quarta-feira, junho 06, 2007

Sobre a palestra de Eduardo Lütz: “Ciência, Fé, Evolucionismo e Criacionismo”

No último 1 de junho, o professor Eduardo Lütz esteve na UTFPR, em companhia de sua esposa Maria da Graça, a convite do sindicato dos professores, para proferir a palestra “Ciência, Fé, Evolucionismo e Criacionismo”.

Eduardo Lütz [1] é bacharel, mestre e doutor em física pela UFRGS, embora insista em deixar claro que ainda não defendeu sua tese de doutorado e, portanto, não pode envergar oficialmente este último título. Em física, as áreas de interesse dele são relatividade geral, teoria quântica dos campos, cosmologia e física nuclear. Em matemática, ele se interessa por geometria diferencial, geometrias riemannianas, álgebras e fundamentos. Atualmente, trabalha para a Hewlett-Packard em desenvolvimento de software.

Em uma palestra que durou pouco mais de uma hora, complementada por cerca de meia hora de palestra de Maria da Graça sobre “O Mundo do RNA e o Sonho do Biólogo Molecular”, Eduardo Lütz falou basicamente sobre filosofia da ciência, método cientifico, mitos sobre a matemática e teceu algumas considerações sobre o debate entre criacionismo e evolucionismo. Seguem-se alguns comentários sobre o evento.

Teorias Científicas e Modelos Matemáticos
A tese de Lütz é a de que uma teoria, para ser científica, deve ser dotada de uma estrutura algébrica. Em outras palavras, para ele uma teoria científica deve ser axiomatizável, assunto ligado aos trabalhos do matemático alemão David Hilbert (1862 – 1943).

Em 1900, Hilbert proferiu uma palestra histórica, na qual descreveu 23 problemas dos quais, segundo ele, os matemáticos do século XX iriam se ocupar. O sexto problema de Hilbert, em particular, é justamente o problema da axiomatização das teorias das ciências empíricas: “tratar do mesmo modo, por meio de axiomas, as ciências físicas nas quais a matemática tem importante papel: em primeiro lugar estão a teoria das probabilidades e a mecânica”.

As considerações de Hilbert motivaram o tratamento rigoroso das teorias físicas, do ponto de vista axiomático, a exemplo do que já se fazia e se faz corriqueiramente em matemática. Segundo SANT’ANNA, que escreveu um livro interessante e acessível sobre axiomas, “hoje já temos sistemas axiomáticos para as teorias da física, da biologia, da economia a até mesmo para as geociências” [2].

O tratamento matemático da biologia, contudo, traz problemas inerentes ao próprio objeto de estudo: a complexidade dos seres vivos. A física, a mais bem sucedida das ciências empíricas, não adquiriu esse status apenas por causa da genialidade de seus criadores, mas por estudar sistemas simples em comparação aos sistemas vivos. Exigir um modelo matemático detalhado da teoria da evolução significaria exigir o conhecimento do genoma de todas as espécies que vivem e já viveram, além de se saber como tais espécies se relacionam e se relacionavam, etc. Perto de tal tarefa, até mesmo a versão mais refinada da teoria das supercordas se torna trivial.

Todavia, pode-se obter resultados matemáticos interessantes quando se reduz o nível de complexidade de um modelo biológico. Um exemplo é representado pelas equações de Lotka-Volterra, também conhecidas como “modelo predador-presa”, que são duas equações diferenciais não lineares usadas para se descrever a dinâmica populacional de um sistema onde duas espécies (um predador e uma presa) interagem [3]. Essas equações têm sido estudadas em uma variedade de situações desde os anos 20, quando foram propostas independentemente por Alfred Lotka (1880 – 1949) e Vito Volterra (1860 – 1940). O modelo resultante pode ser estendido para incluir mutações, número de predadores e presas superior a um e pode exibir comportamento caótico, dependendo de alguns parâmetros.

Outro exemplo de “matematização” da teoria da evolução envolve a teoria dos jogos. Esse campo de estudo teve origem em 1973, com a publicação do artigo “The logic of animal conflict”, de John Maynard Smith (1920 – 2004) e George R. Price (1922 – 1975). Em 1982, Smith publicou o livro “Evolution and the theory of games”, onde o conceito de Estratégia Evolucionariamente Estável (ESS – Evolutionarily Stable Strategy) foi formalizado. A ESS é um refinamento do equilíbrio de Nash, onde se supõe que a única força em jogo é a seleção natural (no equilíbrio de Nash o comportamento racional pode entrar em ação).

Sendo assim, esforços para tratar matematicamente a teoria da evolução existem há muito tempo e não é totalmente correto dizer que tal teoria não tem estrutura algébrica. Talvez ela não tenha estrutura algébrica “formal”, mas exigir isso de uma teoria biológica significaria supor a biologia redutível à física e, finalmente, à matemática. Só que nenhuma área da ciência é científica da maneira como a física é científica!

Apesar disso, uma teoria que tenha estrutura algébrica formal não é necessariamente uma teoria correta. Exemplo disso ocorre com as teorias da gravitação. Em 1915, Albert Einstein criou a primeira teoria geométrica da gravitação, que considera o campo gravitacional como uma curvatura do espaço-tempo causada pela presença de matéria. Essa teoria, denominada relatividade geral, permite o cálculo correto da deflexão da luz por corpos pesados como o Sol, dá uma estimativa mais precisa para a precessão da órbita do planeta Mercúrio e prevê outros fenômenos gravitacionais de interesse aos especialistas, como o desvio gravitacional para o vermelho e o atraso do tempo em campos gravitacionais fortes, além de ser compatível com a gravitação newtoniana no limite de campos fracos. Tais assuntos já foram objeto de vários artigos e livros de divulgação científica, mas, fora do círculo dos especialistas, é pouco conhecido que existem dezenas de teorias gravitacionais alternativas à relatividade geral. Nada deixa esse fato mais claro do que o formalismo conhecido como PPN (Parametrized post-Newtonian), usado para comparar teorias clássicas da gravitação (ou seja, teorias “não quânticas”, como é o caso da relatividade geral). Existem mais de 20 teorias da gravitação que tiveram seus parâmetros PPN calculados (o número já foi maior, mas algumas teorias são descartadas de tempos em tempos). Todas são teorias matemáticas sérias e a própria existência dos parâmetros PPN mostra um elevado grau de formalismo matemático. Mesmo assim, apenas a relatividade geral passa em todos os testes experimentais [4].

Conclui-se, portanto, que o requisito de um modelo matemático pode ser visto até mesmo como necessário para que uma teoria seja científica, mas não se trata de um requisito suficiente.

Outro ponto interessante sobre modelos matemáticos é que ninguém sabe ao certo por que a matemática se aplica mesmo às teorias físicas mais elementares. A esse respeito, é difícil resistir à tentação de afirmar que a matemática é algo mais do que uma criação humana. O físico Roger Penrose, por exemplo, afirma categoricamente que “A noção de verdade matemática vai além do conceito de formalismo. Há alguma coisa de absoluto e “divino” na verdade matemática” [5]. Essa é uma visão platônica da matemática, termo usado porque o filósofo Platão acreditava que os conceitos matemáticos tinham uma existência etérea e atemporal, como se criados por Deus. Há, contudo, outras visões da matemática. Para o intuicionismo, surgido com os trabalhos do matemático holandês Luitzen Egbertus Jan Brouwer (1881– 1965), um conceito matemático não têm existência em si mesmo e deve ser pensado em termos das regras que determinam sua existência e comportamento. Essa visão pode ser rapidamente aceita por alguém que usa a matemática como instrumento, como um engenheiro ou um físico, mas tem causado muita discussão entre os matemáticos desde os tempos de Aristóteles, discípulo de Platão e a quem a visão intuicionista remonta. O intuicionismo, assim como outras escolas construtivistas, afirma que a matemática é uma invenção da mente humana, em oposição à visão platônica.

Se a matemática é uma invenção humana, podemos muito bem aventar a hipótese de que a matemática se aplica tão bem à física simplesmente porque os conceitos matemáticos foram inventados para que se aplicassem muito bem à física. O estranho é que ninguém poderia supor, como nos lembra o físico Eugene Wigner [6] (1902 – 1995), que os números complexos, inventados pelos matemáticos em bases puramente teóricas, fossem encontrar aplicação na mecânica quântica (e, em um nível bem menos essencial, na teoria de circuitos de corrente alternada e outras áreas da física). Há vários de tais exemplos, que nos dão a impressão de que a matemática foi criada por Deus, e que os números complexos habitavam o mundo das idéias desde o início dos tempos, esperando calmamente pela hora de entrar em cena. Entretanto, para cada invenção matemática que encontra aplicação em física, outras tantas não alcançam tal destino e passam a eternidade nas páginas dos livros de matemática pura.

Cientistas criacionistas
Em sua palestra, Eduardo Lütz citou quatro cientistas criacionistas, segundo ele: Newton, Maxwell, Hamilton e Einstein. A lista é na verdade muito maior, incluindo cientistas como Kepler, Pascal, Leibnitz, Davy, Faraday, Ramsay e outros. Contudo, é difícil incluir Einstein nessa lista. Em suas “Notas Autobiográficas”, esse cientista escreveu: “A leitura de livros científicos populares convenceu-me de que a maioria das histórias da Bíblia não podia ser real. A conseqüência foi uma orgia positivamente fanática de livre-pensamento, combinada com a impressão de que a juventude é decididamente enganada pelo Estado, com mentiras; foi uma descoberta esmagadora” [7].

Mesmo assim, especulações sobre a posição religiosa de Einstein sempre existiram. Ele mesmo parece ter aumentado a confusão, ao escrever: “Não consigo conceber um Deus pessoal que influa diretamente sobre as ações dos indivíduos, ou que julgue, diretamente, criaturas por Ele criadas. Não posso fazer isso, apesar do fato de que a causalidade mecanicista foi, até certo ponto, posta em dúvida pela ciência moderna” [8]. A julgar por essas palavras, não fica claro se ele não acreditava em um criador, ou se apenas acreditava em um criador que não julgava suas criaturas. Apesar disso, o consenso é que Einstein definitivamente não acreditava em um Deus judaico-cristão. Em vez disso, ele era muito mais um panteísta que acreditava em um deus presente na natureza e representado nela, mas não em um deus antropomórfico. De fato, em mais de uma vez ele se revelou favorável ao “Deus de Spinoza”, filósofo do século XVII, excomungado da comunidade judaica por suas crenças não convencionais.

Apesar de tudo isso, e como já insisti em outras ocasiões nesse blog, a crença de Einstein ou de quem quer que seja não é importante na tarefa de determinarmos a validade de uma afirmação. Ao lado de cientistas criacionistas, podemos listar um número enorme de cientistas ateus, agnósticos, não religiosos ou simplesmente não criacionistas, tais como Richard Feynman, Carl Sagan, Stephen Hawking, Newton da Costa, Marcelo Gleiser, Richard Dawkins e vários outros. A conclusão, como já sabemos, é que o número de adeptos não serve para validar crenças, afirmações ou teorias científicas.

No debate que se seguiu à palestra, Eduardo Lütz argumentou que entendia por “criacionista” apenas uma pessoa que acredita em Deus ou em uma força superior. Tal definição é claramente insuficiente, pois inclui na categoria de criacionistas todas aquelas pessoas que acreditam em um Deus não criador, como é o caso dos panteístas. Afinal, quem garante que Deus, caso exista, não surgiu juntamente com o universo?

Hamilton, Princípio Variacional e Criacionismo
Outro ponto realçado no debate diz respeito às contribuições dos criacionistas à ciência. Lütz citou o princípio variacional de Hamilton como exemplo.

William Rowan Hamilton (1805 – 1865) foi um matemático, físico e astrônomo irlandês que fez grandes contribuições à matemática à física. As equações de Hamilton, por exemplo, são de grande importância em física e o nome de Hamilton estará para sempre ligado à mecânica clássica e à mecânica quântica. Em 1834 e 1835, Hamilton publicou seus resultados da aplicação de um princípio variacional à equação L = T – V, onde T é a energia cinética e V é a energia potencial de um sistema, possibilitando a obtenção das equações do movimento. A função L é modernamente denominada “lagrangeano”, em homenagem ao matemático italiano Joseph-Louis Lagrange (1736 – 1813), criador do cálculo variacional.

Um princípio variacional serve para identificar quando uma função atinge um ponto extremo, que pode ser um máximo, um mínimo ou um ponto de sela. O princípio variacional de Hamilton, em particular, diz que o movimento de um sistema, de um instante t1 a um instante t2, é tal que a integral de linha de L entre esses instantes é estacionária para o caminho que corresponde ao movimento real”. Por “estacionária” entende-se que o valor da integral não varia para caminhos próximos ao caminho real. Um “sistema mecânico” pode ser uma partícula material, um conjunto de partículas ou corpos mais complexos, conhecidos como “corpos rígidos”.

Assim, dentre todas as possíveis trajetórias que o sistema mecânico pode seguir, a trajetória real corresponde precisamente ao caminho para o qual a integral de L.dt é estacionária. Todas as equações do movimento (i.e., as leis de Newton) decorrem desse princípio simples, que pode ser escrito como dI = 0, onde I é a integral de L.dt, frequentemente denominada “ação” (o símbolo usado pelo professor Lütz para a ação foi, se não me engano, l, mas uso aqui a simbologia clássica de Goldstein [9]). Qualquer estudante de mecânica já ficou fascinado, no mínimo intrigado, por esse aspecto de elegante simplicidade do princípio de Hamilton, também conhecido como princípio da ação mínima. É realmente fascinante que toda a mecânica clássica possa surgir de uma equação tão simples. Contudo, dizer que o princípio de Hamilton é uma “descoberta criacionista” é um pouco exagerado.

Em primeiro lugar, é um tanto arriscado dizer que o princípio de Hamilton é um sinal de comportamento ótimo do universo. Falamos em “otimização” em várias situações na engenharia. Por exemplo, é impossível construir uma máquina elétrica (ou qualquer outra máquina) sem que esta apresente perdas, mas podemos minimizar tais perdas, levando em conta alguns detalhes do funcionamento e o custo final desejado. Por um lado, poderíamos super-dimensionar uma máquina, de maneira que as perdas fossem desprezíveis frente à potencia nominal. Entretanto, essa máquina seria tão cara que ninguém a compraria. De outro lado, poderíamos projetar uma máquina de maneira mais displicente, que custaria muito menos do que as versões disponíveis no mercado. Contudo, todo o dinheiro economizado na aquisição seria gasto posteriormente em energia elétrica, por causa das perdas elevadas. Assim, ao menos nesse caso, “a virtude está no meio” e é possível construir uma máquina que, do ponto de vista da tecnologia atual, não seja nem muito cara e nem tenha perdas excessivas: uma máquina ótima.

O mesmo não ocorre no caso do universo, pois não podemos fazer experiências com universos diferentes. Assim, não sabemos se o princípio de Hamilton é um princípio de otimização empregado pelo Criador ou se é apenas uma característica do universo. No momento não há resposta para essa questão, pois a ciência atual apenas descreve o funcionamento do universo, não o explica. A resposta deve ser buscada na filosofia ou na religião e, nessas áreas, não há como ter certeza das respostas.

A segunda razão pela qual não me parece adequado denominar o princípio de Hamilton de “descoberta criacionista” é que o criacionismo é uma invenção bastante recente. Embora os cientistas e filósofos da época de Hamilton fossem todos religiosos, o criacionismo somente surgiu quando as observações empíricas das ciências naturais começaram a entrar em conflito com a tradição judaico-cristã. O próprio termo “criacionismo” não era comum antes do final do século XIX. Alem disso, não me parece adequado argumentar que a descoberta (ou “invenção”?) do princípio variacional esteja necessariamente ligada à religiosidade de Hamilton. Talvez fosse igualmente adequado denominá-la “descoberta irlandesa”.

Teoria da Evolução e Evolucionismo
Durante toda a palestra e durante a discussão que se seguiu, a palavra “evolucionismo” foi usada extensivamente como sinônimo de uma teoria que explica o surgimento da vida na Terra. Há dois erros aqui. Primeiro, a teoria da evolução não é um “ismo”. Não se trata de uma ideologia à qual se adere por meio da fé ou de algum tipo de conversão. Até mesmos alguns biólogos usam tal termo, talvez por economia de linguagem, mas ele não é adequado. Não existe “evolucionismo” da mesma forma que não existe “newtonismo”, “einsteinismo” ou “relativismo”. O segundo erro é que a teoria da evolução não tem nada a dizer sobre a origem da vida na Terra.

Embora esse segundo erro seja comum, a evolução biológica é apenas a mudança dos traços hereditários de uma população de uma geração para outra, produzida por mutações genéticas e orientada pela seleção natural. A evolução biológica é um fato. Há tantas evidências a esse respeito que negá-lo seria o mesmo que negar que as maçãs caem quando soltas a um metro do chão. A evolução histórica dos seres vivos, que decorre da evolução biológica, significa que todos os seres vivos sobre a Terra descendem de um ancestral comum. Embora tal afirmação ofenda a religião de muitas pessoas, que por alguma razão ficam indignadas ao saber que homens, chimpanzés e gorilas descendem de um mesmo ancestral, também há tantas evidências a esse respeito que a evolução histórica é considerada um fato. Não há nem mesmo explicação científica alternativa, da mesma forma que não há explicação alternativa para o fato de uma maçã cair (é a gravidade, e ponto; se iremos usar a mecânica newtoniana, a relatividade geral ou outra teoria para fazer os cálculos, é outra história!).

Entretanto, dizer algo sobre a evolução biológica (que se manifesta no decorrer de poucas gerações de moscas da fruta, por exemplo), ou sobre a evolução histórica (que se manifesta ao longo de milhões de anos) não significa dizer como a vida surgiu na Terra.

Eu citei tal diferença durante a seção de perguntas após a palestra. O professor Lütz então concordou que o termo “evolucionismo” havia sido mal empregado, mas, pelas razões comentadas anteriormente, discordou que a evolução fosse realmente uma teoria científica: a ausência de uma estrutura algébrica formal.

Geração Espontânea, Abiogênese e a Navalha de Occam
Da mesma forma que ocorreu com o termo “evolucionismo”, o termo “geração espontânea” foi empregado durante a palestra com o significado de “surgimento da vida a partir de matéria inanimada”. É fácil atacar a geração espontânea, pois qualquer aluno do ensino médio sabe que tal teoria foi desmentida por Louis Pasteur (1822 – 1895) por meio de uma série de experimentos realizados em 1862 (três anos depois da publicação do livro “A origem das espécies por meio da seleção natural”, de Charles Darwin - note também que o próprio título do livro de Darwin menciona “origem das espécies”, não “origem da vida”). Contudo, a hipótese da origem não biológica da vida não significa que tal origem tenha sido “espontânea”. É mais correto falar em “abiogênese” (do grego a-bio-genesis, ou “origem não biológica”).

No momento, não podemos dizer com certeza que a vida surgiu na Terra há pouco menos de 4 bilhões de anos, no meio de uma sopa ou barro pré-biótico, como resultado de reações químicas entre macromoléculas orgânicas. Trata-se apenas da hipótese mais provável, mas ainda não há provas suficientes. O que podemos dizer com certeza é que, se tal processo ocorreu, ele não teve nada de espontâneo. Ele ocorreu por causa da afinidade química entre certas moléculas, decorrente das leis físicas que governam o comportamento microscópico da matéria, e também da presença de fontes de energia na Terra primitiva (descargas atmosféricas e o calor do Sol), bem como de uma versão primordial da seleção natural: as moléculas orgânicas que não sucumbiram à degeneração espontânea após a formação tiveram mais tempo para se reproduzir e aumentar a população.

Outra hipótese para a origem da vida na Terra é a panspermia: a hipótese de que a vida foi trazida de outros lugares no universo, por meio de asteróides que aqui caíram ou sob a forma de esporos interestelares. O argumento mais óbvio contra a panspermia é o de que tal hipótese apenas transforma a tarefa de se explicar a origem da vida na Terra na tarefa muito mais complexa de se explicar a origem da vida em outro lugar do universo.

Finalmente, temos a hipótese do criacionismo: a vida na Terra surgiu por obra de um criador ou planejador inteligente. Na versão mais forte da hipótese criacionista, Deus cria e mantém toda a vida na Terra, sem se importar com seleção natural, mutações ou extinção de espécies. Na versão mais fraca, Deus apenas cria as primeiras bactérias e deixa o resto por conta das leis da física (criadas também por ele, presumivelmente). Podemos imaginar também uma “versão fraquíssima”, onde Deus interfere somente o bastante para assegurar que as primeiras moléculas de RNA, formadas por abiogênese, sobrevivam o tempo suficiente para dar origem ao mundo de DNA e proteínas atual. Nenhuma dessas três versões, contudo, é muito bem aceita pela comunidade científica, por duas singelas razões: (a) é difícil imaginar hipótese mais simples do que a da abiogênese; (b) a hipótese da existência de um ser dotado de super-poderes é complicada demais.

Em ciência, quando tudo o mais está confuso, é costume usar-se um princípio de seleção de hipóteses conhecido como “navalha de Occam”. Não se trata de um princípio científico, mas sim filosófico e, embora seja comum no meio científico, foi criado pelo monge franciscano Guilherme de Occam (1288 – 1348) com a finalidade de explicar a existência de Deus. A navalha de Occam nos diz que, quando duas ou mais teorias concorrem, devemos escolher aquela que considera o menor número de hipóteses. Por tal razão, esse princípio é frequentemente conhecido como “princípio da economia de hipóteses”.

Como ocorre com toda navalha, a de Occam deve ser usada com bastante cuidado, pois, tratando-se de um princípio estético, boa parte do critério depende dos preconceitos do selecionador e de conceitos subjetivos. No caso do problema da origem da vida, a navalha de Occam nos diz que a hipótese da abiogênese é mais simples do que a hipótese da origem divina, pois contém menos pressupostos básicos e pode ser comprovada empiricamente, ao menos em princípio. Logo, devemos exaurir a hipótese da abiogênese antes de recorrermos ao salto de fé necessário à hipótese divina. Tal conclusão certamente teria surpreendido o próprio Occam, mas não é de hoje que sabemos que as criaturas frequentemente se voltam contra seus criadores.

Considerações finais sobre a palestra e o debate
Não tenho certeza se muita gente entendeu a palestra do professor Lütz em toda sua extensão. Durante quase toda a exposição ele falou sobre física e matemática, não sobre criação e evolução. Na tela apareceram expressões matemáticas como o princípio de Hamilton e a equação de Dirac, as quais estão muito além do domínio dos alunos normais dos cursos de Tecnologia e Engenharia que compunham a platéia. Além disso, somente com muita dificuldade tais conceitos podem ser relacionados aos problemas da origem da vida ou da evolução das espécies.

A exposição da professora Maria da Graça, interessante por si mesma, serviu apenas como pretexto para o argumento da improbabilidade do surgimento abiótico da vida (infelizmente referido como “geração espontânea”).

O debate que se seguiu às palestras deixou claro que o público que lotava o mini-auditório da UTFPR estava mais interessado nos aspectos religiosos do tema. É de certa forma decepcionante ver uma exposição razoavelmente científica ser seguida de referências a Hebreus, Salmos e, obviamente, Gênesis. Apesar disso, o professor Lütz manteve os pés no chão em relação a muitos assuntos. Ele não cometeu os erros tradicionais dos criacionistas sobre as leis da termodinâmica e afirmou que a hipótese da “Terra jovem” é uma bobagem sem fundamento científico. Ele também entende que a evolução por seleção natural realmente ocorre e tem argumentos apenas contra a hipótese da abiogênese. Ainda assim, não considero que a insistência dele em descaracterizar a teoria da evolução como teoria científica, com base na ausência de estrutura algébrica da mesma, seja realmente relevante. Também me preocupa o já mencionado descuido terminológico, que coloca teoria da evolução, abiogênese e geração espontânea no mesmo pacote. Talvez fosse interessante alguém organizar uma palestra com o objetivo de esclarecer tais conceitos.

[1] Eduardo Lütz Page. Disponível em: <http://edlutz.totalh.com/>.
[2] SANT’ANNA, A. O que é um axioma. Manole, 2003, p. 10.
[3] WEISSTEIN, E. W. "Lotka-Volterra Equations." From MathWorld--A Wolfram Web Resource. Disponível em: <http://mathworld.wolfram.com/Lotka-VolterraEquations.html>.
[4] WILL, C.M. The confrontation between general relativity and experiment. Living Rev. Relativity, 2006, v.6. Disponível em: <http://relativity.livingreviews.org/Articles/lrr-2006-3>. [5] PENROSE, R. A mente nova do rei. Ed. Campus, 1991, p. 124.
[6] WIGNER, E. The unreasonable effectiveness of mathematics in the natural sciences. 1960. Disponível em: < http://www.dartmouth.edu/~matc/MathDrama/reading/Wigner.html>
[7] EINSTEIN, A. Notas autobiográficas. Nova Fronteira, 3ed, 1982, p.14.
[8] DUKAS, H., HOFFMANN, B. (org). Albert Einstein, o lado humano. Ed. Universidade de Brasília, 1979, p. 53.
[9] GOLDSTEIN, H. Classical Mechanics. Addison-Wesley, 2ed, 1981, p. 36.

10 comentários:

  1. Bom texto.

    Na física aristotélica, e por conseguinte na cosmologia ptolomaica, as maçãs caem porque a terra (e não o ar, a água ou o fogo) é o seu "lugar natural". Algumas centenas de séculos a.C., esta parecia com efeito uma boa explicação (não falemos ainda em explicação científica, Galileu ainda nem sonhava em nascer...), e de fato ela explicava de maneira bastante econômica uma diversidade de dados empíricos facilmente coletáveis. Estávamos, obviamente, bem antes de uma época em que podemos dizer que *a* explicação "sem alternativas" para o fato de uma maçã cair "é a gravidade, e ponto".

    Os criacionistas frequentemente parecem sofrer justamente de uma fixação obsessiva pré-teoria da evolução, em uma época em que ainda havia alternativas (científicas?) convincentes para a origem das espécies. Seria mais ou menos como insistir hoje em dia em buscar explicações para os fenômenos naturais usando a física aristotélica, raciocinar usando exclusivamente a lógica aristotélica, usar como modelo do universo a cosmologia ptolomaica, ou mesmo usar em biologia a taxonomia primitiva proposta por Aristóteles.

    Uma aberração.

    PS:
    A propósito, consta que a maior parte da obra de Aristóteles (parte esta hoje praticamente esquecida, e inteiramente superada) tratava justamente de biologia, e seria ele o pai da teoria da abiogênese.

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  2. eu também gostei muito do seu texto, alvaro. somente tenho um comentário. vc diz:
    "Embora tal afirmação ofenda a religião de muitas pessoas, que por alguma razão ficam indignadas ao saber que homens, chimpanzés e gorilas descendem de um mesmo ancestral, também há tantas evidências a esse respeito que a evolução histórica é considerada um fato. Não há nem mesmo explicação científica alternativa, da mesma forma que não há explicação alternativa para o fato de uma maçã cair (é a gravidade, e ponto; se iremos usar a mecânica newtoniana, a relatividade geral ou outra teoria para fazer os cálculos, é outra história!)".
    eu acho que uma explicacao alternativa interessante sao justamente as developmental theories das que eu já falei em algumas mensagens. a idéia nas teorias do desenvolvimento é que nao há uma evolucao das espécies. as espécies surgem intempestivamente (nao sei se existe essa palavra em portugues) a causa de mudanzas nas condicoes no nível molecular e restringidos pelo que eles chamam de constraints. vários tipos de 'constraints' sao considerados, desse os físicos, filogenéticos até constraints geométricos. estes ultimos sao muito interessantes porque monstram como há differencas entre grupos de seres vivos que ainda assim conservam uma espécie de semelhanza estrutural. a nocao de estrutura é muito importante para eles, por cima da nocao de funcao do seleccionismo. um constraint que é muito importante e que é científicamente comprovado é a presenca de genes hox nos seres vivos que nao lembro bem mas acho que determinam a posicao dos olhos no corpo.
    aqui va uma pequena bibliografia sobre o assunto:
    Alberch, P., (1982) “Developmental Constraints in Evolutionary Processes” en J. T. Bonner (Ed) Evolution and Development (Dahlem Workshop Reports 1981) Springer Verlag. Berlín.
    Asma, S., Following Form and Function, Northwestern UP, 1996
    Editores, Barcelona, 1998
    Goodwin, B., (1984) “Changing from an Evolutionary to a Generative Paradigm in Biology”, en Evolutionary Theory: Paths into the future. J. W. Pollard (Ed), Wiley and Sons, EB, 1984
    Goodwin, B., (1994) Las manchas del Leopardo: La Evolución de la Complejidad, Tusquets Editores, Barcelona, 1998
    Gould y Lewontin, (1979) “The Spandrels of San Marcos and the Panglossian Paradigm”, en Proceedings of the Royal Society of London, 205
    Raff, R., (1996) The Shape of Life, Chicago UP
    Ruse, M., (2005) Is Evo-Devo a New Paradigm? en Readings of Philosophy of Biology, A. O. Mear (Ed), OUP, 2004
    Thompson, D., (1942) On Grouth and Form. Cambridge UP.
    abraco,
    susana

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  3. Anônimo3:39 PM

    As considerações sobre a nossa palestra estão muito boas, em geral, e quero parabenizar o professor Alvaro Augusto pelas suas ponderações. Quero fazer algumas observações sobre alguns pontos. Abaixo, destaco alguns parágrafos e coloco meu esclarecimento depois de cada um deles.

    Durante toda a palestra e durante a discussão que se seguiu, a palavra 'evolucionismo' foi usada extensivamente como sinônimo de uma teoria que explica o surgimento da vida na Terra. Há dois erros aqui. Primeiro, a teoria da evolução não é um 'ismo'. Não se trata de uma ideologia à qual se adere por meio da fé ou de algum tipo de conversão. Até mesmos alguns biólogos usam tal termo, talvez por economia de linguagem, mas ele não é adequado. Não existe 'evolucionismo' da mesma forma que não existe 'newtonismo', 'einsteinismo' ou 'relativismo'. O segundo erro é que a teoria da evolução não tem nada a dizer sobre a origem da vida na Terra.

    Esclarecimento: ok, se não existe evolucionismo eu gostaria de que algum termo curto apropriado fosse sugerido, porque não é viável, por exemplo, utilizar algo do tipo: "as proposições evolutivas para a origem e desenvolvimento de moléculas biológicas e seres vivos na Terra" e é preciso diferenciar estas proposições de outras, como as criacionistas, por exemplo. É imperativo que este termo seja curto, por óbvias razões. E, a propósito, "evolucionismo" ou outro termo apropriado sugerido não se aplica exclusivamente à teoria da evolução, baseada em mutações e seleção natural, mas a propostas evolutivas em geral, incluindo a evolução química. Não sei se ficou claro,
    a questão é: tem de haver um termo curto que se aplique às diversas propostas evolutivas. Normalmente, durante o curso de Biologia, encontramos o tema "origem da vida" nos mesmos livros em que estudamos evolução, não há como dizer que evolução química não é evolução, pode-se até dizer que não faz parte da teoria da evolução atual que teve origem com Darwin e tem sido retocada desde então.

    A evolução histórica dos seres vivos, que decorre da evolução biológica, significa que todos os seres vivos sobre a Terra descendem de um ancestral comum. Embora tal afirmação ofenda a religião de muitas pessoas, que por alguma razão ficam indignadas ao saber que homens, chimpanzés e gorilas descendem de um mesmo ancestral, também há tantas evidências a esse respeito que a evolução histórica é considerada um fato.

    Sugestão: Aqui eu gostaria de pedir que fossem, então, expostos os fatos (note-se que "fatos" não é sinônimo de "evidências") de que todos os seres vivos descendem de um ancestral comum, já que eu estudo o assunto há mais de vinte anos e gostaria de ter encontrado um. Um estudo interessante, seria o do exame das evidências para um ancestral comum. Quando estudei Filogenia na faculdade, a questão de ancestralidade se prestava a inúmeras hipóteses divergentes.

    Da mesma forma que ocorreu com o termo 'evolucionismo', o termo 'geração espontânea' foi empregado durante a palestra com o significado de 'surgimento da vida a partir de matéria inanimada'. É fácil atacar a geração espontânea, pois qualquer aluno do ensino médio sabe que tal teoria foi desmentida por Louis Pasteur (1822 – 1895) por meio de uma série de experimentos realizados em 1862 (três anos depois da publicação do livro 'A origem das espécies por meio da seleção natural', de Charles Darwin - note também que o próprio título do livro de Darwin menciona 'origem das espécies, não 'origem da vida'). Contudo, a hipótese da origem não biológica da vida não significa que tal origem tenha sido 'espontânea'. É mais correto falar em 'abiogênese' (do grego a-bio-genesis, ou 'origem não biológica').

    Esclarecimento: Na verdade, o termo "abiogênese" é, em vários textos, utilizado como um tipo de geração espontânea e vice-versa. O próprio Orgel utiliza a palavra "espontânea" para interações entre móleculas que deram origem ao ancestral comum: "For much of the 20th century, origin-of-life research has aimed to flesh out Darwin's private hypothesis - to elucidate how, without supernatural intervention, spontaneous interaction of the relatively simple molecules dissolved in the lakes or oceans of the prebiotic world could have yielded life's last common ancestor." (Leslie E. Orgel. Origin of life on Earth. http://www.geocities.com/capecanaveral/lab/2948/orgel.html.)
    Traduzindo: "Por grande parte do século 20, a pesquisa sobre a origem da vida tem objetivado dar forma a hipóstese privada [não pública] de Darwin - elucidar como, sem intervenção sobrenatural, a interação espontânea de moléculas relativamente simples dissolvidas nos lagos ou oceanos do mundo prebiótico podem ter produzido o último ancestral comum da vida." Embora eu não tivesse, em minha palestra, utilizado o termo "geração espontânea" no contexto de minha apresentação sobre as pesquisas com RNA, eu o utilizei no resumo histórico de teorias sobre a origem da vida e em minhas conclusões, quando disse que as pesquisas sobre um mundo de RNA ou um outro polímero anterior eram uma persistência da teoria da geração espontânea (no sentido da não intervenção sobrenatural e da interação natural entre as moléculas.) Além de Orgel, outros pesquisadores parecem concordar que a evolução química é uma modificação ou revisão da geração espontânea. Exemplo: "Por outro lado, o desenvolvimento científico e tecnológico, ocorrido principalmente na geologia e na astronomia, que passou a estudar a composição química das estrelas pela espectroscopia, desencadeou discussões na comunidade científica, sobre a idade da Terra e do Sistema Solar e como estes foram formados. Portanto, a combinação dos fatos de que a Terra era muito antiga e que uma competição entre moléculas (darwinismo molecular) poderia ter ocorrido até o surgimento do primeiro ser vivo levou muitos cientistas a começar a pensar que em princípio os experimentos de Pasteur não excluíam a possibilidade da geração de organismos vivos a partir de matéria inanimada, porém era óbvio que isto não poderia ocorrer num tempo tão curto, como defendiam os adeptos da geração espontânea. Darwin foi o primeiro a escrever uma proposta que a vida poderia ter surgido da matéria inanimada, através do aumento da complexidade das substâncias formadas através de reações químicas. Porém, não despendeu tempo desenvolvendo tais idéias ou mesmo divulgando-as. O bioquímico russo A. I. Oparin, em 1924, foi o primeiro a desenvolver e divulgar que a vida poderia ter surgido em nosso planeta a partir de matéria inanimada, utilizando-se de um esquema semelhante ao de Darwin, porém muito mais elaborado." (Dimas A. M. Zaia, "From spontaneous generation to prebiotic chemistry", Química Nova, 2003, vol. 26, n. 1.) Eu poderia citar muitos outros exemplos, mas seria interessante, para quem deseja saber mais, fazer uma pesquisa particular sobre o uso das expressões "abiogênese" e "geração espontânea". De qualquer forma, a expressão "geração espontânea" não era essencial a minha apresentação e poderia tranqüilamente ser retirada sem modificar praticamente nada do que foi dito.

    No momento, não podemos dizer com certeza que a vida surgiu na Terra há pouco menos de 4 bilhões de anos, no meio de uma sopa ou barro pré-biótico, como resultado de reações químicas entre macromoléculas orgânicas. Trata-se apenas da hipótese mais provável, mas ainda não há provas suficientes. O que podemos dizer com certeza é que, se tal processo ocorreu, ele não teve nada de espontâneo. Ele ocorreu por causa da afinidade química entre certas moléculas, decorrente das leis físicas que governam o comportamento microscópico da matéria, e também da presença de fontes de energia na Terra primitiva (descargas atmosféricas e o calor do Sol), bem como de uma versão primordial da seleção natural: as moléculas orgânicas que não sucumbiram à degeneração espontânea após a formação tiveram mais tempo para se reproduzir e aumentar a população.

    Esclarecimento: reiterando, o que Orgel e eu queremos dar a entender com a palavra "espontâneo" é justamente afinidade química entre certas moléculas, decorrente das leis físicas que governam o comportamento microscópico da matéria, ou seja, o surgimento da vida a partir de leis naturais e não por intervenção divina. Desculpe-me por não ter incluído o resto da frase e também da presença de fontes de energia na Terra primitiva (descargas atmosféricas e o calor do Sol), bem como de uma versão primordial da seleção natural: as moléculas orgânicas que não sucumbiram à degeneração espontânea após a formação tiveram mais tempo para se reproduzir e aumentar a população. O problema é que as fontes de energia provavelmente não seriam descargas atmosféricas e nem o calor do Sol porque as descargas destruiriam os compostos que ajudaram a criar e o calor seria fornecido por alguma fonte vulcânica nas profundezas do mar (como mencionei em minha palestra). Outro problema, que também mencionei em minha palestra, é que não se conseguiu justamente montar moléculas de RNA e nem qualquer outro polímero mais simples através de experimentos prebióticos plausíveis para que eles pudessem sobreviver, se reproduzir e aumentar a população. Este, na verdade, foi o tema da minha palestra. Infelizmente todos os detalhes interessantes do assunto, com a descrição dos diversos experimentos e sua complexidade, teve de ser reduzido a um mero relatório super simplificado de alguns resultados superficiais. O interessante seria as pessoas irem direto às fontes das pesquisas utilizando a bibliografia que recomendei no início da palestra. Contudo, compreendo que não é fácil entender este assunto, já que ele está em uma área de fronteira entre a Biologia e a Química e, mesmo bioquímicos e biólogos moleculares podem encontrar dificuldades em compreender algumas das explanações. Explicações super simplificadas têm a desvantagem de gerar má compreensão, mas são inevitáveis, já que meu público alvo não se compunha especialmente de bioquímicos e biólogos moleculares.

    Outra hipótese para a origem da vida na Terra é a panspermia: a hipótese de que a vida foi trazida de outros lugares no universo, por meio de asteróides que aqui caíram ou sob a forma de esporos interestelares. O argumento mais óbvio contra a panspermia é o de que tal hipótese apenas transforma a tarefa de se explicar a origem da vida na Terra na tarefa muito mais complexa de se explicar a origem da vida em outro lugar do universo.

    Curiosidade: um detalhe interessante é que o mentor da hipótese panspermia, Arrhenius, acreditava que a vida sempre existiu. Esta hipótese, ao menos em nosso universo, é refutada pela teoria do big-bang, que indica que espaço, tempo e tudo mais tiveram uma origem.

    Finalmente, temos a hipótese do criacionismo: a vida na Terra surgiu por obra de um criador ou planejador inteligente. Na versão mais forte da hipótese criacionista, Deus cria e mantém toda a vida na Terra, sem se importar com seleção natural, mutações ou extinção de espécies. Na versão mais fraca, Deus apenas cria as primeiras bactérias e deixa o resto por conta das leis da física (criadas também por ele, presumivelmente). Podemos imaginar também uma 'versão fraquíssima', onde Deus interfere somente o bastante para assegurar que as primeiras moléculas de RNA, formadas por abiogênese, sobrevivam o tempo suficiente para dar origem ao mundo de DNA e proteínas atual. Nenhuma dessas três versões, contudo, é muito bem aceita pela comunidade científica, por duas singelas razões: (a) é difícil imaginar hipótese mais simples do que a da abiogênese; (b) a hipótese da existência de um ser dotado de super-poderes é complicada demais.

    Esclarecimento: só pra dar uma "ventilada" no tema, existe mais do que estas três hipóteses no criacionismo, se alguém tem interesse, deveria investigar mais.

    A exposição da professora Maria da Graça, interessante por si mesma, serviu apenas como pretexto para o argumento da improbabilidade do surgimento abiótico da vida (infelizmente referido como 'geração espontânea').

    Esclarecimento: na verdade, minha principal conclusão não foi sobre a improbabilidade do surgimento abiótico da vida, mas, em virtude da inexistência de experimentos que apoiem a hipótese de um mundo primitivo de RNA através da evolução química da molécula ou da descrição de um polímero anterior convincente (nas palavras de Orgel), tudo o que os pesquisadorem têm são suas expectativas de encontrar um polímero plausível, ou em outras palavras, eles têm fé não baseada em evidências. O que aliás, não é condenável, todo mundo tem fé em alguma coisa. Por exemplo, uma estudante de Biologia, após a palestra, perguntou se não seria possível acreditar-se que o surgimento da vida ocorreu por algum tipo de mecanismo natural desconhecido não espontâneo que o tornasse mais provável. Concordamos, pois não podemos descartar cientificamente este tipo de crença, nem a de que um outro polímero mais simples do que RNA tenha surgido, nem a de que Deus originou a vida na Terra e, se alguém não concorda, está desafiado a provar o contrário.

    Agradeço ao professor Alvaro a oportunidade de fazer estes esclarecimentos sobre a minha parte da palestra.

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  4. Respondendo primeiro ao João Marcos:

    Primeiramente, obrigado pelos comentários. Confesso que passei batido por Aristóteles nesse texto, embora eu seja grande admirador desse filósofo. O fato de ele ter chegado a várias conclusões erradas a respeito da natureza em nada diminui o caráter do gênio, mas aponta, dentre outras coisas, os preconceitos da época. Ainda assim, seria interessante imaginar como teria sido o mundo, especialmente o mundo medieval, se Demócrito, Aristarco e Anaximandro tivessem prevalecido.

    Quanto ao caráter aristotélico dos criacionistas, concordo plenamente, mas não é só nessa área que a influência de Aristóteles ainda se faz presente.

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  5. Respondendo agora à Susana:

    Obrigado pelos comentários. Não conheço muito sobre a teoria da evolução do desenvolvimento, mas me parece que não existe entre ela e a teoria da evolução clássica uma distância tão grande quanto a existente entre a teoria da gravitação newtoniana e a teoria da "gravitação aristotélica". Aristóteles simplesmente não reconhecia a existência da atração gravitacional e considerava que os fenômenos terrestres eram diferentes dos fenômenos celestes. Newton uniu tudo isso em um único pacote e formulou uma teoria que permitia o cálculo preciso (correções relativistas à parte) do movimento dos corpos celestes. Nenhuma teoria dos gregos antigos era capaz disso.

    Obrigado pelas referências. Vou tentar estudar, ou pelo menos ler, todas as que puder.

    [ ]s

    Alvaro Augusto

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  6. Em relação aos comentários da profa. Graça:
    - fatos q apóiam ancestralidade em comum: os padrões filogenéticos, os padrões de similaridade e diferenças de desenvolvimento dos organismos, a distribuição geográfica, o registro fóssil. É fato q há fósseis com características de aves (penas) e de dinossauros (cauda óssea, dentes e outros). É fato q há fósseis com características de animais terrestres (pernas bem desenvolvidas) e de baleias (estrutura do ouvido). É fato q existem vários desses tipos de fósseis transicionais. É fato q os padrões de similaridade e diferenças genéticas em grande medida coadunam com isso. É fato q os organismos partilham um mesmo código genético - com algumas exceções puntuais.

    Em relação ao mundo de ARN, experimentos com protocolo SELEX têm obtidos seqüências de ARN com atividades catalíticas e por ciclos de mutação e seleção essa atividade catalítica pôde ser aumentada em eficiência e especificidade em muitas ordens de grandeza. Experimentos com seqüências aleatórias de ARN indicam uma probabilidade de uma molécula a cada trilhão com atividade catalítica.

    E.g;:http://www.ncbi.nlm.nih.gov/sites/entrez?cmd=Retrieve&db=PubMed&list_uids=11539575&dopt=Abstract

    []s,

    Roberto Takata

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  7. Respondendo finalmente à profa. Graça:

    Obrigado pelos seus comentários, muito esclarecedores. Seguem algumas observações:

    Sobre o termo "evolucionismo"
    Talvez o termo "evolucionismo" esteja em voga por causa do desgaste do termo "teoria da evolução", atacado pelos criacionistas mais radicais, que dizem que a evolução é "apenas uma teoria". Contudo, a teoria da relatividade também é apenas uma teoria, a mecânica newtoniana é apenas uma teoria, a eletrodinâmica quântica (absurdamente bem sucedida) é apenas uma teoria. Não há problema algum com teorias, pois elas são tudo de que dispomos para entender o mundo. Assim, talvez seja mais adequado usar o termo "teoria da evolução" para indicar os mecanismos que levam à variação do genótipo dos seres vivos, submetidos à seleção natural, e reservar "abiogênese" para a hipótese ainda não comprovada da origem da vida em si. Mas o que me deixou preocupado na palestra foi que, apesar do título, pouco se falou sobre a evolução das espécies em si, provavelmente por falta de tempo. Isso pode ter deixado algumas pessoas com a impressão de que a teoria da evolução tem algo a dizer apenas sobre o surgimento da vida.

    Ancestral comum e fatos
    O fato de que todos os organismos vivos carregam instruções codificadas no DNA me parece uma prova suficientemente forte de que todos os seres têm um ancestral comum. Contudo, esse fato, como ocorre em outras áreas da biologia, pode ser encarado como uma trivialidade, pois o único mundo que conhecemos é o mundo do DNA (vírus à parte). Também cabe lembrar que a palavra "fato" pode ser forte demais quando aplicada à história natural. Se não temos nem muita idéia de quais foram as verdadeiras causas da Revolução Industrial, por exemplo, que aconteceu praticamente ontem na escala geológica e sobre a qual existe farta documentação, o que dizer de eventos que aconteceram há milhões de anos, esparsamente documentados?

    Abiogênese e geração espontânea
    Concordo que o termo “geração espontânea” possa ser usado como sinônimo de abiogênese entre os cientistas. Concordo também que a expressão não era essencial à sua palestra. Contudo, imagino que a audiência da palestra, leiga em sua maioria, dificilmente teve condições de entender a diferença. O interessante mesmo seria se sua palestra pudesse ser repetida, dessa vez com duração mínima de duas horas. Tenho certeza que isso esclareceria todas as dúvidas (as minhas, pelo menos) sem a necessidade de se mergulhar em artigos de biologia molecular.

    Hipóteses criacionistas
    Sim, sem dúvida existem mais de três hipóteses criacionistas. Citei apenas três, a mero título de ilustração.

    Conclusão da sua palestra
    De fato a conclusão da sua palestra foi sobre a inexistência de experimentos que comprovem a hipótese do mundo de RNA pré-biótico. Contudo, logo após a sua palestra, o prof. Lütz argumentou que, se tanto o evolucionismo quanto o criacionismo dependem da fé, então é melhor escolher o criacionismo (não me lembro das palavras exatas). Quanto à fé, ela certamente é necessária, mas há que se separar a fé religiosa da fé científica.

    Obrigado novamente pelos seus comentários e pela visita ao meu blog.

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  8. somente uma coisinha, alvaro. as teorias do desenvolvimento nao sao evolucionistas. justamente por isso eu acho que elas constituem uma alternativa interesante ao evolucionismo. se eu tenho entendido bem, elas consideram que as mudancas na forma (elas tampouco falam da origem) nao sao produto da acumulacao genetica durante geracoes mas que sao produzidas duma vez só por mudanzas nas condicoes moleculares e a presenca de certas condicoes estruturais, nas distintas etapas do desenvolvimento dos organismos. entao desse esta perspectiva nao há uma evolucao do macaco ao home. há simplesmente 'plans estruturais' diferentes que tem algumas semelhanzas. outra diferenca importante com relacao ao evolucionismo é que as mudancas aqui nao sao consideradas aleatórias. estam regimentadas pelo que eu já referi como constraints.
    abracos,
    susana

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  9. A comentadora Suzana erra ao dizer q as teorias do desenvolvimento não são evolutivas. Desenvolvimento e evolução estiveram separados por décadas, mas a Evo-devo tem avançado rapidamente na união das áreas.

    O padrão de distribuição dos genes controladores como os Hox têm ajudado a elucidar a evolução dos processos do desenvolvimento a gerar a diversidade da vida.

    Recomendo a leitura do livro: "Infinitas formas de grande beleza" de Sean Carroll 206, Jorge Zahar Ed. 320 pp.

    []s,

    Roberto Takata

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  10. agradeco o seu comentário, roberto. em primeiro lugar eu gostaria de esclarecer algo do meu anterior. os gens hox ajudam a estabelecer a estrutura corporal dos animais, determinam a ordem desse a cabeca ate o rabo (na verdade nao sei se tem a ver com a posicao dos olhos). Em segundo lugar, eu vou tentar responder ao seu comentário mas eu nao tenho certeza do que vou dizer. Eu acho que evo-devo é um programa de integracao interessante. mas eu acho também que supoe muitas perdas conceituais para ambas perspectivas e especialmente pra biologia do desenvolvimento. de um lado os resultados da bilogia do desenvolvimento sao lidos como apoiando a perspectiva evolucionista e eu acho que isso é somente uma leitura possível, mas a situacao com os genes e todo isso nao da evidencia nesse sentido. eu tirei uma cita de Elizabeth Pennisi e wade Roush em "developing a new view of evolution" que diz:

    "Researchers can't go back in time to see whether, for example, the ancestral vertebrate actually evolved by introducing or altering the expression of manx or whether the gene took on its present role million of years later".

    eu acho que a primeira perspectiva é a própria da biologia do desenvolvimento, a segunda é a do evolucionismo. quando se lem evolucionistamente os resultados da biologia esta-se deixando de lado a parte della que se menciona arriba e que é muito importante, e allém disso, esta se fazendo sem haver bases para isso. agora, isso pode ser feito, mas eu me pergunto: sem essa parte as teorias do desenvolvimento continuam elas sendo coherentes?
    de otro lado, os resultados da biologia supoem que há constraints que limitam as formas que pode tomar a vida. entao eu me pergunto: é isso coherente com a idéia de aleatoriedade (nao sei se existe essa palavra em portugues) do evolucionismo? estaria disposta a biologia a abandonar a idéia de constraint para acomodarse a essa aleatoriedade? continuaría ela sindo coherente com essa renuncia?

    eu acho que evo-devo é um programa interessante desse um ponto de vista experimental, mas pela minha falta de conhecimento há coisas que ainda nao comprehendo no nivel conceitual.
    abracos,
    susana

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