terça-feira, dezembro 18, 2007

O papa e os ateus

Em sua segunda encíclica, “Na esperança somos salvos” [1], Bento XVI dá mostras de continuar no ataque. Dessa vez, o culpado pelas desgraças do mundo é o ateísmo, que, segundo o papa, seria responsável pelas “maiores formas de crueldade e violação da justiça na história”. Bento XVI, que já causou algum desconforto por ter dito que a religião católica não foi imposta pela força no Novo Mundo, agora parece ter esquecido também da inquisição espanhola, só para citar um exemplo.

O papa tenta apresentar o ateísmo como uma espécie de “moralismo”. Segundo ele, ao constatarem que o mundo é injusto e cruel, os ateus não conseguem crer na existência de um Deus bondoso e ao mesmo tempo responsável por tudo isso. Consequentemente, a solução seria a negação da existência de Deus.

O problema com o argumento do papa é seu primarismo excessivo. Conheço vários ateus. Alguns deles realmente se encaixam nessa classificação de “ateu raivoso”, que, deparado com o mal no mundo, deixa de crer em Deus por estar com raiva dele. Contudo, o pensamento desse tipo de ateu também é primário e não deve ser tomado como exemplo.

A maioria dos ateus, arrisco dizer, chegou a esse posicionamento depois de um longo e tortuoso processo de reflexão, frequentemente pontilhado por leituras e discussões de temas religiosos, filosóficos e científicos. Segundo esses “ateus esclarecidos”, ou ateístas, como eles preferem, a negação da existência de Deus não deve ser feita por causa da existência do mal, mas simplesmente por causa da ausência de evidências.

O papa também afirma que um mundo que acredita ser capaz de estabelecer a justiça absoluta por si mesmo “é um mundo sem esperança”.

Essa história é velha. Em primeiro lugar, o conceito de “justiça absoluta” parece muito mais ligado à antiga Igreja Católica, que impunha sua vontade pelo fio da espada, do que ao conceito moderno, especialmente o conceito ocidental, de justiça. Tanto a justiça não é absoluta que mesmo o criminoso mais hediondo tem direito a um advogado. Não restam dúvidas de que a justiça de todos os lugares é imperfeita, mas que a justiça possa, ou deva, ser absoluta é um conceito arcaico e perigoso.

Em segundo lugar, a confusão entre esperança e existência de Deus, induzida pelo texto papal, é muito comum. Nada de novo aqui. De fato, as pessoas comuns costumam entender os ateus como gente que perdeu a esperança. Nada mais distante da verdade. O ateu pode ser visto como alguém que mantém a esperança na humanidade, apesar da constatação de que o mundo é cruel e hostil. Afinal, como costuma dizer Gore Vidal, “acreditar em Deus é fácil; difícil é acreditar no homem”.

Essa confusão também se reflete na surrada pergunta “você acredita em Deus?”. Antes de ser uma pergunta a respeito das verdadeiras crenças da pessoa, o que essa pergunta realmente quer dizer é: “você acredita em um Deus que possa mandá-lo para o inferno caso você faça algo de errado?”. Assim, quem faz essa pergunta está na verdade perguntando se a pessoa é confiável, ou se é capaz de qualquer coisa, por não crer na punição eterna. Todavia, a verdadeira moralidade e senso de justiça devem se revelar nas ações, não em uma mera declaração religiosa.

Ao comentar o ateísmo e a revolução marxista, o papa afirma também que o erro de Karl Marx foi o materialismo, que o fez esquecer do homem e da sua liberdade, além de acreditar que, se o problema da economia fosse solucionado, “tudo seria regulado”.

Na verdade, um dos grandes erros de Marx foi ter desprezado a força do egoísmo humano, fator cuja importância Adam Smith já havia reconhecido. Nesse aspecto, Marx e Bento XVI estão em pé de igualdade, pois tanto o socialismo marxista quanto o catolicismo querem transformar o homem em algo que ele jamais poderá ser. Outro erro de Marx foi ter se tornado militante da própria revolução, a qual, segundo ele, era inevitável (por causa das “contradições internas do capitalismo”) e, logo, prescindiria de militantes.

Mas é claro que a Igreja Católica não está interessada nas implicações econômicas do pensamento marxista. Se Marx tivesse sido apenas um economista, papa algum jamais o citaria em uma encíclica. Contudo, Marx foi também um historiador, um filósofo, um sociólogo, um político e o criador de um movimento capaz de mobilizar milhões, mesmo aqueles que nunca o conhecerem, que não leram seus textos ou que nem mesmo têm condições de fazê-lo. Alguma semelhança com uma religião?

Da mesma forma, a Igreja Católica jamais perdoará Marx por ter escrito, em 1844, o famoso trecho que começa pela parte mais conhecida, “A religião é o ópio do povo”, e finaliza com um chamado às armas: “É preciso combater a religião como felicidade ilusória das pessoas em nome da felicidade real”.

Marx pode ser criticado por ter acreditado demais nas forças do materialismo dialético, por ter desprezado o poder do aumento da produtividade, por ter usado de certo ilusionismo ao falar de conceitos econômicos simples (como a “mais valia”), por ter levado muito a sério a teoria do valor-trabalho, por ter proposto um sistema social impraticável, que resultaria na cassação da liberdade de milhões. Para a Igreja Católica, contudo, Marx é apenas um concorrente que deve ser combatido.

Apesar de tudo, não sou defensor do ateísmo, embora também não o condene. Não aprovo o “ateísmo radical”, que acaba se tornando apenas uma religião sem Deus, mas me sinto tão à vontade junto de ateus quanto junto de religiosos, embora os primeiros provavelmente se sintam mais à vontade junto de mim do que os segundos.

Para mim, o verdadeiro posicionamento frente ao mundo deve ser o do ceticismo. O exercício da dúvida é mais importante do que a imposição de certezas. Além disso, o cético, ao contrário dos ateus e religiosos, é o único tipo de pessoa capaz de rir de si mesma, rir da própria ignorância (ou chorar, conforme o caso), e também mudar de posição quando as evidências assim o exigirem, sem que isso signifique se tornar uma “metamorfose ambulante”.

[1] Bento XVI. Spe Salvi, 30 de novembro de 2007. Disponivel em: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi_po.html>

quarta-feira, dezembro 12, 2007

O leilão da usina Santo Antônio, no rio Madeira

O tão esperado leilão da primeira usina do Complexo do Rio Madeira, a UHE Santo Antônio, foi vencido na última segunda-feira pelo Consórcio Madeira Energia. O preço da energia a ser vendida no Ambiente de Contratação Regulado ficou em R$ 78,87/MWh, mais de 35% inferior ao preço inicial de R$ 122,00/MWh [1].

O Consórcio Madeira Energia é formado pelas empresas Furnas (39%), Cemig GT (10%), Odebrecht Investimentos em Infra-estrutura (17,6%), Construtora Norberto Odebrecht (1%), Andrade Gutierrez Participações (12,4%) e pelo Fundo de Investimentos e Participações Amazônia Energia (Banif e Santander, 20%).

Apesar do sucesso do leilão, ainda não é certo se devemos rir ou chorar. A razão é que o baixo preço oferecido pelo consórcio vencedor contraria todas as expectativas atuais de preços de energia para o médio prazo. O consumidor desavisado pode imaginar que isso se deve à “modicidade tarifária” preconizada pelo atual modelo do setor elétrico, mas o problema é que, em finanças, não existe milagre. Assim, vale a pena fazer uma análise econômico-financeira do projeto, ainda que rápida.

De acordo com dados da ANEEL [2], a energia assegurada da UHE Santo Antônio é de 2.218 MW médios (cerca de 19,43 milhões de megawatts-hora anuais). As regras do leilão prevêem que 70% dessa energia serão vendidos no Ambiente de Contratação Regulado (ACR), destinado ao atendimento de consumidores cativos, ao preço oferecido pelos vencedores e durante um prazo de 30 anos. Os restantes 30% deverão ser vendidos no Ambiente de Contratação Livre (ACL), destinado ao atendimento de consumidores livres, por meio da livre negociação de preços e prazos.

Vamos supor que as despesas de operação e manutenção sejam de R$ 10/MWh e que a entrada em operação das 44 turbinas ocorra entre 2012 e 2015, de acordo com o cronograma previsto. Vamos supor também que o investimento total (R$ 9,5 bilhões) seja distribuido ao longo dos anos de construção (2008 a 2012) nas proporções de 10%, 20%, 30%, 30% e 10%. Algum investimento será também necessário após a entrada da primeira máquina, mas esse item não altera o retorno do projeto.

Outros fatores a considerar são a depreciação do ativo imobilizado, a ser realizada em 25 anos, o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (25%) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (9%). Finalmente, consideremos que o preço médio de venda no ACL seja R$ 180/MWh.

Inserindo todos esses dados em um planilha eletrônica, o resultado é uma taxa interna de retorno (TIR) de 10,3% ao ano. Se o preço médio no ACL cair para R$ 122/MWh, que era o preço inicial do leilão, a TIR cairá para 8,7% ao ano. Em outras palavras, nas atuais circunstâncias seria melhor aplicar o dinheiro em Títulos do Tesouro Nacional, que pagam a taxa Selic de 11,18% ao ano.

Qual é a mágica, então, imaginada pelos vencedores do leilão da UHE Santo Antônio? Bem, pode haver várias. Por exemplo, o orçamento de R$ 9,5 bilhões, fornecido pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética) pode estar super-estimado. De fato, esse montante resulta em um número-índice de R$ 3.015 por quilowatt instalado, compatível com usinas de muito menor porte, as quais não permitem certas economias de escala. Outra possibilidade é que os investidores, deparados com a redução dos juros e do risco Brasil, passaram a se contentar com TIRs inferiores a 10% ao ano, esperando que dentro em breve a taxa Selic irá cair abaixo desse valor. Talvez. Contudo, tomar decisões estruturais com base em dados conjunturais é sempre arriscado. Mas quem sou eu para dizer ao pessoal da Odebrecht o que eles devem fazer?

Por outro lado, a taxa de retorno de um projeto de investimento deve contemplar também os riscos incorridos, os quais não faltam no caso da usina Santo Antônio. A construção dessa primeira usina do Complexo Rio Madeira não será tarefa trivial e, mesmo desconsiderando-se os riscos inerentes à construção em si, bastará que uma ONG qualquer consiga uma liminar na justiça para provocar um atraso de 12 meses ou mais, impactando o retorno e o custo de geração e confirmando a famosa lei de Quéops: “nada fica pronto dentro do orçamento ou dentro do prazo previstos”.

Outra possibilidade, que está sendo divulgada com certa insistência pela mídia, é que o baixo preço do leilão poderá ser “compensado no mercado livre”. Todavia, como vimos, o preço no mercado livre deverá ser superior a R$ 180/MWh para que tal aconteça. E, ainda que esses preços sejam factíveis no momento atual, é difícil acreditar que isso possa acontecer após 2013, quando deverá haver maior oferta de energia, resultando em preços mais baixos para o mercado livre. Afinal, esse mercado responde muito bem às variações da oferta e da demanda de energia, mas muito mal a preços sugeridos pelo governo ou por associações de classe. Da mesma forma, consumidor livre algum se conformará em comprar energia a preços mais elevados com a desculpa de contribuir para o subsídio dos consumidores cativos.

Finalmente, talvez o Consórcio Madeira Energia esteja esperando vencer também o leilão da segunda usina do Madeira, a UHE Jirau, o que aumentaria a escala do projeto conjunto e melhoraria o retorno dos investimentos. Resta esperar por esse leilão, que deve ocorrer em maio de 2008.

[1] ANEEL. Central de Notícias, 10 dez. 2007. Disponível em: <http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/noticias/Output_Noticias.cfm?Identidade=2315&id_area=90>
[2] ANEEL. Leilão da UHE Santo Antônio, Disponível em: < <http://www.aneel.gov.br/arquivos/PDF/kit%20imprensa%20site.pdf>.

quinta-feira, dezembro 06, 2007

Educação e corrupção

No início da semana foi divulgado o resultado do PISA (“Programme for International Student Assessment”, ou “Programa Internacional de Avaliação de Alunos”), exame aplicado em alunos com idade de 15 anos (ensino médio) de vários países. O Brasil foi reprovado mais uma vez em matemática e leitura.

Os resultados do PISA mostram que os alunos brasileiros obtiveram médias que os colocam na 53ª posição em matemática (entre 57 países) e na 48ª em leitura (entre 56). Os dados referem-se a 2006 e os exames são aplicados a cada três anos. Em 2003, o Brasil não conseguiu resultados muito melhores do que em 2006 [1].

O país latino-americano mais bem classificado foi o Chile. Entre Brasil e Chile, aparecem Uruguai e México. A classificação do Brasil é um pouquinho melhor do que a da Colômbia e um pouco melhor do que a da Argentina [2].

Sabendo dos notórios índices de corrupção dos países latino-americanos, e dos baixos índices de corrupção de alguns dos países mais bem classificados no PISA (como Finlândia, Nova Zelândia e Canadá), resolvi fazer uma comparação entre os resultados do PISA e o Índice de Percepção da Corrupção (“Corruption Perception Index”, CPI), divulgado pela organização Transparência Internacional [3]. Os resultados são mostrados na figura abaixo, onde apenas o índice PISA de habilidade de leitura foi incluído (clique sobre a figura para ampliá-la).


O CPI mede a percepção da existência da corrupção, não a corrupção em si, e é tanto maior quanto menor for essa percepção. É por isso que a Finlândia aparece com CPI igual a 9.4, enquanto Brasil e México aparecem com 3.5. Existem vários países com CPI inferior a 3.5, mas estes não foram incluídos no PISA. Exemplos são Mianmar e Somália, que empatam em 1.4.

O gráfico deixa evidente que existe uma correlação entre educação e corrupção. Não se trata de uma correlação fortíssima, até mesmo por causa do pequeno número de países analisados (46), mas a correlação é forte o suficiente para que se diga que, caso mais países fossem analisados, a curva continuaria crescente e para a direita.

Será essa correlação um indício de ligação causal entre nível educacional e prática da corrupção? Estudos mais aprofundados poderão esclarecer essa questão, mas a resposta pode ser apontada pelo mais puro bom senso.

[1] Folha Online, 5 dez. 2007. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u351481.shtml>.
[2] PISA 2006 results. Disponível em <http://www.pisa.oecd.org/dataoecd/15/13/39725224.pdf>.
[3] Transparency International, CPI 2006. Disponível em <http://www.transparency.org/news_room/in_focus/2006/cpi_2006__1>.