quinta-feira, junho 28, 2007

Livre Mercado de Energia na Revista GTD

Meu artigo apresentado no SBSE-2006 (“Política Tarifária e Comercialização de Energia no Ambiente de Contratação Livre”), embora na época tenha causado pouco impacto, agora está trazendo dividendos. Além de ter aparecido na Eletricidade Moderna de março/2007, agora a Revista GTD se interessou pelo assunto e publicou, em sua edição n°19, uma reportagem intitulada “Liberdade de Escolha”, onde são mencionadas as opiniões de vários profissionais do setor elétrico atuantes no livre mercado de energia, dentre eles este humilde blogueiro.

A reportagem em questão pode ser acessada no site da Editora Lumière, http://www.portallumiere.com.br/, por meio de cadastro simples e gratuito, ou diretamente no site da Electra Comercializadora de Energia, http://www.electraenergy.com.br/alvaug/gtd_junho_2007.pdf (4,3 Mbytes).

Agradeço à Electra, à UTFPR e ao jornalista Bruno D'Angelo pela oportunidade. Enquanto houver mercado livre e liberdade de escolha, ainda haverá esperança para esse país, apesar da bandalheira nos aeroportos e no Congresso.

terça-feira, junho 26, 2007

Hugo Chávez cria fábricas socialistas

Na última edição de seu programa semanal “Alô Presidente”, Hugo Chávez anunciou, para espanto do mundo, o plano Fábrica Socialista 2007. Serão construídas 200 empresas estatais na Venezuela, que produzirão vários tipos de bens e serviços: alimentos, materiais de construção, vidro, plásticos, produtos de borracha, transporte e reciclagem. Vê-se logo que o tão divulgado “socialismo do século XXI” não passa de uma grande volta ao passado, uma grande tentativa de fazer certo aquilo que a URSS supostamente fez errado.

Todavia, uma das lições que o século XX nos ensinou é que o socialismo pode ser uma ótima idéia, mas infelizmente só funciona para as abelhas, formigas e outros insetos sociais. No mundo dos seres humanos, nenhuma empresa estatal é capaz de produzir bens e serviços com a mesma eficiência de uma empresa privada, pois a preocupação com o lucro, que os socialistas abominam, não existe. E, não existindo preocupação com o lucro, não existe preocupação com redução de custos. E, não havendo preocupação com redução de custos, não há aumento da produtividade. E, não havendo aumento da produtividade, nenhuma empresa pode competir e crescer, cabendo-lhe apenas a decadência.

A URSS e outros países socialistas fizeram mais do que era humanamente possível para que o sistema de produção estatal funcionasse. Não conseguiram. Simplesmente não dá certo. No início da URSS, tudo parecia lubrificado à perfeição e planejado rumo à utopia final, mas era apenas uma ilusão causada pelas realocações em massa e pela conversão de camponeses em trabalhadores fabris. Passado esse efeito transitório, o caráter perverso do sistema se manifestou: quando o espírito empreendedor é abolido, não se pode mais esperar que uma pessoa que detém um cargo executivo aceite assumir algo mais do que um risco moderado. Todos os gerentes se transformaram então em burocratas. A literatura sobre isso é farta e extensa. Pena que Chávez não a leu.

Não é preciso ter um PhD em economia para saber o que acontecerá com as empresas da Venezuela: quebrarão. Antes disso, porém, consumirão fabulosos recursos estatais, subsidiados pelo petróleo e pelos resignados e valorosos contribuintes venezuelanos. Antes disso, a Venezuela embarcará naquele sonho requentado de que um planejador central localizado em Caracas conseguirá decidir, de maneira melhor e mais eficiente do que o mercado livre, quantos sapatos cada fábrica do país deverá produzir, e que tipo, cor e modelo de sapato cada venezuelano gostará de usar. Muitos anos se passarão e a Venezuela por fim quebrará. Só espero que nós brasileiros não tenhamos de pagar a conta!

segunda-feira, junho 25, 2007

XI SEPOPE – Chamada de Trabalhos

Obs.: o prazo para envio de resumos foi extendido para 24 de setembro de 2007. Mais informações em http://alvaroaugusto.blogspot.com/2007/09/xi-sepope-extenso-do-prazo-para-envio.html

O XI SEPOPE, Simpósio Brasileiro de Especialistas em Planejamento da Operação e Expansão Elétrica, será realizado em maio de 2008, em Belém do Pará. Os resumos, contendo um mínino de 500 palavras, podem ser enviados para o endereço abs-xispope@cepel.br até 3 de setembro de 2007. Disponibilizei o arquivo com a chamada de trabalhos e lista de temas preferenciais aqui.

sexta-feira, junho 22, 2007

O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte VI: O Mercado de Fontes Incentivadas

Atualmente, o limite imposto para que um consumidor existente possa ser caracterizado como livre é pertencer ao Grupo A (Alta Tensão), ser atendido em tensões iguais ou superiores a 69 kV e ter demanda contratada igual ou superior a 3 MW. Adicionalmente, consumidores novos, ou seja, aqueles instalados após 1995, também podem se tornar livres, independentemente da tensão, desde que respeitado o limite de demanda igual ou superior a 3 MW. Note-se que 3 MW já é o nível de demanda de vários tipos de instalações comerciais de médio porte, tais como shopping centers e hotéis, além de instalações industriais de vários tipos, atendidas nos subgrupos AS (subterrâneo), A4 (2,3 kV a 25 kV) e A3a (30 kV a 44 kV).

Uma modificação importante foi introduzida com a outorga da Lei 9.427/1996, alterada com a sanção das Leis 9.648/1998 e 10.438/2002, e que teve sua redação consolidada pela lei 10.762/2003 e pelo Decreto 5.163/2004. Essa lei definiu que os aproveitamentos a partir de fontes de energia alternativa (eólica, biomassa , solar e PCHs) poderiam atender consumidores com carga maior ou igual a 500 kW, em qualquer tensão. Assim, tais consumidores passaram a se enquadrar efetivamente na condição de livres, desde que atendidos diretamente por fontes de energia alternativa.

Esses consumidores têm sido denominados pela ANEEL e por outros agentes do mercado de “consumidores especiais”, pois são dotados de características não encontradas nos consumidores livres atendidos por energia convencional, proveniente de geradores de grande porte. Embora previstos desde 1996, os primeiros contratos de atendimento a consumidores especiais só foram implementados a partir do final de 2002.

Um atrativo adicional desse mercado de consumidores especiais é que, ao serem atendidos por fontes de energia alternativa, os consumidores têm direito a pelo menos 50% de desconto sobre a parcela “fio” da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD). Devido a tal desconto, as fontes alternativas foram rebatizadas para “fontes incentivadas”, pois muitos produtores entendiam que o termo “alternativa” conotava um fornecedor de qualidade inferior, o que certamente não é o caso.

É interessante mencionar que, no Brasil, as PCHs, usinas de biomassa e outras pequenas usinas foram desconsideradas como alternativa de suprimento durante muito tempo. De fato, durante o período que vai de 1957 a 1992, conhecido no Setor Elétrico Brasileiro como “Período da Regulamentação”, o Governo Federal preferiu dar ênfase à construção de grandes obras de geração, relegando pequenas usinas a segundo plano. A partir de meados da década de 90, refletindo a tendência mundial de se dar preferência a obras de baixo impacto ambiental, a situação começou a mudar e vários incentivos passaram a ser concedidos para fontes de energia alternativa e para os consumidores atendidos por elas. Os principais marcos regulatórios que definem os incentivos para fontes alternativas são os seguintes:

a) Lei 9.427/1996 (lei de criação da ANEEL) e alterações posteriores – Consumidores com demanda contratada, em qualquer segmento horosazonal, igual ou superior a 500 kW, podem ser atendidos por usinas eólicas, solares, de biomassa ou PCHs. Usinas entre 1 MW e 10 MW, destinadas à produção independente, podem ser autorizadas pela ANEEL sem licitação (http://www.aneel.gov.br/cedoc/lei19969427.pdf).

b) Lei 9.648/1998 – Consumidores atendidos por fontes alternativas passam a ter direito a 50% de desconto na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD), de modo a garantir a competitividade (http://www.aneel.gov.br/cedoc/LEI19989648.PDF).

c) Resolução ANEEL 264/1998 – Consumidores especiais devem ser tratados como consumidores cativos ao retornar à antiga distribuidora, atendidos por meio de tarifas e condições reguladas (http://www.aneel.gov.br/cedoc/RES1998264.PDF).

d) Resolução ANEEL 281/1999 – Para empreendimentos de geração alternativa que entraram em operação até 31 de dezembro de 2003, o desconto na TUSD passa a ser de 100% (http://www.aneel.gov.br/cedoc/RES1999281.PDF).

e) Lei 9991/2000 – As usinas eólicas, solares, de biomassa e PCHs passam a ser isentas do pagamento da taxa de 1% destinada a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) (http://www.aneel.gov.br/cedoc/LEI20009991.PDF).

f) Lei 10.438/2002 – A isenção do pagamento da taxa de P&D é estendida para as fontes de co-geração qualificada. O desconto de 50% na TUSD passa a incidir da geração ao consumo, mas o comando de garantia de competitividade é retirado. Nos sistemas isolados, o limite de demanda para comercialização incentivada fica reduzido para 50 kW. Consumidores com demanda igual ou superior a 500 kW, ou conjuntos de consumidores reunidos por comunhão de interesses, de fato ou de direito, passam a ter direito a adquirir energia de fontes alternativas. A participação no MRE é estendida para as PCHs (http://www.aneel.gov.br/cedoc/lei200210438.pdf).

g) Lei 10.762/2003 – Usinas hidrelétricas com potência instalada abaixo de 1 MW (microcentrais) passam a ter direito ao desconto da TUSD (http://www.aneel.gov.br/cedoc/lei200310762.pdf).

h) Resolução ANEEL 77/2004 – Regulamenta o desconto de 50% na TUSD, para consumidores atendidos por fontes de energia alternativa. O desconto é aplicado somente na parcela “fio” da TUSD, ficando a parcela “encargos” isenta do desconto (http://www.aneel.gov.br/cedoc/ren2004077.pdf).

i) Resolução ANEEL 247/2007 – Estabelece as condições para a comercialização de energia elétrica, oriunda de fontes primárias incentivadas, com unidade ou conjunto de unidades consumidoras cuja carga seja maior ou igual a 500 kW, no âmbito do Sistema Interligado Nacional – SIN. Essa resolução também prevê que o gerador incentivado pode complementar sua geração adquirindo até 49% da energia de outras fontes (http://www.aneel.gov.br/cedoc/ren2006247.pdf).

Apesar da extensa lista de incentivos, o fato de que o desconto da TUSD demorou mais de seis anos para ser regulamentado denota que há forte oposição a tais incentivos, especialmente por parte das distribuidoras.

As primeiras unidades dos subgrupos A4 e AS foram modeladas no MAE no início de 2003, atendidas por meio da energia gerada pela PCH Pesqueiro, localizada no rio Jaguariaíva, município de Jaguariaíva, Paraná. Nem a PCH Pesqueiro, nem a empresa consumidora eram, na época, agentes do MAE, e ambos passaram a ser representados no MAE por meio da Electra Energy, comercializadora de energia localizada em Curitiba, Paraná. Com a implementação da nova Convenção de Comercialização, em 29 de outubro de 2004 (Resolução Normativa ANEEL n° 109/2004), e com a conseqüente transformação do MAE na CCEE, a adesão dos consumidores à CCEE tornou-se obrigatória. A representação de consumidores não agentes por meio de uma comercializadora passou a não ser mais possível. Contudo, até 2004, este tipo de representação, denominada representação vertical, era totalmente permitido.

Em meados de 2003 começaram a surgir algumas vozes a favor da desmodelagem das unidades de consumidores especiais. Dentre outros, alegou-se os seguintes problemas:

a) A presença da comercializadora como representante do gerador e do consumidor estaria desrespeitando o preceito legal de que a operação de compra e venda de energia alternativa deve ser feita diretamente entre gerador e consumidor.

b) Não há mecanismo no SINERCOM capaz de distinguir a energia alternativa da energia convencional. Desta forma, não seria possível detectar automaticamente a eventual exposição de um consumidor especial aos preços do MAE.

c) Da mesma forma, uma comercializadora poderia usar parte da energia convencional de sua carteira para atender a exposição do consumidor especial, evitando penalidades, mas prejudicando a concessionária local de distribuição, que havia perdido para o Mercado Livre um consumidor anteriormente atendido na modalidade cativo.

O primeiro problema foi resolvido por meio de recurso administrativo impetrado junto ao MAE, e também de consulta formal envida à ANEEL. O cerne da argumentação foi o fato de que em nenhum momento o caráter direto da compra e venda de energia havia sido violado. De fato, o gerador e o consumidor haviam assinado um contrato de compra e venda, enquanto a comercializadora de energia havia assinado, com o gerador e com o consumidor, apenas contratos de representação, que se enquadram como contratos de prestação de serviços, e não de compra e venda de energia.

Quando aos dois problemas restantes, que representam dois aspectos de um único problema operacional, a argumentação foi a de que nenhum preceito legal havia sido ferido, e que todos os agentes estavam agindo na forma da lei. O MAE reconheceu a dificuldade e encaminhou a questão à ANEEL. Como conseqüência, a ANEEL incluiu uma modificação importante na versão 3.5 do Procedimento de Mercado ME.02, que regulamenta a Manutenção de Cadastro do Sistema Elétrico. Com tal modificação, tornou-se obrigatório o registro prévio, na ANEEL, do contrato de compra e venda de energia especial, sem o qual a modelagem não é efetivada. Portanto, os consumidores especiais passaram a ter que registrar seus contratos de maneira ex-ante, ou seja, antes que a modelagem seja concluída, resultando em dificuldades operacionais adicionais.

Ainda que tenha aumentado a burocracia, a exigência do registro prévio dos contratos de compra e venda, consolidada na Resolução 247/2007, constituiu em uma medida para se retirar da CCEE a atribuição de decidir quem poderia ser modelado como consumidor especial.

O mercado de consumidores especiais continua em crescimento, mas é limitado pela escassez de fontes de energia incentivada. Caso não existisse tal limite, todos os consumidores A4 qualificados a migrar para o Mercado Livre já o teriam feito, possibilidade sempre temida pelas distribuidoras, que lançam mão de todos os meios para evitar a migração. Apesar disso, o fracasso do recente leilão de fontes alternativas mostra, dentre outras coisas, que os produtores estão interessados em preços maiores do que os preços máximos do leilão, e que esperam conseguir tais preços no mercado. Comentarei sobre isso no próximo artigo dessa série.

quarta-feira, junho 20, 2007

O fim de “Roma”

O último episódio do segundo ano da mini-série “Roma” [1], co-produção da BBC (Reino Unido), da HBO (EUA) e da RAI (Itália), foi ao ar no Brasil no último domingo, pelo canal por assinatura HBO. É decepcionante saber que não haverá um terceiro ano da série, mas já foi bom ter havido um segundo ano, coisa que não fazia parte dos planos originais. E talvez seja melhor seguir a velha receita de parar no topo, com Augusto assumindo triunfalmente como primeiro imperador, do que arrastar a série por cinco ou dez anos e vê-la terminar com um suspiro e os bárbaros bradando aos portões.

Os criadores de “Roma” fizeram provavelmente a mais perfeita reconstituição do período histórico marcado pela transição entre a República e o Império Romano (o primeiro ano da série culmina com o assassinato de Julio César, enquanto o segundo ano culmina com a coroação de Otávio Augusto). Obviamente, algumas inevitáveis liberdades artísticas foram tomadas pelos produtores, mas nada tão radical e herético como a proposta, feita no filme “Gladiator” (2000), de que o imperador Commodus morreu no Coliseu em uma luta com um gladiador anônimo, fato do qual a história não faz menção.

No seriado, a Roma antiga é mostrada em detalhes, com especial atenção à vida dos cidadãos comuns, tradicionalmente excluídos dos relatos históricos. Dois dos principais personagens da história, por exemplo, Lucius Vorenus e Titus Pullo, são os soldados citados por Julio César em seus “Comentários sobre a guerra da Gália” (“Commentarri de Bello Gallico”). No relato de César, Vorenus e Pullo são centuriões da décima-primeira legião. No seriado, Vorenus é mostrado como o comandante de Pullo, ambos estranhamente pertencentes à décima-terceira legião (provavelmente a décima-primeira não pôde ser mobilizada a tempo para as filmagens).

"Roma” é um seriado graficamente violento e graficamente sexual do começo ao fim, a ponto de várias cenas terem sido excluídas das edições italiana e inglesa. Tais edições também removeram algumas linhas de linguagem mais forte, particularmente no caso da palavra “cunt”, que os britânicos acham ofensiva. Na edição brasileira, felizmente, todas as cenas foram preservadas (até onde eu sei) e a linguagem foi disfarçada com o uso de legendas mais suaves. Por exemplo, “cunt” foi traduzida por “vagina” e a expressão “fuck you”, usada como vírgula por Marco Antônio, foi frequentemente substituída pelo célebre e quase inofensivo “dane-se”.

A explicação dada pelo historiador Jonathan Stamp [2], que trabalhou como consultor para o seriado, quando perguntado pela razão das cenas de sexo, é bastante simples: Roma era assim mesmo. Os romanos não tinham o menor pudor quanto ao sexo e não o associavam a questões de culpa ou vergonha. “Eles faziam e adoravam”, diz Stamp [3]. Havia apenas um pequeno tabu: uma vez em Roma, esqueça o sexo oral, pelo menos na versão não paga. Aparentemente, os romanos consideravam a boca como algo sagrado e não a usavam para algo além de falar, comer e beber (e também para vomitar, prática comum durante os festins, quando o espaço no estômago já havia acabado, mas a comida ainda não).

Quanto à violência, a visão dos romanos antigos também era muito diferente da nossa. Por exemplo, se um escravo fosse intimado a prestar depoimento a favor de seu senhor, o testemunho não seria aceito a não ser que o escravo fosse previamente torturado. A razão disso residia no pragmatismo romano: seria natural esperar que qualquer escravo estivesse disposto a mentir a favor de seu senhor. Logo, era melhor torturá-lo antes de mais nada e eliminar qualquer dúvida. Contudo, a violência da tortura seria inadmissível contra um patrício, pois isso significaria remover-lhe a nobreza e a dignidade. E, de fato, em uma das cenas mais fortes do segundo ano, um verdugo se recusa a prosseguir com a tortura da patrícia Servilia, mesmo a mando de sua senhora, Átia. Jack Bauer não teria tais pudores, mas a moralidade romana sobre a violência dizia respeito à classe social da pessoa atingida pelo ato violento, não ao ato em si. De forma semelhamte, sacrificar um animal em honra aos deuses era permitido e até mesmo obrigatório, mas matar um animal sem motivo algum era visto como crueldade.

Um detalhe que seriado algum poderia reproduzir era o cheiro de Roma. Dizem que, ao aproximar-se de Roma, a cidade poderia ser cheirada muito antes de ser vista. Roma foi durante muito tempo a maior e mais rica cidade do mundo antigo, tinha aquedutos e esgotos, mas a tarefa de remover eficientemente os dejetos de um ou dois milhões de pessoas, em uma época na qual não existiam motores elétricos, era impensável! Considerando-se ainda o fato de que não existia tratamento de esgoto ou hábitos de higiene refinados, a conclusão não poderia ser outra: Roma fedia. Mas tal como a violência e os impostos, o fedor era encarado como mais um inevitável fato da vida. Depois de algum tempo, o cheiro não era nem mesmo percebido.

Apesar da grandeza da cidade, da complexidade da máquina de guerra e da extensão do império, a maioria dos cidadãos romanos vivia em um estado de pobreza extrema. O seriado mostra isso em várias situações. Por exemplo, por causa do embargo do trigo levantado por Marco Antônio, então governando o Egito em conjunto com Cleópatra, Roma tem seus estoques de grãos reduzidos a ponto de faltar pão para os plebeus. Os nobres, naturalmente, continuam comendo de tudo que sempre comeram, mas o povo é entregue à fome e à morte. Uma solução temporária, encontrada por Agripa e Otávio no seriado, envolveu o envio de três legiões para a África, onde os soldados puderam se alimentar à custa de Lépido, o mais fraco dos triúnviros, liberando-se um mês dos estoques romanos para alimentar o povo. Não sei se esse fato ocorreu, mas ele pode ser visto como um prelúdio daquele espírito de decadência e acomodação, tristemente eternizado pelo poeta Juvenal, que teve início depois de Augusto e culminou com a queda do Império: “...o povo, que certa vez teve em suas mãos comandos militares, altos cargos civis, legiões, tudo, agora se contém e espera ansiosamente por apenas duas coisas: pão e circo” [4].

Mesmo descontando-se o problema da fome, e apesar da glória e da riqueza romanas, a vida na Roma antiga era curta e arriscada para muitos patrícios e para a maioria esmagadora dos plebeus. Não importava quão rico você fosse, se você viesse a sofrer de uma mera apendicite aguda, o resultado quase certo seria a morte. Um dente infeccionado deveria ser extraído sem anestesia, fosse você nobre ou plebeu, e mesmo o mais poderoso dos imperadores não poderia obter informações mais rapidamente do que um cavalo poderia se mover. Não havia plano de aposentadoria, não havia plano de saúde, não havia seguro de vida, não havia emprego fixo, não havia universidades, não havia empresas e o crescimento econômico era medíocre. Tudo o que qualquer romano poderia fazer para se proteger das incertezas da vida era oferecer sacrifícios aos deuses. Os deuses romanos, ao contrário das versões mais benevolentes criadas pelas religiões posteriores, estavam lá para pegá-lo e deviam ser aplacados por meio de rituais. É estranho que, apesar da fantástica evolução científica e tecnológica do mundo moderno, muitas pessoas ainda pareçam pensar e agir dessa forma.

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[1] http://www.hbo.com/rome
[2] http://www.hbo.com/rome/cast/crew/jonathan_stamp.html
[3] http://www.hbo.com/rome/behind/rome_revealed/rome.html
[4] Juvenal. Livro IV, Sátira X, sec. I, II dC. Parcialmente disponível: http://en.wikipedia.org/wiki/Satires_of_Juvenal

sexta-feira, junho 15, 2007

Vamos relaxar!?

De acordo com estatísticas da Organização Mundial do Turismo, o Brasil, esse país enorme e abençoado com recursos naturais exuberantes, recebe anualmente cerca de metade dos turistas que recebe a Holanda, um país que tem pouco menos de 0,5% do nosso território e 8,8% da nossa população. Enquanto o Brasil recebe 4,8 milhões de turistas ao ano, a Holanda recebe 9,6 milhões (dados de 2004 [1][2]). E mesmo a Holanda não é páreo para a campeã mundial do turismo: a França, que abocanha anualmente 75 milhões de turistas. Como prêmio de consolação, cabe mencionar que a Argentina recebeu em 2004 aproximadamente 3,4 milhões de turistas, 30% menos do que nós, portanto.

À luz desse cenário, e considerando nossos problemas com violência, falta de infra-estrutura e uma moeda excessivamente valorizada, fato que torna o Brasil mais caro do que outros países latino-americanos, seria de esperar que o governo fizesse todo o possível para incentivar a vinda de turistas para cá. Mas agora, além de ficar em dúvida se deve visitar um país que frequentemente aparece mais nas páginas policiais do que em outras, o turista estrangeiro terá a certeza de que, ao enfrentar a crise nos aeroportos, será tratado com o desdém oficial e receberá a recomendação de “relaxar e gozar”.

Como todos os brasileiros sabem, a frase foi dita pela ministra Marta Suplicy, na última quarta-feira, 13 de junho, após o lançamento do Plano Nacional de Turismo. “Relaxe e goze porque você vai esquecer dos transtornos”, disse a ministra, usando uma péssima metáfora [3]. Pouco depois, a ministra divulgou uma nota onde se desculpava por ter usado os termos que usou, acrescentando que queria ter dito “viajar vale a pena”. Todavia, qualquer estudante de psicologia sabe que é impossível desfazer um ato falho. É o inconsciente falando e expressando um desejo ou idéia que o sujeito não gostaria de expressar conscientemente.

Infelizmente, não é possível relaxar frente às conseqüências econômicas da violência urbana e da nossa infra-estrutura deficiente. Nossa baixa visitação por turistas é apenas um reflexo disso. Não adianta fazer de conta que o problema não existe e, como o governo atual, dizer que parte da culpa é da imprensa, por não destacar os pontos positivos do país. Imprensa serve para isso mesmo: para alertar a sociedade sobre os problemas da nação, para apontar os erros do governo e da iniciativa privada, para propor soluções e sugerir correções de rumo, além de fazer o mea culpa quando necessário. Muitos brasileiros ficariam horrorizados, por exemplo, se pudessem entender o que a imprensa norte-americana diz, movida pelo verdadeiro espírito da liberdade de expressão. Nossa imprensa é até boazinha com os governantes, pois todos entendem que a democracia brasileira é jovem e precisa amadurecer. Neal Boortz, Rush Limbaugh e Bill O’Reilly, por outro lado, não serão nem de longe tão bonzinhos com o próximo presidente democrata que vier a ocupar o salão oval. De forma alguma eles irão relaxar.

[1] http://www.unwto.org/facts/eng/pdf/indicators/ITA_Americas.pdf
[2] http://www.unwto.org/facts/eng/pdf/indicators/ITA_europe.pdf
[3] http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL51536-5601,00.html

quarta-feira, junho 06, 2007

Sobre a palestra de Eduardo Lütz: “Ciência, Fé, Evolucionismo e Criacionismo”

No último 1 de junho, o professor Eduardo Lütz esteve na UTFPR, em companhia de sua esposa Maria da Graça, a convite do sindicato dos professores, para proferir a palestra “Ciência, Fé, Evolucionismo e Criacionismo”.

Eduardo Lütz [1] é bacharel, mestre e doutor em física pela UFRGS, embora insista em deixar claro que ainda não defendeu sua tese de doutorado e, portanto, não pode envergar oficialmente este último título. Em física, as áreas de interesse dele são relatividade geral, teoria quântica dos campos, cosmologia e física nuclear. Em matemática, ele se interessa por geometria diferencial, geometrias riemannianas, álgebras e fundamentos. Atualmente, trabalha para a Hewlett-Packard em desenvolvimento de software.

Em uma palestra que durou pouco mais de uma hora, complementada por cerca de meia hora de palestra de Maria da Graça sobre “O Mundo do RNA e o Sonho do Biólogo Molecular”, Eduardo Lütz falou basicamente sobre filosofia da ciência, método cientifico, mitos sobre a matemática e teceu algumas considerações sobre o debate entre criacionismo e evolucionismo. Seguem-se alguns comentários sobre o evento.

Teorias Científicas e Modelos Matemáticos
A tese de Lütz é a de que uma teoria, para ser científica, deve ser dotada de uma estrutura algébrica. Em outras palavras, para ele uma teoria científica deve ser axiomatizável, assunto ligado aos trabalhos do matemático alemão David Hilbert (1862 – 1943).

Em 1900, Hilbert proferiu uma palestra histórica, na qual descreveu 23 problemas dos quais, segundo ele, os matemáticos do século XX iriam se ocupar. O sexto problema de Hilbert, em particular, é justamente o problema da axiomatização das teorias das ciências empíricas: “tratar do mesmo modo, por meio de axiomas, as ciências físicas nas quais a matemática tem importante papel: em primeiro lugar estão a teoria das probabilidades e a mecânica”.

As considerações de Hilbert motivaram o tratamento rigoroso das teorias físicas, do ponto de vista axiomático, a exemplo do que já se fazia e se faz corriqueiramente em matemática. Segundo SANT’ANNA, que escreveu um livro interessante e acessível sobre axiomas, “hoje já temos sistemas axiomáticos para as teorias da física, da biologia, da economia a até mesmo para as geociências” [2].

O tratamento matemático da biologia, contudo, traz problemas inerentes ao próprio objeto de estudo: a complexidade dos seres vivos. A física, a mais bem sucedida das ciências empíricas, não adquiriu esse status apenas por causa da genialidade de seus criadores, mas por estudar sistemas simples em comparação aos sistemas vivos. Exigir um modelo matemático detalhado da teoria da evolução significaria exigir o conhecimento do genoma de todas as espécies que vivem e já viveram, além de se saber como tais espécies se relacionam e se relacionavam, etc. Perto de tal tarefa, até mesmo a versão mais refinada da teoria das supercordas se torna trivial.

Todavia, pode-se obter resultados matemáticos interessantes quando se reduz o nível de complexidade de um modelo biológico. Um exemplo é representado pelas equações de Lotka-Volterra, também conhecidas como “modelo predador-presa”, que são duas equações diferenciais não lineares usadas para se descrever a dinâmica populacional de um sistema onde duas espécies (um predador e uma presa) interagem [3]. Essas equações têm sido estudadas em uma variedade de situações desde os anos 20, quando foram propostas independentemente por Alfred Lotka (1880 – 1949) e Vito Volterra (1860 – 1940). O modelo resultante pode ser estendido para incluir mutações, número de predadores e presas superior a um e pode exibir comportamento caótico, dependendo de alguns parâmetros.

Outro exemplo de “matematização” da teoria da evolução envolve a teoria dos jogos. Esse campo de estudo teve origem em 1973, com a publicação do artigo “The logic of animal conflict”, de John Maynard Smith (1920 – 2004) e George R. Price (1922 – 1975). Em 1982, Smith publicou o livro “Evolution and the theory of games”, onde o conceito de Estratégia Evolucionariamente Estável (ESS – Evolutionarily Stable Strategy) foi formalizado. A ESS é um refinamento do equilíbrio de Nash, onde se supõe que a única força em jogo é a seleção natural (no equilíbrio de Nash o comportamento racional pode entrar em ação).

Sendo assim, esforços para tratar matematicamente a teoria da evolução existem há muito tempo e não é totalmente correto dizer que tal teoria não tem estrutura algébrica. Talvez ela não tenha estrutura algébrica “formal”, mas exigir isso de uma teoria biológica significaria supor a biologia redutível à física e, finalmente, à matemática. Só que nenhuma área da ciência é científica da maneira como a física é científica!

Apesar disso, uma teoria que tenha estrutura algébrica formal não é necessariamente uma teoria correta. Exemplo disso ocorre com as teorias da gravitação. Em 1915, Albert Einstein criou a primeira teoria geométrica da gravitação, que considera o campo gravitacional como uma curvatura do espaço-tempo causada pela presença de matéria. Essa teoria, denominada relatividade geral, permite o cálculo correto da deflexão da luz por corpos pesados como o Sol, dá uma estimativa mais precisa para a precessão da órbita do planeta Mercúrio e prevê outros fenômenos gravitacionais de interesse aos especialistas, como o desvio gravitacional para o vermelho e o atraso do tempo em campos gravitacionais fortes, além de ser compatível com a gravitação newtoniana no limite de campos fracos. Tais assuntos já foram objeto de vários artigos e livros de divulgação científica, mas, fora do círculo dos especialistas, é pouco conhecido que existem dezenas de teorias gravitacionais alternativas à relatividade geral. Nada deixa esse fato mais claro do que o formalismo conhecido como PPN (Parametrized post-Newtonian), usado para comparar teorias clássicas da gravitação (ou seja, teorias “não quânticas”, como é o caso da relatividade geral). Existem mais de 20 teorias da gravitação que tiveram seus parâmetros PPN calculados (o número já foi maior, mas algumas teorias são descartadas de tempos em tempos). Todas são teorias matemáticas sérias e a própria existência dos parâmetros PPN mostra um elevado grau de formalismo matemático. Mesmo assim, apenas a relatividade geral passa em todos os testes experimentais [4].

Conclui-se, portanto, que o requisito de um modelo matemático pode ser visto até mesmo como necessário para que uma teoria seja científica, mas não se trata de um requisito suficiente.

Outro ponto interessante sobre modelos matemáticos é que ninguém sabe ao certo por que a matemática se aplica mesmo às teorias físicas mais elementares. A esse respeito, é difícil resistir à tentação de afirmar que a matemática é algo mais do que uma criação humana. O físico Roger Penrose, por exemplo, afirma categoricamente que “A noção de verdade matemática vai além do conceito de formalismo. Há alguma coisa de absoluto e “divino” na verdade matemática” [5]. Essa é uma visão platônica da matemática, termo usado porque o filósofo Platão acreditava que os conceitos matemáticos tinham uma existência etérea e atemporal, como se criados por Deus. Há, contudo, outras visões da matemática. Para o intuicionismo, surgido com os trabalhos do matemático holandês Luitzen Egbertus Jan Brouwer (1881– 1965), um conceito matemático não têm existência em si mesmo e deve ser pensado em termos das regras que determinam sua existência e comportamento. Essa visão pode ser rapidamente aceita por alguém que usa a matemática como instrumento, como um engenheiro ou um físico, mas tem causado muita discussão entre os matemáticos desde os tempos de Aristóteles, discípulo de Platão e a quem a visão intuicionista remonta. O intuicionismo, assim como outras escolas construtivistas, afirma que a matemática é uma invenção da mente humana, em oposição à visão platônica.

Se a matemática é uma invenção humana, podemos muito bem aventar a hipótese de que a matemática se aplica tão bem à física simplesmente porque os conceitos matemáticos foram inventados para que se aplicassem muito bem à física. O estranho é que ninguém poderia supor, como nos lembra o físico Eugene Wigner [6] (1902 – 1995), que os números complexos, inventados pelos matemáticos em bases puramente teóricas, fossem encontrar aplicação na mecânica quântica (e, em um nível bem menos essencial, na teoria de circuitos de corrente alternada e outras áreas da física). Há vários de tais exemplos, que nos dão a impressão de que a matemática foi criada por Deus, e que os números complexos habitavam o mundo das idéias desde o início dos tempos, esperando calmamente pela hora de entrar em cena. Entretanto, para cada invenção matemática que encontra aplicação em física, outras tantas não alcançam tal destino e passam a eternidade nas páginas dos livros de matemática pura.

Cientistas criacionistas
Em sua palestra, Eduardo Lütz citou quatro cientistas criacionistas, segundo ele: Newton, Maxwell, Hamilton e Einstein. A lista é na verdade muito maior, incluindo cientistas como Kepler, Pascal, Leibnitz, Davy, Faraday, Ramsay e outros. Contudo, é difícil incluir Einstein nessa lista. Em suas “Notas Autobiográficas”, esse cientista escreveu: “A leitura de livros científicos populares convenceu-me de que a maioria das histórias da Bíblia não podia ser real. A conseqüência foi uma orgia positivamente fanática de livre-pensamento, combinada com a impressão de que a juventude é decididamente enganada pelo Estado, com mentiras; foi uma descoberta esmagadora” [7].

Mesmo assim, especulações sobre a posição religiosa de Einstein sempre existiram. Ele mesmo parece ter aumentado a confusão, ao escrever: “Não consigo conceber um Deus pessoal que influa diretamente sobre as ações dos indivíduos, ou que julgue, diretamente, criaturas por Ele criadas. Não posso fazer isso, apesar do fato de que a causalidade mecanicista foi, até certo ponto, posta em dúvida pela ciência moderna” [8]. A julgar por essas palavras, não fica claro se ele não acreditava em um criador, ou se apenas acreditava em um criador que não julgava suas criaturas. Apesar disso, o consenso é que Einstein definitivamente não acreditava em um Deus judaico-cristão. Em vez disso, ele era muito mais um panteísta que acreditava em um deus presente na natureza e representado nela, mas não em um deus antropomórfico. De fato, em mais de uma vez ele se revelou favorável ao “Deus de Spinoza”, filósofo do século XVII, excomungado da comunidade judaica por suas crenças não convencionais.

Apesar de tudo isso, e como já insisti em outras ocasiões nesse blog, a crença de Einstein ou de quem quer que seja não é importante na tarefa de determinarmos a validade de uma afirmação. Ao lado de cientistas criacionistas, podemos listar um número enorme de cientistas ateus, agnósticos, não religiosos ou simplesmente não criacionistas, tais como Richard Feynman, Carl Sagan, Stephen Hawking, Newton da Costa, Marcelo Gleiser, Richard Dawkins e vários outros. A conclusão, como já sabemos, é que o número de adeptos não serve para validar crenças, afirmações ou teorias científicas.

No debate que se seguiu à palestra, Eduardo Lütz argumentou que entendia por “criacionista” apenas uma pessoa que acredita em Deus ou em uma força superior. Tal definição é claramente insuficiente, pois inclui na categoria de criacionistas todas aquelas pessoas que acreditam em um Deus não criador, como é o caso dos panteístas. Afinal, quem garante que Deus, caso exista, não surgiu juntamente com o universo?

Hamilton, Princípio Variacional e Criacionismo
Outro ponto realçado no debate diz respeito às contribuições dos criacionistas à ciência. Lütz citou o princípio variacional de Hamilton como exemplo.

William Rowan Hamilton (1805 – 1865) foi um matemático, físico e astrônomo irlandês que fez grandes contribuições à matemática à física. As equações de Hamilton, por exemplo, são de grande importância em física e o nome de Hamilton estará para sempre ligado à mecânica clássica e à mecânica quântica. Em 1834 e 1835, Hamilton publicou seus resultados da aplicação de um princípio variacional à equação L = T – V, onde T é a energia cinética e V é a energia potencial de um sistema, possibilitando a obtenção das equações do movimento. A função L é modernamente denominada “lagrangeano”, em homenagem ao matemático italiano Joseph-Louis Lagrange (1736 – 1813), criador do cálculo variacional.

Um princípio variacional serve para identificar quando uma função atinge um ponto extremo, que pode ser um máximo, um mínimo ou um ponto de sela. O princípio variacional de Hamilton, em particular, diz que o movimento de um sistema, de um instante t1 a um instante t2, é tal que a integral de linha de L entre esses instantes é estacionária para o caminho que corresponde ao movimento real”. Por “estacionária” entende-se que o valor da integral não varia para caminhos próximos ao caminho real. Um “sistema mecânico” pode ser uma partícula material, um conjunto de partículas ou corpos mais complexos, conhecidos como “corpos rígidos”.

Assim, dentre todas as possíveis trajetórias que o sistema mecânico pode seguir, a trajetória real corresponde precisamente ao caminho para o qual a integral de L.dt é estacionária. Todas as equações do movimento (i.e., as leis de Newton) decorrem desse princípio simples, que pode ser escrito como dI = 0, onde I é a integral de L.dt, frequentemente denominada “ação” (o símbolo usado pelo professor Lütz para a ação foi, se não me engano, l, mas uso aqui a simbologia clássica de Goldstein [9]). Qualquer estudante de mecânica já ficou fascinado, no mínimo intrigado, por esse aspecto de elegante simplicidade do princípio de Hamilton, também conhecido como princípio da ação mínima. É realmente fascinante que toda a mecânica clássica possa surgir de uma equação tão simples. Contudo, dizer que o princípio de Hamilton é uma “descoberta criacionista” é um pouco exagerado.

Em primeiro lugar, é um tanto arriscado dizer que o princípio de Hamilton é um sinal de comportamento ótimo do universo. Falamos em “otimização” em várias situações na engenharia. Por exemplo, é impossível construir uma máquina elétrica (ou qualquer outra máquina) sem que esta apresente perdas, mas podemos minimizar tais perdas, levando em conta alguns detalhes do funcionamento e o custo final desejado. Por um lado, poderíamos super-dimensionar uma máquina, de maneira que as perdas fossem desprezíveis frente à potencia nominal. Entretanto, essa máquina seria tão cara que ninguém a compraria. De outro lado, poderíamos projetar uma máquina de maneira mais displicente, que custaria muito menos do que as versões disponíveis no mercado. Contudo, todo o dinheiro economizado na aquisição seria gasto posteriormente em energia elétrica, por causa das perdas elevadas. Assim, ao menos nesse caso, “a virtude está no meio” e é possível construir uma máquina que, do ponto de vista da tecnologia atual, não seja nem muito cara e nem tenha perdas excessivas: uma máquina ótima.

O mesmo não ocorre no caso do universo, pois não podemos fazer experiências com universos diferentes. Assim, não sabemos se o princípio de Hamilton é um princípio de otimização empregado pelo Criador ou se é apenas uma característica do universo. No momento não há resposta para essa questão, pois a ciência atual apenas descreve o funcionamento do universo, não o explica. A resposta deve ser buscada na filosofia ou na religião e, nessas áreas, não há como ter certeza das respostas.

A segunda razão pela qual não me parece adequado denominar o princípio de Hamilton de “descoberta criacionista” é que o criacionismo é uma invenção bastante recente. Embora os cientistas e filósofos da época de Hamilton fossem todos religiosos, o criacionismo somente surgiu quando as observações empíricas das ciências naturais começaram a entrar em conflito com a tradição judaico-cristã. O próprio termo “criacionismo” não era comum antes do final do século XIX. Alem disso, não me parece adequado argumentar que a descoberta (ou “invenção”?) do princípio variacional esteja necessariamente ligada à religiosidade de Hamilton. Talvez fosse igualmente adequado denominá-la “descoberta irlandesa”.

Teoria da Evolução e Evolucionismo
Durante toda a palestra e durante a discussão que se seguiu, a palavra “evolucionismo” foi usada extensivamente como sinônimo de uma teoria que explica o surgimento da vida na Terra. Há dois erros aqui. Primeiro, a teoria da evolução não é um “ismo”. Não se trata de uma ideologia à qual se adere por meio da fé ou de algum tipo de conversão. Até mesmos alguns biólogos usam tal termo, talvez por economia de linguagem, mas ele não é adequado. Não existe “evolucionismo” da mesma forma que não existe “newtonismo”, “einsteinismo” ou “relativismo”. O segundo erro é que a teoria da evolução não tem nada a dizer sobre a origem da vida na Terra.

Embora esse segundo erro seja comum, a evolução biológica é apenas a mudança dos traços hereditários de uma população de uma geração para outra, produzida por mutações genéticas e orientada pela seleção natural. A evolução biológica é um fato. Há tantas evidências a esse respeito que negá-lo seria o mesmo que negar que as maçãs caem quando soltas a um metro do chão. A evolução histórica dos seres vivos, que decorre da evolução biológica, significa que todos os seres vivos sobre a Terra descendem de um ancestral comum. Embora tal afirmação ofenda a religião de muitas pessoas, que por alguma razão ficam indignadas ao saber que homens, chimpanzés e gorilas descendem de um mesmo ancestral, também há tantas evidências a esse respeito que a evolução histórica é considerada um fato. Não há nem mesmo explicação científica alternativa, da mesma forma que não há explicação alternativa para o fato de uma maçã cair (é a gravidade, e ponto; se iremos usar a mecânica newtoniana, a relatividade geral ou outra teoria para fazer os cálculos, é outra história!).

Entretanto, dizer algo sobre a evolução biológica (que se manifesta no decorrer de poucas gerações de moscas da fruta, por exemplo), ou sobre a evolução histórica (que se manifesta ao longo de milhões de anos) não significa dizer como a vida surgiu na Terra.

Eu citei tal diferença durante a seção de perguntas após a palestra. O professor Lütz então concordou que o termo “evolucionismo” havia sido mal empregado, mas, pelas razões comentadas anteriormente, discordou que a evolução fosse realmente uma teoria científica: a ausência de uma estrutura algébrica formal.

Geração Espontânea, Abiogênese e a Navalha de Occam
Da mesma forma que ocorreu com o termo “evolucionismo”, o termo “geração espontânea” foi empregado durante a palestra com o significado de “surgimento da vida a partir de matéria inanimada”. É fácil atacar a geração espontânea, pois qualquer aluno do ensino médio sabe que tal teoria foi desmentida por Louis Pasteur (1822 – 1895) por meio de uma série de experimentos realizados em 1862 (três anos depois da publicação do livro “A origem das espécies por meio da seleção natural”, de Charles Darwin - note também que o próprio título do livro de Darwin menciona “origem das espécies”, não “origem da vida”). Contudo, a hipótese da origem não biológica da vida não significa que tal origem tenha sido “espontânea”. É mais correto falar em “abiogênese” (do grego a-bio-genesis, ou “origem não biológica”).

No momento, não podemos dizer com certeza que a vida surgiu na Terra há pouco menos de 4 bilhões de anos, no meio de uma sopa ou barro pré-biótico, como resultado de reações químicas entre macromoléculas orgânicas. Trata-se apenas da hipótese mais provável, mas ainda não há provas suficientes. O que podemos dizer com certeza é que, se tal processo ocorreu, ele não teve nada de espontâneo. Ele ocorreu por causa da afinidade química entre certas moléculas, decorrente das leis físicas que governam o comportamento microscópico da matéria, e também da presença de fontes de energia na Terra primitiva (descargas atmosféricas e o calor do Sol), bem como de uma versão primordial da seleção natural: as moléculas orgânicas que não sucumbiram à degeneração espontânea após a formação tiveram mais tempo para se reproduzir e aumentar a população.

Outra hipótese para a origem da vida na Terra é a panspermia: a hipótese de que a vida foi trazida de outros lugares no universo, por meio de asteróides que aqui caíram ou sob a forma de esporos interestelares. O argumento mais óbvio contra a panspermia é o de que tal hipótese apenas transforma a tarefa de se explicar a origem da vida na Terra na tarefa muito mais complexa de se explicar a origem da vida em outro lugar do universo.

Finalmente, temos a hipótese do criacionismo: a vida na Terra surgiu por obra de um criador ou planejador inteligente. Na versão mais forte da hipótese criacionista, Deus cria e mantém toda a vida na Terra, sem se importar com seleção natural, mutações ou extinção de espécies. Na versão mais fraca, Deus apenas cria as primeiras bactérias e deixa o resto por conta das leis da física (criadas também por ele, presumivelmente). Podemos imaginar também uma “versão fraquíssima”, onde Deus interfere somente o bastante para assegurar que as primeiras moléculas de RNA, formadas por abiogênese, sobrevivam o tempo suficiente para dar origem ao mundo de DNA e proteínas atual. Nenhuma dessas três versões, contudo, é muito bem aceita pela comunidade científica, por duas singelas razões: (a) é difícil imaginar hipótese mais simples do que a da abiogênese; (b) a hipótese da existência de um ser dotado de super-poderes é complicada demais.

Em ciência, quando tudo o mais está confuso, é costume usar-se um princípio de seleção de hipóteses conhecido como “navalha de Occam”. Não se trata de um princípio científico, mas sim filosófico e, embora seja comum no meio científico, foi criado pelo monge franciscano Guilherme de Occam (1288 – 1348) com a finalidade de explicar a existência de Deus. A navalha de Occam nos diz que, quando duas ou mais teorias concorrem, devemos escolher aquela que considera o menor número de hipóteses. Por tal razão, esse princípio é frequentemente conhecido como “princípio da economia de hipóteses”.

Como ocorre com toda navalha, a de Occam deve ser usada com bastante cuidado, pois, tratando-se de um princípio estético, boa parte do critério depende dos preconceitos do selecionador e de conceitos subjetivos. No caso do problema da origem da vida, a navalha de Occam nos diz que a hipótese da abiogênese é mais simples do que a hipótese da origem divina, pois contém menos pressupostos básicos e pode ser comprovada empiricamente, ao menos em princípio. Logo, devemos exaurir a hipótese da abiogênese antes de recorrermos ao salto de fé necessário à hipótese divina. Tal conclusão certamente teria surpreendido o próprio Occam, mas não é de hoje que sabemos que as criaturas frequentemente se voltam contra seus criadores.

Considerações finais sobre a palestra e o debate
Não tenho certeza se muita gente entendeu a palestra do professor Lütz em toda sua extensão. Durante quase toda a exposição ele falou sobre física e matemática, não sobre criação e evolução. Na tela apareceram expressões matemáticas como o princípio de Hamilton e a equação de Dirac, as quais estão muito além do domínio dos alunos normais dos cursos de Tecnologia e Engenharia que compunham a platéia. Além disso, somente com muita dificuldade tais conceitos podem ser relacionados aos problemas da origem da vida ou da evolução das espécies.

A exposição da professora Maria da Graça, interessante por si mesma, serviu apenas como pretexto para o argumento da improbabilidade do surgimento abiótico da vida (infelizmente referido como “geração espontânea”).

O debate que se seguiu às palestras deixou claro que o público que lotava o mini-auditório da UTFPR estava mais interessado nos aspectos religiosos do tema. É de certa forma decepcionante ver uma exposição razoavelmente científica ser seguida de referências a Hebreus, Salmos e, obviamente, Gênesis. Apesar disso, o professor Lütz manteve os pés no chão em relação a muitos assuntos. Ele não cometeu os erros tradicionais dos criacionistas sobre as leis da termodinâmica e afirmou que a hipótese da “Terra jovem” é uma bobagem sem fundamento científico. Ele também entende que a evolução por seleção natural realmente ocorre e tem argumentos apenas contra a hipótese da abiogênese. Ainda assim, não considero que a insistência dele em descaracterizar a teoria da evolução como teoria científica, com base na ausência de estrutura algébrica da mesma, seja realmente relevante. Também me preocupa o já mencionado descuido terminológico, que coloca teoria da evolução, abiogênese e geração espontânea no mesmo pacote. Talvez fosse interessante alguém organizar uma palestra com o objetivo de esclarecer tais conceitos.

[1] Eduardo Lütz Page. Disponível em: <http://edlutz.totalh.com/>.
[2] SANT’ANNA, A. O que é um axioma. Manole, 2003, p. 10.
[3] WEISSTEIN, E. W. "Lotka-Volterra Equations." From MathWorld--A Wolfram Web Resource. Disponível em: <http://mathworld.wolfram.com/Lotka-VolterraEquations.html>.
[4] WILL, C.M. The confrontation between general relativity and experiment. Living Rev. Relativity, 2006, v.6. Disponível em: <http://relativity.livingreviews.org/Articles/lrr-2006-3>. [5] PENROSE, R. A mente nova do rei. Ed. Campus, 1991, p. 124.
[6] WIGNER, E. The unreasonable effectiveness of mathematics in the natural sciences. 1960. Disponível em: < http://www.dartmouth.edu/~matc/MathDrama/reading/Wigner.html>
[7] EINSTEIN, A. Notas autobiográficas. Nova Fronteira, 3ed, 1982, p.14.
[8] DUKAS, H., HOFFMANN, B. (org). Albert Einstein, o lado humano. Ed. Universidade de Brasília, 1979, p. 53.
[9] GOLDSTEIN, H. Classical Mechanics. Addison-Wesley, 2ed, 1981, p. 36.