domingo, novembro 04, 2018

A Águia pousou

Cuidado: "spoiler" abaixo.

Quando eu era criança meu pai tinha, dentre seus inúmeros livros, um pequeno, talvez de 150 páginas, encadernado em capa dura, que contava a história do programa espacial norte-americano e também uma parte do programa soviético.

O livro era maravilhosamente ilustrado e, depois de tanto percorrê-lo de um lado a outro, meus três heróis terráqueos passaram a ser Armstrong, Aldrin e Collins. É claro que Armstrong, tendo sido "o primeiro homem", era também meu principal herói. Eu me lembro que, quando eu tinha não mais do que 10 anos, em uma conversa qualquer com um coleguinha, eu perguntei se ele sabia quem era Armstrong e ele disse: "É um trompetista de jazz". Eu não disse nada, mas fiquei pensando: "que idiota, nem sabe quem é Armstrong".

Para uma criança não é necessário conhecer as dores e alegrias de um herói para passar a admirá-lo. Basta que ele seja capaz de fazer coisas que ninguém mais consegue fazer (mesmo que com o auxílio de outros milhares de pessoas, de alguns milhões de dólares e de outros detalhes). Mas é exatamente desnudar Neil Armstrong que pretende o filme "The First Man" (2018).

Neil, que ficou conhecido como um "herói relutante", é descrito no filme como uma pessoa fria e difícil, sem visão de marketing e capaz de responder perguntas da imprensa como "se o senhor pudesse levar algo para a Lua, o que seria?", com um curto "mais combustível". O filme dá a entender que essa aparente frieza de Neil foi necessária para que ele conseguisse pousar a Águia na Base da Tranquilidade. Será? Provavelmente não. Após a Apollo 11, mais cinco missões Apollo conseguiram pousar com sucesso na Lua, pilotadas por diferentes astronautas com várias personalidades. E, apesar de a Apollo 11 ter sido a mais perigosa, todas foram perigosas.

O filme gira bastante em torno da relação de Neil com sua esposa,  Janet Shearon. Juntos eles estão tentando superar a morte da filhinha Karen. Ao contrário de outros filmes, que mostram as esposas dos astronautas como heroínas, mas apenas do tipo que ficam em casa torcendo para que tudo dê certo, este mostra as angústias de Janet  mais de perto e como ela tenta de certa forma dissuadir Neil e mostrar que na verdade "nada está sob controle", ao contrário do que a equipe da NASA acredita.

Após o lançamento do Saturno 5 (e garanto que tudo fica muito mais emocionante em 4D), os efeitos especiais tomam conta do filme. O primeiro "passo na Lua" é mostrado em detalhes, assim como Neil pronunciando aquela frase que, como outras, ficou impressa no livro da humanidade. Contudo, para mim a frase do primeiro passo sempre pareceu ensaiada e mais humilde do que deveria ser. Talvez Neil não estivesse em condições de pensar em algo melhor, mas em vez de dizer "... um grande passo para a humanidade", muitos americanos certamente gostariam que ele tivesse dito: "aqui pra vocês, soviéticos!".

O grande ato de heroísmo de Neil não foi ao pisar na Lua e pronunciar uma frase que renderia batalhas judiciais depois. O grande ato foi pousar na Lua, quase sem combustível, após ter assumido o controle manual, ultrapassar o local inicialmente previsto e pousar em um local mais seguro. Assim, a frase que descreve melhor a missão Apollo 11 foi aquela dita por Neil após o pouso, quando todos já haviam recuperado o fôlego: "Houston, aqui Base da Tranquilidade. A Águia pousou".

Pouco antes do lançamento do filme um senador ficou sabendo que a cena da bandeira norte-americana sendo espetada em solo lunar não seria mostrada em detalhes. O diretor do filme, Damien Chazelle, disse então que a bandeira estava lá, mas que ele preferiu dar ênfase a outros aspectos. Ao ficar sabendo da controvérsia, Trump teria dito: "É quase como se eles estivessem envergonhados com essa realização dos Estados Unidos e eu acho que isso é uma coisa terrível. Quando você pensa em Neil Armstrong e quando pensa no pouso na Lua, pensa na bandeira americana. Por essa razão, eu nem quero assistir ao filme". Uma declaração racional e refletida de Trump, como muitas outras.

O filme não mostra o retorno à Terra, que foi mais perigoso do que a ida à Lua. Em vez disso, os astronautas aparecem já em terra, entrando em quarentena. Pouco depois Neil e Janet aparecem se acariciando através da janela de vidro da câmara de quarentena. Nenhuma palavra é dita, e talvez nem precisasse.

segunda-feira, agosto 06, 2018

Observações sobre a entrevista de Jair Bolsonaro na GloboNews

Seguem-se algumas observações minhas, já publicadas na minha página do Facebook, sobre a entrevista de Bolsonaro na GloboNews.

1. Teria sido mais elegante se o candidato tivesse cumprimentado os jornalistas e o público antes de começar a falar. Mas tudo bem.

2. "Eu estou cumprindo uma missão de Deus (porque sou cristão)". Ui, essa doeu! Pior que isso só o Lula, que se compara a Jesus Cristo.

3. "Não tenho obsessão pelo poder." (??) Ué, então por que não se candidata somente a síndico?

4. "Eu sei fazer derivada, sei fazer integral, sei calcular um tiro de barragem..." hehe, dessa parte eu gostei. Resta saber como isso vai ajudar na área de macroeconomia.

5. Um entrevistador pergunta: "e se acontecer alguma coisa com o Paulo Guedes (provável Ministro da Fazenda no caso da eleição de Bolsonaro), se ele ficar doente...?" Cá entre nós, caro entrevistador, esse pergunta foi ridícula!

6. Devemos investir em tecnologia e pesquisa, não só em commodities", diz ele. Gostei.

7. "A China não está comprando 'no' Brasil. Ela está comprando 'o' Brasil. Algum tipo de protecionismo será necessário". Bem, a China está comprando empresas de energia elétrica, por exemplo, apenas por que o Brasil não têm mais dinheiro para isso. Se não deixarmos a China comprar as empresas, uma vez encerradas as concessões, o governo teria que comprá-las com recursos do Tesouro, que poderiam (deveriam) ser usados para outros fins.

8. Ele diz que a Zona Franca de Manaus, aquela aberração criada por um espírito maligno, será mantida. Estranho, ele se diz liberal mas defende subsídios?

9. "Me apresente algumas grandes obras do governo militar de lá para cá!" Êpa, candidato! Tivemos, por exemplo, obras de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica capazes de suprir o enorme crescimento da demanda desde então. Outros exemplos existem aos montes.

10. "Se não tiver outro jeito para a Petrobrás a solução é privatizar". Quem sabe seja uma boa.

11. Banco do Brasil, Caixa Econômica e Correios permanecerão estatais. Também pode ser uma boa estratégia, especialmente porque a privatização desses dois bancos mergulharia o país em uma sequência de greves com resultados piores do que os da greve dos caminhoneiros.

12. O senhor acha que feminicídio é um "mimimi"? Ele é muito contraditório nessa questão. Confunde assassinato de mulheres (por um bandido, por exemplo) com feminicídio, que é o "assassinato de mulheres por homens apenas pelo fato de serem mulheres".

13. "Eu nunca fui homofóbico. Ué, o que eu tô fazendo aqui!" (???) Não entendi. Isso foi uma piada?

14. "Eu não sou homofóbico", diz ele outra vez. Mas há uma entrevista de Bolsonaro com Stephen Fry onde Bolsonaro deixa isso muito claro: https://www.youtube.com/watch?v=o3ZBeX9uC8s . Há vários outros vídeos sobre isso.

15. Perguntado sobre a imoralidade ou não do auxílio moradia, quando o político já tem moradia, Bolsonaro reverte a perguta ao entrevistador: "Me diga uma coisa, vocês aqui na Globo recebem como PF ou PJ? Isso também não é imoral?" Uma típica falácia da inversão dos fatos. Aqui fica claro que ele não deixará que os políticos abram mão tão facilmente de direitos já estabelecidos.

16. Cá entre nós, os jornalistas deveriam saber que Bolsonaro havia entrado na sala com a questão do Roberto Marinho na manga.

17. Ele foge da questão da tortura. Primeiro diz que está na lei que ela é proibida. Depois diz que em alguns casos seria a última forma de extrair uma confissão de alguém (de um sequestrador, por exemplo).

18. Educação: "O que nós estamos formando hoje em dia são militantes de esquerda." Êpa, mas que bobagem é essa? Ele está falando da área de humanas? E o resto? E como o Brasil poderá viver "sem viés ideológico" se a esquerda não existir?

19. No momento ele sairia do Acordo de Paris (redução das emissões de gases de efeito estufa). Será que há alguma influência do Trump aqui?

20. Manteria o Bolsa Família, com responsabilidades.

21. Ele insiste que o pensamento de que as mulheres devem ganhar menos do que os homens não é dele. São os patrões quem pensam assim. Tudo bem, isso é verdade, mas se elegermos para Presidente um sujeito que admite de antemão que não fará nada nem mesmo para tentar mudar parcialmente a realidade, é melhor eleger o Tiririca.

22. Ele gosta do Trump, pois Trump está fazendo a "América grande" (apoiar o Trump já é motivo suficiente para que eu não vote no Bolsonaro).

23. Porte de armas: ele continua insistindo na falácia da comparação entre Brasil e EUA. Por que ele e seus correligionários não fazem uma comparação, por exemplo, entre Brasil e Japão?

24. Ele insiste em querer um Brasil sem viés ideológico (a não ser o viés dele, é claro).

25. A declaração do Grupo Globo ao final da entrevista, transmitido por Miriam Leitão com um ponto eletrônico no ouvido, foi realmente deplorável. Teria sido mais inteligente não ter tentado apagar o fogo com gasolina.

sexta-feira, junho 29, 2018

Prof. Eng. Arlei Bichels - in memoriam


Quando passei no concurso da Copel, no final de 1994, me ofereceram duas vagas: uma na área da manutenção da Transmissão, que exigia viagens constantes, e outra no Planejamento da Geração, que exigia poucas viagens. Escolhi a Geração, para não prejudicar muito minha carreira de professor no CEFET-PR (UTFPR, a partir de 2005).

Ao chegar ao escritório descobri, com certa surpresa para um Engenheiro Eletricista, que todos naquela área eram Engenheiros Civis. O gerente então me disse que a ideia deles era que eu servisse como uma espécie de "interface" entre as áreas de Planejamento da Geração e Planejamento da Transmissão. Ao ser apresentado aos Engenheiros da Transmissão descobri que um dos mais graduados era o Arlei Bichels, meu colega no Departamento Acadêmico de Eletrotécnica (DAELT) do CEFET-PR e meu conhecido de longe desde que eu era aluno do curso de Engenharia. Durante algum tempo pensei em mudar para a Transmissão, mas isso não é fácil para um recém-contratado e tive que desistir.

O Arlei entrou na Copel em 1971, logo após ter se formado em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Paraná. Na mesma época foi contratado como professor 20 horas pela antiga Escola Técnica Federal do Paraná, que viria a se transformar em CEFET-PR em 1978, quando os cursos de Engenharia foram criados. No início ele era professor do curso técnico de Eletrotécnica, depois passou a lecionar para o curso de Engenharia.

A ideia de que eu atuasse como interface entre a Geração e a Transmissão nunca deu certo, por falta de treinamento e outras razões, mas essas áreas ficaram em contato físico durante alguns anos e eu permaneci em contato com o Arlei em modo extraoficial. Ele era um sujeito ligado no 380 V, de todas as formas. Por vezes isso era um problema, pois tomávamos o mesmo ônibus e de vez em quando eu o encontrava de manhã, na ida para a Copel, ele com dois metros de perna e eu com meu meio metro. Embora meu condicionamento físico fosse muito melhor naquela época, eu chegava ao escritório um pouco suado e tinha que relaxar por alguns minutos.

Em algum ponto descobri que os armários dele escondiam periódicos do IEEE. Aquilo foi como a parábola do rato na fábrica de queijo. Muito embora o curso de Engenharia do CEFET-PR fosse tido como um dos melhores, ele era mais direcionado para a indústria (de fato, o curso era denominado "Engenharia Industrial Elétrica") e eu me formei sem ler um único paper do Institute of Electrical and Electronics Engineers. Se eu tivesse sido aluno do Arlei, talvez isso tivesse acontecido, mas ele estava de licença justamente no semestre em que eu viria a ser aluno dele. Hoje qualquer um que tenha acesso ao portal de periódicos da Capes pode baixar tudo o que quiser do IEEE e de outras bases, mas, antes da internet, tudo era impresso e aproveitei para tirar cópias de muita coisa que me interessava.

Alguns anos depois houve uma mudança na Copel, várias áreas foram unidas, outras separadas e algumas enviadas para o famoso km3. Meu contato com o Arlei foi reduzido na Copel, mas continuou no CEFET-PR. Ele continuava viajando e de vez em quando me pedia que eu o substituísse nas aulas de Sistemas Elétricos de Potência (SEP). Isso não era difícil, pois ele transformava essas aulas em exercícios para os alunos e me dava os gabaritos.

Ele se aposentou da Copel em 1999, com 28 anos de serviço, e assumiu o cargo de Diretor de Novos Negócios na Tradener, a primeira Comercializadora de Energia Elétrica brasileira, cujo sócio majoritário na época era a Copel. Na verdade, ele ajudou a fundar a Tradener. Em 2001 ele resolveu se aposentar também do CEFET-PR. Me lembro com detalhes de uma noite em que dei uma carona a ele até sua residência, ele me deixou todo seu material impresso de SEP, juntamente com os arquivos magnéticos, e me disse: "Estou deixando todo esse material para você usar nas suas futuras aulas. Cuide bem dele". Não tive coragem de dizer a ele que não pretendia lecionar SEP, mas as coisas mudam. Não só acabei lecionando essa disciplina como, vários anos depois, cursei um mestrado na área. Só agora percebi que, por absoluta imbecilidade e falta de memória, me esqueci de incluir o nome dele nas dedicatórias da minha monografia!

A possível privatização da Copel fez a empresa tentar reduzir ainda mais seus custos por meio de um Plano de Demissão Voluntária (também conhecido como "sopão"). Resolvi aderir ao plano, passar meu contrato no CEFET-PR para 40 horas e me dedicar parcialmente ao desenvolvimento de software, especialmente software para a internet. Um dos meus primeiros clientes foi a Tradener. Eu entrava na sala do Arlei toda vez que ia lá e certa vez perguntei o que ele achava das perspectivas para o Setor Elétrico. Ele respondeu, rindo um pouco: "As piores possíveis!". Outras pessoas talvez tivessem tentado suavizar um pouco a situação, mas ele estava certo em um ponto: o "efeito Lula" fez o dólar e o IGPM dispararem e as pessoas que viviam de aluguel, como eu, entraram em uma fria.

Meu contrato com a Tradener acabou, mas o Claudio Alves, um físico que havia me convidado para desenvolver o site da Tradener, me chamou para prestar serviços na Comercializadora que ele estava abrindo, a Electra Energy. Por causa da atuação na mesma área, mesmo que em lados opostos, meu contato com o Arlei continuou, mas dessa vez geralmente por telefone ou e-mail. De vez em quando nos encontrávamos também em algum congresso ou seminário. A última vez que o vi foi no SNPTEE, o Seminário Nacional de Produção e Transmissão de Energia Elétrica, em Curitiba, em outubro de 2017.

Por volta de 2015 ele deixou definitivamente a Tradener e passou a se dedicar somente à própria empresa, a SisEletro Consultoria em Engenharia, que havia fundado em 1999. Ele tinha então 67 anos, aquela idade em que muitos com certa graduação já se aposentaram há anos. De vez em quando eu ficava sabendo pelos meus alunos que ele estava contratando estagiários da UTFPR, ajudando-nos a resolver esse problema acadêmico que fica mais grave em épocas de dificuldades econômicas.

Essa perda de contato foi uma pena. Não sei se ele poderia ter aprendido algo comigo (como correr mais devagar para pegar um ônibus, talvez), mas eu certamente poderia ter aprendido algo mais com ele.

Que ele fosse um sujeito multitarefas todos sabíamos, mas ninguém do DAELT com quem conversei sabia que ele se dedicava ao paraquedismo esportivo. Infelizmente, ficamos sabendo disso da pior forma: depois de 45 anos de saltos, ele sofreu um acidente fatal.

Alguns jornais noticiaram o acidente como "Paraquedista de 70 anos morre durante um salto em Paranaguá" ou "Senhor de 70 anos pula de paraquedas e morre na queda em Paranaguá". Só agora me dei conta do que algumas pessoas podem ter pensado com essa manchete: um paraquedista velhinho e um pouco corcunda, dando seu primeiro salto duplo ou coisa parecida. Não foi nada disso.

Segundo o Albatroz, o Arlei chegou ao Aeroclube do Paraná aos 25 anos de idade, em fins de 1970, "muito branco, altíssimo, loiro, e foi logo irreverentemente apelidado de 'Cobra-d'água'". Era alvo de brincadeiras dos colegas, que diziam que seu peso seria insuficiente para abrir o paraquedas, mas foi aos poucos obtendo o respeito e a admiração de todos. Com o tempo ele assumiu a diretoria geral do Albatroz e, para aprimorar seu treinamento, adquiriu um paraquedas "Papillon", francês, fabricado especialmente para saltos de precisão, e hiper sustentável com 28 pés de diâmetro. O "fino em paraquedas", segundo dizem. Em 1976 já era membro da União Brasileira de Paraquedismo.

Logo após o acidente, em 23 de junho de 2018, circulou a notícia de que ele poderia não ter aberto o paraquedas de forma adequada, mas seus colegas não acreditam nisso. De acordo com o personal trainner Walter da Silva, companheiro de alguns saltos com o Arlei desde a década de 70, "ele era um cara extremamente inteligente e cuidadoso. Não era um maluco. Era muito consciente, estava bem fisicamente e com documentos em dia. Foi uma fatalidade que pode acontecer com qualquer um de nós". De fato, agora a principal hipótese não é erro humano, mas sim que o paraquedas tenha apresentado algum defeito.

Nos últimos anos o Arlei estava escrevendo seu próprio livro de SEP, o qual será publicado pela Editora da UTFPR. Só é uma pena que ele não irá vê-lo.

Aproveito para enviar minhas condolências a todos os amigos e familiares.

sábado, maio 12, 2018

O centenário de Richard P. Feynman


Nesse mês de maio de 2018, Richard P. Feynman, provavelmente o maior físico norte-americano do século XX, estaria comemorando seu centésimo aniversário. Nascido no Queens, na cidade de Nova Iorque, Feynman mostrou grande inteligência desde criança e iria se tornar não só um grande físico teórico, mas também um grande professor de física.
Em 1985 Feynman publicou a primeira parte de sua autobiografia, “Surely You're Joking, Mr. Feynman!”, que seria publicada pela editora Gradiva, de Portugal, em 1988, com o título “Está a Brincar, Sr. Feynman!”. A edição brasileira, “O Senhor Está Brincando, Sr. Feynman”, seria publicada somente em 2006, pela Campus.
Autobiografias de grandes homens ou mulheres são sempre perigosas. Após o lançamento de suas “Notas Autobiográficas”, um livrinho de menos de 100 páginas, Einstein foi criticado por ter discorrido apenas sobre seu trabalho em física e nada sobre sua vida pessoal (assunto do qual, de todo modo, ele nunca falava abertamente). Feynman, por outro lado, foi criticado por ter escrito pouco sobre seu trabalho em física e muito sobre sua vida pessoal, incluindo seus hábitos pouco acadêmicos: frequentava clubes de strip-tease, tocava bongô onde fosse possível, não se preocupava em interagir com “gente comum” e participou de experiências psicológicas sobre “estados alterados”, as quais envolviam a imersão em tanques de privação dos sentidos, com o uso ocasional de um pouco de maconha para potencializar a alteração.
Após o lançamento do livro, um editorial do American Journal of Physics descreveu Feynman como um “gigante com pés de barro”. Feynman teria dito: “a Física fica para o próximo livro”, que viria a ser “What Do You Care What Other People Think?”, publicado em 1988. Neste livro Feynman também fala sobre sua vida pessoal, mas dedica metade do texto ao seu trabalho na Comissão Rogers, criada para investigar o desastre da Challenger. O livro é concluído com um discurso de Feynman dado na reunião da Academia Nacional de Ciências de 1955: “O Valor da Ciência”. Infelizmente não houve tempo para mais autobiografias, pois Feynman faleceu em 1988, vitima de uma forma rara de câncer.
Tivesse pés de barro ou não, as autobiografias de Feynman são certamente atraentes às “pessoas comuns” e ele foi sem dúvida um gigante da física, aos olhos de quem quer que fosse, além de um professor genial.
Feynman iniciou seus estudos de graduação no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), na área Matemática, que ele achou muito abstrata. Passou então para Engenharia Elétrica, que achou um ramo prático demais, acabando na Física, que ficava no meio, como ele disse, mas correndo o risco de que na época a profissão nem mesmo era conhecida. Einstein, por exemplo, era visto pela mídia como um matemático.
Depois da graduação no MIT, Feynman foi para Princeton, onde conheceu pesquisadores como Albert Einstein, Wolfgang Pauli, e John von Neumann. Após receber seu diploma de PhD, Feynman havia lançado as bases para seu trabalho mais importante: a formulação da mecânica quântica por meio de integrais de caminho e os diagramas de Feynman, trabalho que lhe concederia o Nobel de Física em 1965, juntamente com Sin-Itiro Tomonaga, Julian Schwinger.

Durante seu doutorado em Princeton Feynman foi para Los Alamos, trabalhar no Projeto Manhattan, onde passou a liderar o grupo responsável pelo trabalho teórico necessário para a construção da bomba atômica. Em sua autobiografia Feynman descreve que sua decisão de trabalhar em Los Alamos tem muito do pensamento de Tomás de Aquino: “para que uma causa seja justa, é necessária uma causa justa”. Contudo, a causa justa para muitos físicos e engenheiros da época, especialmente no caso dos descendentes de judeus, como Feynman, era a derrota dos nazistas na Alemanha. Ninguém poderia imaginar que a bomba seria usada para derrotar os japoneses.
Após o Projeto Manhattan Feynman foi para Cornell, trabalhando como Professor Assistente de Física, e esteve no Brasil algumas vezes. Ele conta ter conhecido o físico brasileiro Jaime Tiomno (n. 1920) em um seminário de Física em Nova Iorque, no final dos anos 1940. Pouco depois, Tiomno conseguiu uma colocação para ele no CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), no Rio de Janeiro, onde ele viria a passar um semestre em 1951, ensinando física aos estudantes brasileiros.
As observações de Feynman sobre a educação brasileira são pouco lisonjeiras. Por exemplo, ele ficou particularmente irritado quando descobriu que os alunos brasileiros estavam acostumados a decorar tudo, mas não eram capazes de aprender nada. No fim do ano letivo, ao dar uma palestra sobre suas experiências de ensino no Brasil, ele comentou: “O principal objetivo da minha palestra é mostrar que no Brasil não se ensina ciência alguma.”.
Essa passagem é hoje conhecida por qualquer estudante ou professor de Física, mas, em defesa dos professores brasileiros daquela época, vale ressaltar que o ensino da Física no Brasil estava em seu início. O CBPF havia sido fundado somente em janeiro de 1949, por Jaime Tiomno, César Lattes e José Leite Lopes. Os conselhos de Feynman são hoje usados para nos lembrar como deve ser o ensino de Física e de outras disciplinas da área de exatas, embora colocar tais conselhos em prática seja muito mais difícil.
Feynman viria a visitar o Brasil mais algumas vezes. Em 1966, um ano após ter recebido o Nobel, ele veio a convite de Prefeitura do Rio de Janeiro, assistiu os desfiles das Escolas de Samba e participou de alguns bailes. Feynman gostava de samba e falava Português com certa fluência. Após 1966, o governo militar não mais permitiu que Feynman retornasse ao Brasil, por causa de suas declarações a favor de cientistas como Mario Schenberg e José Leite Lopes, inimigos da ditadura.
Entre 1961 e 1963 ele foi convidado pelo Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia) para lecionar um curso de Física introdutória (algo parecido com as disciplinas de Física 1, 2 e 3 dos nossos cursos de Engenharia e Física). O resultado foi compilado em quatro volumes e publicado com o título de “Feynman Lectures on Physics”, em 1964. A última edição em inglês é de 2005 e a coleção já vendeu mais de um milhão e meio de exemplares em Inglês e traduções em 12 línguas, tendo se tornado a maior referência de física introdutória (infelizmente, aos olhos dos calouros, as “Lectures” são mais difíceis do que qualquer outra obra do gênero). Em 2008, a Artmed publicou uma tradução em Português com o título “Lições de Física”. É difícil encontrá-las por menos de R$ 450. Aos leitores da língua inglesa, contudo, elas estão disponíveis gratuitamente em http://www.feynmanlectures.caltech.edu/
Feynman é também considerado o pai da nanotecnologia. No fim de 1959 ele proferiu uma palestra no Caltech intitulada “There's Plenty of Room at the Bottom” (“Há Muito Espaço no Fundo”), na qual ele aborda o futuro da engenharia em escala molecular. Em 1984, depois da invenção de circuitos integrados, em um seminário no Instituto Esalen, ele repetiu essa palestra, que pode ser encontrada em https://www.youtube.com/watch?v=4eRCygdW--c (não se espante com suas vestes pouco acadêmicas).
Em sua palestra de 1959, Feynman sugeriu que, em princípio, seria possível construir máquinas em nanoescala (10-9 m). Em 1960, William McLellan, um engenheiro eletricista norte-americano, conseguiu construir um motor elétrico de 250 microgramas, formado por 13 partes separadas, girando a 2.000 rpm, e conquistou o prêmio de US$ 1.000 oferecido por Feynman. Feynman também ofereceu um prêmio à primeira pessoa que conseguisse gravar uma página de livro em uma superfície 25.000 vezes menor. Esse prêmio foi conquistado em 1985 por Tom Newman, um estudante de pós-graduação de Stanford, que conseguiu gravar a primeira página de “Uma História de Duas Cidades”, de Charles Dickens, na ponta de uma agulha, usando um feixe de elétrons. Hoje a nanotecnologia é corriqueira e aplicada em várias áreas, até mesmo em cosméticos.
As biografias de Feynman são mais numerosas do que as de outros físicos, perdendo somente para Einstein. Uma das mais acessíveis é “Genius: The Life and Science of Richard Feynman” (1992), de James Gleick, publicado em 1994 pela Gradiva com o título “Feynman: a Natureza do Gênio”. Gleick é jornalista e não complica muito a parte matemática da física de Feynman. Outra biografia, na ordem de acessibilidade, é “Quantum Man: Richard Feynman’s Life in Science” (2011), de Lawrence M. Krauss, um cosmologista da Universidade do Arizona e divulgador científico. Neste livro, Krauss elogia o trabalho de Gleicke e vai mais a fundo na parte científica, mas deixa a matemática de lado. Finalmente, o terceiro livro que tenho na minha estante é “The Beat of a Different Drum: The Life and Science of Richard Feynman” (1994), de Jagdish Mehra. Neste livro as equações diferenciais, integrais de caminho e diagramas de Feynman pulam das páginas, pois se trata de uma biografia científica. O leitor com certa formação pode usá-la como uma introdução à Eletrodinâmica Quântica. Já o leitor menos afeito à matemática pode seguir a receita de Roger Penrose, colega de Stephen Hawking em Cambridge e autor de “The Road to Reality”: pule as partes matemáticas como se elas não existissem. Tenho que confessar que até o momento só li 56%, sem pular as fórmulas, mas ainda não desisti!

A biografia de Richard Feynman também foi abordada no cinema. Em 1996, Mathew Broderick dirigiu e atuou como personagem principal de “Infinity” (“Infinito – Um Amor Sem Limites”, 62% no “Rotten Tomatoes”). O título é interessante, pois se refere simultaneamente ao trabalho de Feynman em física, que envolvia os infinitos que aparecem na Eletrodinâmica Quântica, e ao seu amor por Arline, que morreu de tuberculose durante o Projeto Manhattan. O segundo é “The Challenger Disaster” (2013, 92% no “Rotten Tomatoes”), um filme de TV que aborda a atuação de Feynman na comissão Rogers, que investigou o desastre do ônibus espacial Challenger. A finalidade da comissão era “enterrar” os motivos do desastre, enquanto Feynman queria desafiar (“to challenge”) os militares e descobrir o que de fato havia acontecido. O motivo principal tinha a ver com a perda de elasticidade dos anéis de vedação (“o-rings”) dos tanques de combustível sólido da nave quando submetidos a baixas temperaturas. A forma didática como Feynman descreveu o problema em público tornou-se um clássico e está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6Rwcbsn19c0 . Imagino que, mesmo que Feynman não tivesse falecido menos de dois anos depois, ele não teria sido mais convidado para comissões investigativas.