sábado, fevereiro 27, 2010

Motos contínuos revisitados

Há algum tempo cometi neste blog a temeridade de escrever dois ensaios sobre motos contínuos (também conhecidos como "motos perpétuos"). O primeiro deles ("Máquinas impossíveis") deixava bem clara a impossibilidade de se construir tais máquinas mitológicas, enquando o segundo ("Moto contínuo: o sonho que não quer morrer") tratava de uma motocicleta fabricada pela empresa japonesa Axle Corporation, que apareceu no YouTube juntamente com a alegação de ser movida por um moto contínuo. O resultado foi que passei a receber comentários e e-mails de aficcionados do suposto invento, os quais diziam (e continuam dizendo) terem projetos prontos, faltanto "apenas alguns detalhes". Recebi até mesmo um projeto em papel, para ser analisado. Mas, para ser bem direto, não perca seu tempo com isso. Motos contínuos são impossíveis.

Vamos recapitular algumas coisas. Em princípio existiriam dois tipos de moto contínuo. Os de primeira espécie produziriam mais energia do que consumiriam, violando a lei da conservação da energia, que é a primeira lei da termodinâmica. Já os de segunda espécie converteriam energia térmica espontaneamente em trabalho mecânico, violando a segunda lei da termodinâmica, que diz que a entropia de um sistema sempre aumenta entre conversões sucessivas de energia. Em outras palavras, o calor não pode passar espontaneamente de um corpo frio para um corpo quente.

Qualquer motor deve vencer uma série de perdas para se manter em funcionamento. Motores elétricos, por exemplo, que são os mais eficientes de todos os motores, apresentam perdas em seus enrolamentos, denominadas "perdas por efeito Joule" ou, no jargão da área, "perdas ôhmicas", além de perdas no ferro, perdas por atrito e ventilação e outras de menor importância. Por causa de tais perdas, o motor fornecerá em seu eixo menos energia elétrica do que recebe da rede elétrica e seu rendimento será inferior a 100%.

Um motor fantasticamente bem projetado e construído talvez apresentasse rendimento de 99,95%, mas ainda estaria infinitamente longe de ser considerado um moto contínuo de primeira espécie. E o problema é que tal motor custaria tão caro que toda a economia obtida com sua operação seria sepultada pelos custos de sua produção.

Teoricamente, poderíamos pensar que no futuro será possível produzir motores com rendimentos da ordem de 99,9999%. Talvez. É possível que a evolução da ciência dos materiais torne possível tal criatura fantástica, embora isso provavelmente venha a acontecer somente depois da invenção do motor de dobra, do teletransporte e do sabre de luz! Mesmo assim, um motor com rendimento igual a 99,9999% tambem estaria infinitamente distante de ser considerado um moto contínuo de primeira espécie.

Já um moto contínuo de segunda espécie é uma criatura totalmente mitológica. Ele só seria possível em um universo povoado por anjos e fadas, no qual as leis da física pudessem ser alteradas em um passe de mágica. Em tal universo, contudo, motos contínuos provavelmente seriam desnecessários.

A conclusão é que as pessoas que se dedicam à pesquisa de motos contínuos estão desperdiçando tempo e dinheiro. Melhor seria se elas colocassem sua inventividade a serviço de causas que possam ser atingidas antes que o Sol se apague.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Mais "confusões elétricas"

Exemplos das confusões que citei no ensaio anterior são fáceis de encontrar na imprensa brasileira. O seguinte texto, a respeito da crise energética que ora atinge o Paraguai, acaba de ser publicado no blog de importante jornalista:

"Além do aumento dos recursos, o acordo prevê a construção dessa linha de transmissão. De acordo com Itaipu, o sistema seria responsável pelo aumento na capacidade de geração de energia para o Paraguai de 1.500 para mais de 2 mil megawatts."

Ora, uma linha de transmissão não pode aumentar (ou diminuir) a capacidade de geração de uma usina, pois a capacidade de geração depende somente da usina em questão. O que será aumentada é capacidade de transmissão. São conceitos diferentes e, para entendê-los, não podemos confundi-los.

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

Apagões e confusões

Pode anotar aí: a cada piscadela de uma lâmpada, a cada oscilação do fornecimento de energia, a cada queda de uma rede local, a cada desligamento programado, surgirá alguém, provavelmente um jornalista, inquirindo uma autoridade do Setor Elétrico sobre a possibilidade de que esse “apagão” seja o indicativo de um futuro racionamento de energia. Talvez a imprensa brasileira esteja levando muito a sério a parábola do “gato escaldado”, pois em 2001 ninguém se preocupava com racionamentos de energia, ninguém fazia essas perguntas, e deu no que deu. Entretanto, imagino ser mais provável estar havendo uma grande confusão conceitual na área energética. O objetivo deste ensaio é desfazer tal confusão, ao menos em parte.

O sistema elétrico brasileiro, como qualquer sistema elétrico de grande porte, é formado por quatro partes: geração, transmissão, distribuição e consumo. De maneira bem geral, a energia elétrica e produzida pelos geradores, é entregue às linhas de transmissão, que percorrem grandes distâncias e, ao chegar perto das cidades, é entregue às redes de distribuição, que a distribuem aos consumidores finais.

Há muitas variações possíveis nessa topologia geração-transmissão-distribuição-consumo. Por exemplo, algumas vezes podemos ter geradores presentes dentro da área da distribuição, formando o que se chama “geração distribuída”, mas não vamos complicar demais as coisas. O fato é que qualquer uma dessas quatro partes (incluindo os consumidores) está sujeita a falhas operacionais e qualquer tipo de falha operacional pode dar origem a uma interrupção de fornecimento, vulgarmente conhecida como “apagão”.

Vamos começar de trás para frente, ou seja, do consumo até a geração. Imagine um grupo de estudantes, moradores de uma República, em uma bela noite de sábado, preparando-se para sair. Todas as luzes da casa estão acesas e todas as televisões, computadores e aparelhos eletrônicos estão ligados. A instalação elétrica está aguentando, mas é da época do Ford Bigode e, sendo assim, nunca se sabe. Alguém está no chuveiro elétrico e outro alguém está ajeitando as madeixas com um secador, também elétrico. De repente, um dos estudantes resolve usar o forninho elétrico para esquentar o “sanduba” que encostará seu estômago antes da noitada. Nesse instante, quando o sistema elétrico já está no limite, um amigo chega e dá o toque final, literalmente, tocando a campainha (que, obviamente, é elétrica). Nesse ponto o disjuntor não aguenta e desarma, apagando as luzes e desligando todo o resto. Enquanto alguns estudantes xingam o Governo Federal, o Governo Estadual, a distribuidora local e os fabricantes de fornos elétricos, um deles (talvez de Engenharia Elétrica) percebe que as luzes dos vizinhos continuam acesas e conclui que o evento foi puramente local. Não há muito a fazer, a não ser desligar alguns equipamentos e voltar a ligar o disjuntor.

É claro que sistemas elétricos residenciais não devem ser projetados e construídos da maneira tão “apertada” descrita acima, mas, ainda assim, esse tipo de interrupção pode ocorrer. Ela pode ser causada, por exemplo, por um curto-circuito em alguma parte da instalação. Nesse caso, não adianta ligar para o presidente de Itaipu, exigindo explicações, e não adianta “tuitar” para seu jornalista preferido, informando que o sistema elétrico nacional está à beira de um colapso, pois a culpa terá sido unicamente sua e do sujeito que projetou a instalação elétrica. Também não adianta entrar em contato com a distribuidora local, exigindo pagamento pelos equipamentos danificados, pois ela não poderá ser responsabilizada nesse caso.

O segundo elo do sistema é o sistema de distribuição e, de certa forma, interrupções na área da distribuidora são mais ou menos como essa causada pelos estudantes do parágrafo acima. Uma das coisas que muda é a maior extensão da área atingida, que pode ser uma ou mais quadras, um ou mais bairros ou até mesmo uma cidade inteira, especialmente no caso de cidades de pequeno e médio portes. Você pode até chamar essas interrupções de “apagões”, mas, pessoalmente, não gosto desse termo. Primeiro, porque ele tem sido usado como um termo geral demais para descrever todos os tipos de interrupção e, como ocorrer com todos os termos gerais demais, acaba por descrever pouco. Segundo, porque esse termo ficou por demais ligado ao racionamento de 2001/2002, mesmo que, a rigor, não tenha havido “apagão” (tudo que houve foi um pedido para que a população economizasse energia, seguido de multa caso o pedido não funcionasse). Ainda assim, cada vez que alguém fala em “apagão”, voltam à memória aquelas cenas do racionamento e muita gente imagina que o caos está novamente à porta.

Interrupções na rede da distribuidora são geralmente acidentais, causadas por postes atingidos por veículos, tempestades, animais tentando se aninhar junto a equipamentos, erros de operação, etc. Em casos excepcionais, a distribuidora pode optar por desligar partes da rede para evitar sobrecarga do sistema. Esses desligamentos não significam falta de energia, mas sim que a energia, embora disponível, não pode ser entregue aos consumidores em determinado período. É isso que tem acontecido, por exemplo, nesse verão gaúcho de 2010. Por causa do elevado consumo de energia elétrica, decorrente dos inúmeros aparelhos de ar condicionado e ventiladores postos em operação, a CEEE-D (Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica) começou a realizar ciclos de desligamentos em diversos bairros de Porto Alegre no início de fevereiro. A cada ciclo, de modo a aliviar a rede, cerca de seis mil consumidores ficaram sem energia por até 10 minutos, enquanto esperneavam e xingavam. Se a rede fosse mais robusta, a energia poderia ter sido entregue sem problemas, pois estava disponível. Porém ,talvez isso não sirva de consolo aos consumidores atingidos, os quais poderão solicitar providências à distribuidora em caso de danos em equipamentos e perda de bens perecíveis.

Interrupções na transmissão, o terceiro elo do sistema, sempre contando de trás para frente, são geralmente muito mais graves. Linhas de transmissão interligam cidades ou regiões e são responsáveis pelo transporte de grandes blocos de energia. Podemos dizer que a transmissão é uma atividade de “atacado”, enquanto a distribuição é uma atividade de “varejo”. Uma interrupção em uma linha de transmissão, portanto, que pode ser causada por tempestades, falhas operacionais e até por sabotagem, pode deixar uma cidade inteira às escuras, ou até mesmo uma região geográfica inteira.

Entre os leigos existe muita confusão entre distribuição e transmissão. Lembremos, por exemplo, da interrupção ocorrida em 10 de novembro último, envolvendo três linhas de transmissão de Furnas. Após a identificação dos circuitos afetados pelo desligamento, um dos quais liga Ivaiporã, no Paraná, e Itaberá, em São Paulo, alguns jornalistas entraram em contato com esses municípios e constataram que a interrupção não havia afetado Itaberá. Esse fato foi então divulgado como um fenômeno muito misterioso. Ora, ocorre que os consumidores finais, especialmente os residenciais, comerciais de baixa potência e rurais, não são atendidos diretamente pelas linhas de transmissão de alta tensão, mas sim pelas redes de distribuição, que operam em tensões comparativamente mais baixas. Assim, não importa se uma linha de transmissão defeituosa passa perto ou longe de uma cidade. O que mais importa, em termos dos efeitos de uma interrupção, é se tal linha tem derivação para as redes de distribuição que atendem a cidade. Caso não tenha, como parece ser o caso de Itaberá, os consumidores dessa cidade poderão não ser afetados diretamente por um desligamento da linha de transmissão, pois recebem energia através de outros circuitos de tensão mais baixa.

No Brasil o critério para se distinguir redes de distribuição de linhas de transmissão é aparentemente simples: se a tensão de operação for igual ou superior a 230 mil volts, o circuito é de transmissão; se a tensão for inferior a 230 mil volts, o circuito é de distribuição. Existem, é claro, casos de fronteira, mas não vamos nos preocupar com eles aqui.

Caso o parágrafo acima tenha parecido muito enigmático, existe um critério menos preciso, mas mais fácil de ser aplicado, para se distinguir distribuição de transmissão: redes de distribuição são compostas por várias linhas curtas e de pequeno porte e são encontradas no meio urbano; linhas de transmissão, por outro lado, são longas, de grande porte e são encontradas no campo e na periferia das cidades. Por causa do grande porte e extensão das obras de transmissão, interrupções desse tipo são mais demoradas e atingem mais consumidores, pois são mais difíceis de serem identificadas e mais difíceis de serem consertadas.

Interrupções de fornecimento também podem ser causadas por geradores, que formam o quarto elo do sistema. Também há entre os leigos certa confusão entre geração e transmissão. Por exemplo, o desligamento de novembro de 2009 iniciou-se em uma linha de transmissão, mas provocou também o desligamento de Itaipu, usina que acabou recebendo a “culpa” inicial pelo evento. Ocorre que Itaipu é uma usina geradora e “apenas” entrega para as linhas de transmissão a energia por ela produzida. O que acontece daí para frente não é de responsabilidade nem de Itaipu nem de qualquer usina. As atividades de geração e de transmissão, embora interligadas e interdependentes, são separadas fisicamente, comercialmente e juridicamente.

A confusão foi provavelmente causada porque Itaipu, tendo sido desligada automaticamente após a interrupção, deixou de gerar energia para o sistema e foi apressadamente identificada como a responsável pelo apagão. De nada ajudou a afirmação de um repórter, transmitindo de Foz do Iguaçu, de que, após o desligamento, os geradores de Itaipu passaram a girar “em falso”. Esse termo dá a impressão de que havia algo de errado com os geradores, quando, na verdade, trata-se de um tipo comum de operação, cujo nome correto é “operação em vazio”. Nessas situações, os geradores permanecem conectados eletricamente ao sistema, de modo a poderem ter a geração rapidamente aumentada quando necessário. No desligamento de novembro não havia para onde Itaipu entregar a energia, pois a linha estava interrompida. Logo, a operação em vazio era a mais recomendada.

É claro que poucos defeitos em linhas de transmissão podem causar o desligamento de geradores, pois o sistema é muito robusto (embora não tão robusto quanto gostaríamos). Interrupções locais, por outro lado, como aquela causada por nossos estudantes festeiros, não causarão danos nem mesmo à subestação da distribuidora local, quanto mais à usina mais próxima. Você pode até tentar derrubar Itaipu provocando um curto-circuito em sua instalação doméstica, mas a probabilidade de que isso ocorra é menor do que a probabilidade de que a seleção de Gana ganhe as três próximas Copas do Mundo.

Outro aspecto da confusão relacionada a interrupções de fornecimento ficou claro com uma pergunta feita algumas vezes pelos jornalistas que cobriram o desligamento de novembro de 2009. Disseram eles: por que as usinas térmicas não entraram em operação logo após o desligamento? Em poucas palavras, a resposta é: porque tais usinas servem para resolver problemas energéticos (falta de água nos reservatórios, por exemplo), não problemas elétricos (interrupções nas linhas de transmissão, por exemplo).

Sendo o sistema elétrico brasileiro maciçamente hidrelétrico, a maior parte de nossa geração de energia depende do regime de chuvas. Após grandes períodos de escassez de chuvas, os reservatórios das hidrelétricas podem ter seus níveis reduzidos e as usinas termelétricas (ou “térmicas”) podem ser convidadas a entrar em operação, funcionando como uma espécie de “seguro anti-racionamento”. Foi isso que aconteceu, por exemplo, em 2001 e também no início de 2008. Todavia, o processo de entrada em operação de tais usinas, em geral movidas a carvão, gás natural ou óleo diesel, é lento e complexo, podendo demorar várias horas. Para que as térmicas funcionassem também como um “seguro anti-interrupção”, entrando instantaneamente em operação ao menor sinal de um desligamento de certo porte, seria necessário deixá-las permanentemente conectadas ao sistema elétrico, consumindo uma quantidade de combustível que, embora diminuta quando comparada ao consumo em operação nominal, resultaria em custos adicionais proibitivos e desnecessários. Em tempos de preocupações com o aquecimento global, tal modalidade de operação seria verdadeiramente criminosa.

Por causa do desligamento de novembro de 2009, e também por causa dos sucessivos recordes de geração elétrica decorrentes das altas temperaturas do início de fevereiro de 2010, ressurgiu em meio à imprensa o questionamento sobre o risco de desabastecimento energético no futuro. Só que interrupções e racionamentos são problemas diferentes e separados. O primeiro é um problema elétrico, geralmente aleatório e de curta duração, enquanto o segundo é um problema energético, mais fácil de ser previsto, mas de longa duração. O primeiro está relacionado com a falta de capacidade de transporte da energia, enquanto o segundo está relacionado com a falta de energia elétrica em si, que é o produto transportado pelas linhas de transmissão e entregue pelas redes de distribuição.

Durante o racionamento de 2001, por exemplo, havia linhas e redes suficientes para atender o sistema, mas não havia energia suficiente. Isso aconteceu, em parte, por causa da falta de água nos reservatórios e, em parte, por causa da insuficiência de obras de geração em operação. Na interrupção de novembro de 2009, por outro lado, havia energia suficiente, mas, durante certo intervalo de tempo, não houve linhas de transmissão para transportá-la.

Finalizo com uma sugestão. O Brasil conta com jornalistas especializados em economia e finanças, em política, em meteorologia, sem falar nas várias pencas de jornalistas especializados em várias modalidades esportivas e em outros assuntos de mínima importância. Por que não podemos contar com alguns poucos jornalistas especializados em energia elétrica? Esse tipo de profissional seria valioso, ajudando os agentes do setor elétrico a agirem de forma técnica em vez de agirem pressionados por uma opinião pública mal informada, temerosa de que qualquer interrupção temporária seja o prelúdio de um racionamento prolongado. Não é uma boa ideia?

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Posfácio

Depois de ter publicado este não muito curto ensaio sobre o setor elétrico, dei-me conta de ter omitido uma importante característica dos sistemas de transmissão, que são os limites de transmissão. Em muitos casos as linhas de transmissão estão funcionando perfeitamente, sem interrupção alguma, mas, por limitações construtivas, não têm capacidade para transmitir toda a energia necesária entre dois subssistemas. É isso que acontece frequentemente, por exemplo, com as linhas de Itaipu e com outras linhas de grande porte. De fato, se os limites de transmissão não existissem, não haveria sentido em se falar em "subssistemas" e, a rigor, haveria apenas um único e gigantesco sistema elétrico no Brasil. Mas essa é outra história e fica para outra vez.