O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte VI: O Mercado de Fontes Incentivadas
Atualmente, o limite imposto para que um consumidor existente possa ser caracterizado como livre é pertencer ao Grupo A (Alta Tensão), ser atendido em tensões iguais ou superiores a 69 kV e ter demanda contratada igual ou superior a 3 MW. Adicionalmente, consumidores novos, ou seja, aqueles instalados após 1995, também podem se tornar livres, independentemente da tensão, desde que respeitado o limite de demanda igual ou superior a 3 MW. Note-se que 3 MW já é o nível de demanda de vários tipos de instalações comerciais de médio porte, tais como shopping centers e hotéis, além de instalações industriais de vários tipos, atendidas nos subgrupos AS (subterrâneo), A4 (2,3 kV a 25 kV) e A3a (30 kV a 44 kV).
Uma modificação importante foi introduzida com a outorga da Lei 9.427/1996, alterada com a sanção das Leis 9.648/1998 e 10.438/2002, e que teve sua redação consolidada pela lei 10.762/2003 e pelo Decreto 5.163/2004. Essa lei definiu que os aproveitamentos a partir de fontes de energia alternativa (eólica, biomassa , solar e PCHs) poderiam atender consumidores com carga maior ou igual a 500 kW, em qualquer tensão. Assim, tais consumidores passaram a se enquadrar efetivamente na condição de livres, desde que atendidos diretamente por fontes de energia alternativa.
Esses consumidores têm sido denominados pela ANEEL e por outros agentes do mercado de “consumidores especiais”, pois são dotados de características não encontradas nos consumidores livres atendidos por energia convencional, proveniente de geradores de grande porte. Embora previstos desde 1996, os primeiros contratos de atendimento a consumidores especiais só foram implementados a partir do final de 2002.
Um atrativo adicional desse mercado de consumidores especiais é que, ao serem atendidos por fontes de energia alternativa, os consumidores têm direito a pelo menos 50% de desconto sobre a parcela “fio” da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD). Devido a tal desconto, as fontes alternativas foram rebatizadas para “fontes incentivadas”, pois muitos produtores entendiam que o termo “alternativa” conotava um fornecedor de qualidade inferior, o que certamente não é o caso.
É interessante mencionar que, no Brasil, as PCHs, usinas de biomassa e outras pequenas usinas foram desconsideradas como alternativa de suprimento durante muito tempo. De fato, durante o período que vai de 1957 a 1992, conhecido no Setor Elétrico Brasileiro como “Período da Regulamentação”, o Governo Federal preferiu dar ênfase à construção de grandes obras de geração, relegando pequenas usinas a segundo plano. A partir de meados da década de 90, refletindo a tendência mundial de se dar preferência a obras de baixo impacto ambiental, a situação começou a mudar e vários incentivos passaram a ser concedidos para fontes de energia alternativa e para os consumidores atendidos por elas. Os principais marcos regulatórios que definem os incentivos para fontes alternativas são os seguintes:
a) Lei 9.427/1996 (lei de criação da ANEEL) e alterações posteriores – Consumidores com demanda contratada, em qualquer segmento horosazonal, igual ou superior a 500 kW, podem ser atendidos por usinas eólicas, solares, de biomassa ou PCHs. Usinas entre 1 MW e 10 MW, destinadas à produção independente, podem ser autorizadas pela ANEEL sem licitação (http://www.aneel.gov.br/cedoc/lei19969427.pdf).
b) Lei 9.648/1998 – Consumidores atendidos por fontes alternativas passam a ter direito a 50% de desconto na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD), de modo a garantir a competitividade (http://www.aneel.gov.br/cedoc/LEI19989648.PDF).
c) Resolução ANEEL 264/1998 – Consumidores especiais devem ser tratados como consumidores cativos ao retornar à antiga distribuidora, atendidos por meio de tarifas e condições reguladas (http://www.aneel.gov.br/cedoc/RES1998264.PDF).
d) Resolução ANEEL 281/1999 – Para empreendimentos de geração alternativa que entraram em operação até 31 de dezembro de 2003, o desconto na TUSD passa a ser de 100% (http://www.aneel.gov.br/cedoc/RES1999281.PDF).
e) Lei 9991/2000 – As usinas eólicas, solares, de biomassa e PCHs passam a ser isentas do pagamento da taxa de 1% destinada a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) (http://www.aneel.gov.br/cedoc/LEI20009991.PDF).
f) Lei 10.438/2002 – A isenção do pagamento da taxa de P&D é estendida para as fontes de co-geração qualificada. O desconto de 50% na TUSD passa a incidir da geração ao consumo, mas o comando de garantia de competitividade é retirado. Nos sistemas isolados, o limite de demanda para comercialização incentivada fica reduzido para 50 kW. Consumidores com demanda igual ou superior a 500 kW, ou conjuntos de consumidores reunidos por comunhão de interesses, de fato ou de direito, passam a ter direito a adquirir energia de fontes alternativas. A participação no MRE é estendida para as PCHs (http://www.aneel.gov.br/cedoc/lei200210438.pdf).
g) Lei 10.762/2003 – Usinas hidrelétricas com potência instalada abaixo de 1 MW (microcentrais) passam a ter direito ao desconto da TUSD (http://www.aneel.gov.br/cedoc/lei200310762.pdf).
h) Resolução ANEEL 77/2004 – Regulamenta o desconto de 50% na TUSD, para consumidores atendidos por fontes de energia alternativa. O desconto é aplicado somente na parcela “fio” da TUSD, ficando a parcela “encargos” isenta do desconto (http://www.aneel.gov.br/cedoc/ren2004077.pdf).
i) Resolução ANEEL 247/2007 – Estabelece as condições para a comercialização de energia elétrica, oriunda de fontes primárias incentivadas, com unidade ou conjunto de unidades consumidoras cuja carga seja maior ou igual a 500 kW, no âmbito do Sistema Interligado Nacional – SIN. Essa resolução também prevê que o gerador incentivado pode complementar sua geração adquirindo até 49% da energia de outras fontes (http://www.aneel.gov.br/cedoc/ren2006247.pdf).
Apesar da extensa lista de incentivos, o fato de que o desconto da TUSD demorou mais de seis anos para ser regulamentado denota que há forte oposição a tais incentivos, especialmente por parte das distribuidoras.
As primeiras unidades dos subgrupos A4 e AS foram modeladas no MAE no início de 2003, atendidas por meio da energia gerada pela PCH Pesqueiro, localizada no rio Jaguariaíva, município de Jaguariaíva, Paraná. Nem a PCH Pesqueiro, nem a empresa consumidora eram, na época, agentes do MAE, e ambos passaram a ser representados no MAE por meio da Electra Energy, comercializadora de energia localizada em Curitiba, Paraná. Com a implementação da nova Convenção de Comercialização, em 29 de outubro de 2004 (Resolução Normativa ANEEL n° 109/2004), e com a conseqüente transformação do MAE na CCEE, a adesão dos consumidores à CCEE tornou-se obrigatória. A representação de consumidores não agentes por meio de uma comercializadora passou a não ser mais possível. Contudo, até 2004, este tipo de representação, denominada representação vertical, era totalmente permitido.
Em meados de 2003 começaram a surgir algumas vozes a favor da desmodelagem das unidades de consumidores especiais. Dentre outros, alegou-se os seguintes problemas:
a) A presença da comercializadora como representante do gerador e do consumidor estaria desrespeitando o preceito legal de que a operação de compra e venda de energia alternativa deve ser feita diretamente entre gerador e consumidor.
b) Não há mecanismo no SINERCOM capaz de distinguir a energia alternativa da energia convencional. Desta forma, não seria possível detectar automaticamente a eventual exposição de um consumidor especial aos preços do MAE.
c) Da mesma forma, uma comercializadora poderia usar parte da energia convencional de sua carteira para atender a exposição do consumidor especial, evitando penalidades, mas prejudicando a concessionária local de distribuição, que havia perdido para o Mercado Livre um consumidor anteriormente atendido na modalidade cativo.
O primeiro problema foi resolvido por meio de recurso administrativo impetrado junto ao MAE, e também de consulta formal envida à ANEEL. O cerne da argumentação foi o fato de que em nenhum momento o caráter direto da compra e venda de energia havia sido violado. De fato, o gerador e o consumidor haviam assinado um contrato de compra e venda, enquanto a comercializadora de energia havia assinado, com o gerador e com o consumidor, apenas contratos de representação, que se enquadram como contratos de prestação de serviços, e não de compra e venda de energia.
Quando aos dois problemas restantes, que representam dois aspectos de um único problema operacional, a argumentação foi a de que nenhum preceito legal havia sido ferido, e que todos os agentes estavam agindo na forma da lei. O MAE reconheceu a dificuldade e encaminhou a questão à ANEEL. Como conseqüência, a ANEEL incluiu uma modificação importante na versão 3.5 do Procedimento de Mercado ME.02, que regulamenta a Manutenção de Cadastro do Sistema Elétrico. Com tal modificação, tornou-se obrigatório o registro prévio, na ANEEL, do contrato de compra e venda de energia especial, sem o qual a modelagem não é efetivada. Portanto, os consumidores especiais passaram a ter que registrar seus contratos de maneira ex-ante, ou seja, antes que a modelagem seja concluída, resultando em dificuldades operacionais adicionais.
Ainda que tenha aumentado a burocracia, a exigência do registro prévio dos contratos de compra e venda, consolidada na Resolução 247/2007, constituiu em uma medida para se retirar da CCEE a atribuição de decidir quem poderia ser modelado como consumidor especial.
O mercado de consumidores especiais continua em crescimento, mas é limitado pela escassez de fontes de energia incentivada. Caso não existisse tal limite, todos os consumidores A4 qualificados a migrar para o Mercado Livre já o teriam feito, possibilidade sempre temida pelas distribuidoras, que lançam mão de todos os meios para evitar a migração. Apesar disso, o fracasso do recente leilão de fontes alternativas mostra, dentre outras coisas, que os produtores estão interessados em preços maiores do que os preços máximos do leilão, e que esperam conseguir tais preços no mercado. Comentarei sobre isso no próximo artigo dessa série.
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