era o ano de 1998, quando o Projeto RE-SEB era jovem, o racionamento de energia estava ainda no futuro e o termo “controlador de vôo” não havia sido incorporado ao vocabulário do brasileiro médio.

O trabalho em questão era “Mudanças Estruturais no Setor Elétrico: Formação e Regulação de Preços”, escrito em conjunto com Paulo Born (que era o primeiro autor, mas, com a gentileza habitual, cedeu-me a oportunidade de fazer a apresentação). Na época, Paulo Born, hoje diretor da Light, estava na ANEEL, cedido pela Copel, e eu estava na Copel. Outro colega da Copel, Renê Bettega (hoje na CPFL), também iria apresentar um trabalho sobre o MRE, então uma novidade no setor. Embarcamos juntos e aproveitei para fazer um esforço financeiro adicional e levar a Sandra, minha esposa.

Era minha primeira viagem de longa distância dentro da América Latina e eu esperava ingenuamente embarcar em um MD-11, os aviões então usados pela VASP em viagens internacionais. Qual não foi minha surpresa ao ver um singelo Boeing 727 taxiando na pista de Guarulhos! Pelo que me lembro, o percurso era Curitiba-São Paulo-Brasília-Manaus-Quito, tudo a bordo de uma lata de sardinhas! Apesar do aperto, a viagem de ida foi tranqüila, com direito a uma vista aérea diurna da selva amazônica, sempre impressionante.

O aeroporto de Quito tem aquele jeitão de rodoviária de cidade pequena, mas não é muito pior do que vários aeroportos de algumas capitais brasileiras, com a diferença dos aviões militares misturados aos aviões civis, que conferem aquele toque de filme de Indiana Jones. O táxi que pegamos para o hotel não tinha taxímetro e o preço foi previamente combinado: cinco dólares. Em um época em que um táxi entre o centro de Curitiba e o aeroporto Afonso Pena não saía por menos de trinta reais, cinco dólares (pouco menos de R$ 6,50, a preços da época) pareciam pouca coisa. Mas a formação de preços no Equador guardava ainda outras surpresas.

Logo na primeira manhã em Quito, ficamos sabendo que, como já esperado, o café da manhã do hotel não era no estilo brasileiro “coma tudo que puder”. Não havia, por exemplo, presunto e queijo. Perguntamos ao garçom por esses itens e ele nos informou que eles seriam cobrados à parte. “Quanto é?” – perguntamos. A resposta: “cinco dólares!” Tudo bem, cinco dólares por uma passagem de táxi é pouco, mas por duas fatias de queijo e duas de presunto, já é demais! Mas o Equador atravessava um período de hiperinflação e, com os preços já informalmente dolarizados (especialmente para turistas), as referências de valores flutuavam bastante.

Chegando ao hotel do congresso, um imprevisto: o secretário brasileiro não havia conseguido chegar a tempo e, por razões que sempre me pareceram um pouco obscuras e tinham a ver com minha reduzida compreensão do espanhol equatoriano, fui escalado para a função. O secretário brasileiro tinha a função de resumir as palestras dos brasileiros, acompanhado de um secretário de língua espanhola. Como o secretário brasileiro nunca apareceu, acabei investido dessa nobre função durante todo o congresso. Em resumo, tive que assistir a todas as palestras brasileiras, até mesmo as que não eram da minha área, e, por uma questão de elegância, também assisti a todas as palestras em espanhol. Não conheci quase nada de Quito, a não ser à noite, mas aprendi um bocado sobre o sistema elétrico de outros países latino-americanos.

No segundo dia, fui almoçar com o Renê no hotel onde estávamos hospedados, pois o restaurante do hotel cinco estrelas do evento ainda era caro demais para nós. Em dada altura, percebi que o Renê estava balançando insistentemente a perna, a ponto dos copos sobre a mesa começarem a balançar também. Olhei para a cortina e notei que ela também estava balançando. “Será que ele está nervoso por causa da palestra que vai dar?” – pensei. Uma fração de segundo depois, notei que o barulho era forte demais para ser provocado por um palestrante nervoso, o que também não explicaria o comportamento dos garçons, que àquela altura já estavam correndo para fora do restaurante. Era um terremoto! Logo depois ficamos sabendo que o tremor havia se iniciado no litoral, perto de Guaiaquil, chegando até Quito com intensidade moderada. Naquele dia fiquei sabendo que muitas coisas da vida, como terremotos e orgasmos, não podem ser plenamente apreciadas da primeira vez em que ocorrem, pois simplesmente não sabemos o que se passa!

O congresso veio e se foi, minha participação foi apenas razoável e, após quatro ou cinco dias de palestras, chegou a hora de voltar para casa. Durante o congresso eu havia conhecido Dorel Soares Ramos, atualmente assistente da diretoria da Bandeirante Energia, experiente em eventos da CIER e em vôos pela VASP/Ecuatoriana. Ele rapidamente sugeriu que recolhêssemos nossas trouxas e nos dirigíssemos ao aeroporto, pois, devido ao grande número de congressistas voltando para o Brasil, havia o risco de overbooking.

A Compañia Ecuatoriana de Aviación, fundada em 1957 por equatorianos e norte-americanos, era a empresa aérea nacional do Equador. Durante os anos 70, os americanos se retiraram da empresa, que foi transformada na Empresa Estatal Ecuatoriana de Aviación, adquirindo rapidamente a reputação de baixa confiabilidade, acumulando atrasos e cancelamentos de vôos. Em 1993, com o arresto de alguns de seus aviões por parte de credores, a empresa encerrou as operações. Dois anos depois, a Ecuatoriana foi comprada pela VASP, que retomou as operações durante cinco anos, vendendo sua participação no ano 2000 para a Lan Chile, que posteriormente a vendeu para o Lloyd Aéreo Boliviano.

Imagine voar por uma empresa pós-falimentar, arruinada por vários anos de corrupção estatal, e que havia sido salva pela VASP! Pela VASP! Os equatorianos são gente boa, muito mais cordiais do que outros povos da América Latina, mas devia ser estressante trabalhar em uma empresa dessas.

Após várias horas de espera no aeroporto, onde pude engraxar meu sapato pela módica quantia de cinco dólares, escapamos do overbooking e finalmente entramos na sala de embarque. Pela janela era possível ver os aviões estacionados na pista e lá estava aquela visão paradisíaca, brilhando sob o sol equatorial, pintada com o logotipo da Ecuatoriana: um McDonnell-Douglas MD-11, um trijato comercial wideboy de longo alcance, com nove fileiras de poltronas e máquina de café espresso! A viagem de volta ao Brasil prometia ser muito mais confortável.

Quando nosso vôo foi chamado, um ônibus estacionou do lado de fora, para nos conduzir até o avião (ou “aeronave”, como eles insistem). Embarcamos no ônibus e, quando já havíamos percorrido um trecho do trajeto, notamos um funcionário do aeroporto correndo atrás do ônibus e gritando algo incompreensível. Depois de alguns momentos de confusão, fomos informados que aquele ônibus deveria conduzir os passageiros do vôo Quito-Miami, não nós. Pensei ingenuamente que, apesar das ordens, o motorista do ônibus teria um mínimo de elegância e não se importaria em conduzir ambos os grupos de passageiros, um de cada vez, se necessário. Mas que nada. Fomos levados novamente para a sala de embarque, descemos do ônibus e tivemos que caminhar até o avião.

Naquela altura já havia sido esclarecido que o MD-11 estava na verdade indo para Miami. Nosso avião (adivinhem!) era um 727, que até aquele momento estava estrategicamente escondido atrás do MD-11! Apesar de tudo, poderia ser pior (poderia ser um Legacy, por exemplo).

Muito pacientemente, entramos na lata de sardinhas e esperamos por todo o ritual pré-decolagem. Já era noite e, com um pouco de sorte, conseguiríamos evitar colidir com as montanhas que circundavam Quito. Mas os equatorianos têm sempre algumas surpresas na manga. Após taxiar, o avião dirigiu-se para a cabeceira da pista e aguardou a autorização para decolagem. Ao receber a ordem, o piloto acelerou conforme previsto nas normas, já se preparando para ganhar os céus, conforme previsto nas normas. O avião acelerou, acelerou, acelerou e, quando estava quase decolando, pof, pof, pof..., decepção geral. Os deuses equatorianos ainda nos queriam por uns momentos.

Após muita consternação entre os passageiros, fomos informados que um problema com a torre de controle havia impedido a decolagem. Não me lembro se a mensagem foi transmitida em português ou em espanhol, mas ficamos sabendo que o avião deveria voltar à cabeceira da pista e aguardar nova autorização de decolagem.

Então, voltamos à cabeceira da pista. Éramos vários brasileiros corajosos, alguns argentinos e uma tripulação equatoriana que parecia muito a fim de brincar conosco.

Novamente, o avião acelerou, acelerou, acelerou e ... pof, pof, pof... Tudo indicava que iríamos passar mais uma noite em Quito, dessa vez com a cortesia da Ecuatoriana.

O comandante informou que um problema qualquer com a torre de controle havia impedido a decolagem e, para surpresa geral, avisou que deveríamos voltar à cabeceira da pista para aguardar nova decolagem. Tudo bem, talvez eles já tivessem removido o controlador de vôo que havia desmaiado. Talvez não fosse um problema com o transponder nem nada parecido. Talvez fosse só uma antena solta ou um estagiário que havia apertado o botão errado.

Voltamos à cabeceira da pista. Eu sempre tentara imaginar o que se passa na cabeça de passageiros que estão prestes a sofrer um acidente aéreo. Bem, de maneira geral, ou não se passa nada, ou os pensamentos são irrelevantes ou apenas totalmente impublicáveis.

Novamente, o combalido 727 acelerou, acelerou, acelerou e ... decolou! Gargalhadas, risos histéricos, sorrisos, aplausos. Nunca uma decolagem foi tão esperada! O avião deu um forte solavanco (mais risos histéricos) e estabilizou. Estávamos a salvo.

Com a paciência já habitual, esperamos pelos esclarecimentos do comandante, pois muitos de nós queriam saber qual tipo de problema havia ocorrido (é bom lembrar que o avião estava cheio de engenheiros e esse tipo de bicho costuma ser muito chato). Os esclarecimentos nunca vieram e muitos passageiros passaram a viagem até Manaus segurando certas partes do corpo, tentando evitar a saída do almoço (ou, em alguns casos, tentando evitar a saída do almoço do dia anterior).

O serviço de bordo começou logo, e as comissárias passaram servindo refrigerante, cerveja, whisky, chá de camomila e passiflora. Então a tempestade equatorial mais próxima resolveu entrar na brincadeira. Turbulência, turbulência, turbulência. As luzes da cabine foram reduzidas, as comissárias e um comissário dirigiram-se aos respectivos assentos e amarraram-se fortemente. Eu sempre imaginara que uma das funções dos comissários de bordo era assegurar a manutenção da calma a bordo, mas garanto que não me acalma nada ver um comissário agarrando-se nervosamente a um cinto de segurança, ao mesmo tempo em que segura um microfone para advertir, em espanhol, uma passageira que insistia em ir ao banheiro: “Señora, toma assento! Señora, toma assento” (imagino que em português isso possa ser traduzido como “senta logo, vaca velha!”).

Para finalizar, mais um toque de elegância da tripulação. Pouco antes do jantar, levantei-me para ir ao banheiro. Ao sair daquela caixinha apertada, o chefe da tripulação estava dando instruções para uma das comissárias sobre como servir o jantar. Só me lembro da parte em que ele disse: “Essas são para os pobres”, o que significava que aquelas bandejas eram destinadas à classe executiva, não à primeira classe (que ficava separada da ralé por uma mera cortina). Bem, minha passagem havia sido financiada pela Copel, mas a passagem da minha esposa foi paga com nosso próprio dinheiro, em suaves prestações. E é assim que a tripulação se refere àquele pessoal que economiza bravamente para pagar os salários deles? Em todo caso, achei melhor não reclamar naquela hora. Ninguém gosta de espaguete ao molho de cuspe.

E assim, depois de muitas emoções e apesar de todos os prognósticos, chegamos vivos em Manaus, onde a tripulação equatoriana foi trocada por uma de brasileiros, e seguimos para São Paulo, onde minha passagem para Curitiba foi roubada. Mas essa é outra história!

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Deus e Richard Dawkins

É divertido imaginar como seria um universo no qual o céu e o inferno realmente existissem. No céu certamente encontraríamos Madre Teresa de Calcutá, alguns santos católicos (mas não todos) e, talvez, um ou dois papas, além de James Clerk Maxwell e Michael Faraday. No inferno encontraríamos gente como Sigmund Freud, Albert Einstein, Carl Sagan, Richard Feynman, Bertrand Russel, Hipácia de Alexandria, Charles Darwin, Daniel Dennett, James Randi, Michael Shermer, Carlos Drumond de Andrade, Linus Torvalds, Newton da Costa, Ligia Fagundes Teles, Isaac Asimov, Douglas Adams, Arthur C. Clarke, Stanislaw Lem, Woody Allen, Marcelo Gleiser, Peter Singer, Albert Camus, Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre e vários outros. Resumidamente, quase todas as pessoas interessantes e com quem valeria a pena conversar estariam no inferno. É claro que também encontraríamos lá algumas figurinhas difíceis, como Hitler, Stalin, Getúlio Vargas e Carlos Prestes, mas em um lugar tão grande seria fácil encontrar um cantinho reservado para uma conversa demorada (já que o tempo não seria problema) com as maiores mentes científicas e literárias que já existiram. E isso incluiria, é claro, Richard Dawkins.

Richard Dawkins é um biólogo evolucionista nascido em 1941, no Quênia, mas educado na Inglaterra. A partir de 1976, com a publicação de “O gene egoísta” [1], Dawkins começou a se sobressair como divulgador da ciência, humanista e grande defensor do dawinismo e do racionalismo, levando tal defesa tão longe que, se Thomas Huxley foi apelidado de “o buldogue de Darwin”, muitos acreditam que Dawkins deveria ser apelidado de “o rottweiler de Darwin”.

A pregação anti-religiosa tem sido a principal atividade de Dawkins nos últimos tempos, principalmente após a publicação do livro “The God delusion” [2], em setembro de 2006. Dawkins também acaba de inaugurar a “Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência”[3], atualmente em fase de desenvolvimento. Em uma entrevista concedida à BBC [4], Dawkins afirma que não deseja atingir as pessoas profundamente religiosas, mas apenas os indecisos, aquelas pessoas levemente religiosas, que vão à igreja uma vez por ano e nunca pensam muito sobre o assunto. “Eu quero dar a elas muito em que pensar”, diz Dawkins.

Em vários pontos, Dawkins tem razão. Ele condena, por exemplo, a visão preconceituosa de que os ateus seriam necessariamente pessoas “más”. De fato, quando alguém pergunta “você acredita em Deus?”, a pergunta verdadeiramente implícita é “você acredita em um Deus que possa mandá-lo para o inferno caso você faça algo moralmente condenável?”. Nas mentes simples de tais pessoas, Deus seria a única razão capaz de evitar, por exemplo, que alguém cometa assassinato. Contudo, mesmo ateus radicais têm uma razão muito simples para não matar outras pessoas: ao realizarmos tal ato, estaríamos dando a autorização explícita para que os outros nos matem. Imagino que assassinos devam se tornar inquietos, desconfiados e hipertensos, pois passam a vida tentando evitar que os outros façam com eles aquilo que eles fizeram com os outros.

A raiz da verdadeira bondade não reside na crença em Deus ou no juízo final, mas em uma forma altamente refinada de altruísmo recíproco que só os seres humanos, até onde sabemos, foram capazes de desenvolver. Além disso, todas as sociedades humanas desenvolveram um sistema de controle de atividades, que funciona bem em alguns lugares e muito mal em outros, mas certamente muito melhor do que um sistema baseado no temor divino: o sistema judiciário, ao qual todos estamos sujeitos.

Dawkins também tem razão quando levanta a questão do “abuso mental” sofrido pelas crianças de todas as religiões. Ele argumenta que não há maior sentido na expressão “criança católica” do que há na expressão “criança marxista”. Assim, deveríamos deixar as crianças crescerem livremente, imersas somente em algum tipo de filosofia moral que possibilitasse a formação de valores, e deixar a questão da escolha religiosa para mais tarde, quando a criança tivesse argumentos para tal. Só que esse mundo ideal jamais existirá, a não ser em poucos casos, pois os pais estão quase sempre ansiosos para impor seus sistemas de crenças sobre os filhos, seja por medo, tradição ou um misto dos dois. O que dizer, por exemplo, daquele ritual de purificação para recém-nascidos que os católicos tanto prezam? A quem se destina tal ritual? À criança ou aos pais e à comunidade religiosa?

Em outros pontos, Dawkins parece um pouco ingênuo ao considerar a mente religiosa. Após descrever detalhadamente que a vida na Terra e a consciência humana resultam de milhões de anos de seleção natural, e que não haveria papel algum para Deus nesse processo, ele sempre se depara com a afirmação de que Deus está além da razão e da compreensão humanas e de que as leis da física nada são para ele. Em outras palavras, por que um ser onipotente deveria ser limitado pela lógica humana? Dawkins responde que, se deixarmos de lado a razão (ou seja, a ciência), poderemos demonstrar a existência de qualquer coisa, desde fadas encantadas até o monstro de espaguete voador, o bule de chá orbital, o unicórnio dourado e outros milhões de coisas. Esse argumento não é propriamente original, embora Dawkins o use com maestria, mas ele tem apelo a um público específico: o público dotado de mente cética e científica. O argumento pode ter ainda algum apelo aos indecisos de Dawkins, mas os religiosos jamais admitirão um deus limitado pela lógica humana, pois os deuses, desde o início, foram imaginados como criaturas sobre-humanas, vivendo em um mundo à parte (Olimpo, Valhalla, Vorta Vor, Sha Ka Ree, Céu, etc), criadores das leis físicas e não regidos por elas.

Em todos os tempos, vários cientistas e intelectuais têm se posicionado contra a religião. Dawkins, contudo, vai longe demais. Ele chegou à conclusão de que não é suficiente ensinar ciência, mas que é necessário atacar frontalmente as religiões, as quais representariam “a raiz de todo o mal”.

Por exemplo, no segundo capítulo de seu livro mais recente, ele afirma que: “O deus do Antigo Testamento é provavelmente o personagem mais desagradável de toda a ficção: ciumento e orgulhoso disso; um maníaco por controle, miserável e injusto; um abusador vingativo, eugenista sedento por sangue, misógino, homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista e caprichosamente malévolo”. Quando foi lido frente a uma audiência de 600 pessoas [5], esse parágrafo provocou risos e aplausos, mas dificilmente atrairá a simpatia de judeus, cristãos e muçulmanos, os quais rapidamente apresentarão centenas de argumentos para provar que Deus não é tão mau assim.

Esse “ateísmo radical”, “militante” ou “beligerante” não é novidade, embora os propósitos tenham variado ao longo do tempo. Em 1844, Karl Marx, um sujeito muito menos bem-humorado do que Dawkins e bem menos agradável de se ler, escreveu: “A religião é o ópio do povo. É preciso combater a religião como felicidade ilusória das pessoas em nome da felicidade real”. O materialismo dialético de Marx e Engels, uma filosofia tão boa quanto qualquer religião fundamentalista, encontrou terreno fértil nas mentes doentias de gente como Lênin e Stalin, que tentaram implantar o comunismo (ou, mais apropriadamente, o socialismo de Estado) na URSS, ao mesmo tempo em que combatiam qualquer tipo de religião por meio da força. Na verdade, todos os assassinatos cometidos em nome do comunismo, na ex-URSS ou em qualquer outra parte, constituem uma grande prova de que Dawkins está errado, ou ao menos parcialmente enganado, ao afirmar que a religião é a raiz de todo o mal. A raiz de todo o mal são idéias totalitárias e dogmáticas, papel freqüentemente encarnado pela religião, mas não só por ela. E se o ateísmo se tornar dogmático, terá aberto a porta para todo tipo de arbitrariedades.

Minha posição pessoal, portanto, é a do liberalismo. Não me sinto à vontade em ver propostas para que o ensino religioso seja oferecido em escolas públicas. Não me sinto à vontade quando me perguntam se acredito em Deus, pois sei o que está por trás da pergunta. Não gosto de ver crianças freqüentando igrejas (e não só por causa da doutrinação explícita, mas também porque as crianças têm muito mais o que fazer com um tempo que não volta mais). Acho simplista demais acreditar que uma comunidade de camponeses semi-alfabetizados às margens do Mediterrâneo descobriu todos os segredos do Universo. Mas também não gosto de ver pessoas sendo forçadas a abandonar a religião. Já vimos essa história antes e sabemos como ela acaba.

A falsa ciência certamente deve ser combatida, o que inclui a nova praga do “design inteligente”, anteriormente denominado “criacionismo científico”. Mas esse combate deve ser feito por meio da divulgação de idéias científicas, não do confronto direto. Os religiosos continuarão a argumentar que Deus existe além da matéria, que não devemos estudar o momento inicial da criação, que o evolucionismo é “apenas uma teoria”, que homens e dinossauros foram contemporâneos, que a Bíblia deve ser adotada como livro-texto nas escolas e que todas as respostas estão no Gênesis. A ciência tem respostas para todas essas questões, além de ter uma vantagem que a religião não tem: a ciência é capaz de evoluir e de corrigir seus próprios erros. São essas respostas que devemos divulgar, e não a idéia de que a religião deve ser erradicada da face da Terra.

Não estou sozinho nesse pensamento liberal. Marcelo Gleiser escreveu recentemente dois artigos criticando o radicalismo de Dawkins [6] [7]. Gleiser, que tem se declarado ateu em bem mais de uma oportunidade, diz que “o sobrenatural é completamente incompatível com uma visão científica do mundo”. Mesmo assim, ele diz não acreditar em extremismos e intolerância. De fato, se o ateísmo for capaz de provocar uma única morte devido à radicalização proposta por Dawkins e outros, esses novos ateus terão provado serem tão ruins quanto os religiosos, e de nada servirão para a humanidade.

[1] DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Ed. Itatiaia. 2001.
[2] DAWKINS, Richard. The God delusion. Houghton Mifflin. 2006
[3] Disponível em http://www.richarddawkins.net/foundation . Acesso em: 04 dez. 2006.
[4] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=LC9fB_oX4Y0 . Acesso em: 04 dez. 2006.
[5] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=YA9sFkYZSk8 . Acesso em: 04 dez. 2006.
[6] GLEISER, Marcelo. Ateísmo radical. Folha de São Paulo. 26 nov 2006.[7] GLEISER, Marcelo. Ateísmo (menos) radical. Folha de São Paulo. 3 dez 2006.