sábado, fevereiro 03, 2007

Apocalypto: o retorno do maia intergaláctico

Advertência: o texto abaixo contém spoilers.

Após assistir Apocalypto (2006), de Mel Gibson, a sensação é de certa decepção. Do pouco que eu havia lido antes, o esperado era um épico passado em meio à civilização maia, que vicejou na América Central entre 250 e 900 dC. O que vi, entretanto, foi pouco mais do que um filme de correria no meio da selva, com um herói maia, provavelmente dotado de poderes sobrenaturais, tentando fugir de seus captores.

A história do herói Jaguar Paw começa com uma caçada em meio à floresta (como todos sabem, o filme é falado em maia yucatec, mas, por alguma razão misteriosa, as legendas em português mantiveram os nomes em inglês dos personagens). A seguir, somos levados até a aldeia maia, que lembra em muito uma aldeia indígena comum em meio à floresta. Nada de civilizações exuberantes por enquanto, nada de pirâmides monumentais. Nesse ponto a narrativa é arrastada e aborrecida, agravada com a necessidade constante da leitura das legendas, que desvia a atenção dos acontecimentos. É interessante que um diretor se empenhe tanto em reconstruir a indumentária e costumes de uma civilização e depois direcione a atenção do espectador para o terço inferior da tela. Em sua defesa, Gibson afirma que a ação do filme é tão frenética que não é preciso entender as palavras para acompanhá-lo. Se fosse assim, por que as personagens deveriam falar, afinal? No início do filme, contudo, a intenção de Gibson deve ser apenas mostrar a harmonia da vida em comunidade da tribo de Jaguar Paw; uma espécie de paraíso, como arriscou a crítica Isabela Boscov [1].

Então, chegam os opressores. Não os espanhóis, mas os maias de uma tribo mais avançada. As cenas que se seguem, de estupros, assassinatos e subjugação, já foram mostradas uma centena de vezes em filmes como “Dança com lobos” (Kevin Costner, 1990), “Coração valente” (Mel Gibson, 1995) e até mesmo “Conan, o Bárbaro (John Milius, 1982). Gibson, como sempre, retrata as cenas com crueldade explícita, mas deixa escapar a primeira imprecisão histórica: não há evidências de que os maias percorressem as selvas em busca de vítimas para serem sacrificadas aos deuses. De qualquer forma, é aí que tem início o sofrimento de Jaguar Paw e seus companheiros. Amarrados e humilhados, eles são conduzidos pelos seus captores em um longo caminho rumo ao sacrifício. Impossível não tecer comparações com “A Paixão de Cristo”, também de Gibson, onde a via-crúcis e o sacrifício de Jesus de Nazaré foram retratados com requintes de sadismo.

No filme, entretanto, os maias não crucificam suas vítimas, mas dão a elas um tratamento muito mais sumário: a extirpação do coração ainda vivo, ato necessário para aplacar a sede dos deuses, que, raivosos, estavam dando pouca atenção às plantações do povo da cidade. Na última hora, um eclipse salva Jaguar Paw do sacrifício.

Para milhões de pessoas no mundo, a impressão final dos maias será a de um povo sanguinário, escravagista, cruel e sádico. Esse aspecto do filme deixou em pânico alguns acadêmicos, especialmente antropólogos e arqueólogos, que afirmam que a civilização maia, embora violenta, era a mais sofisticada das civilizações do Novo Mundo [2]. Em resumo, os maias criaram cidades monumentais e grandes obras de arte, foram astrônomos precisos e não um bando de selvagens assustados com um eclipse solar. Embora correto em alguns aspectos, como o uso de tatuagens, piercings, esculturas em pedra, etc., Apocalypto retrata os maias apenas como um povo bárbaro do Novo Mundo. Para muitos espectadores, a mensagem de Gibson será a de que os maias eram tão cruéis que mereciam morrer.

Para os acadêmicos, o interesse no filme deve acabar com o quase-sacrifício de Jaguar Paw. O que se segue não passa de um filme de ação qualquer. Por causa do eclipse, o sacerdote maia desiste do sacrifício e as vítimas são entregues novamente a seus captores, sendo submetidas a um jogo do tipo “corra tudo o que puder antes que eu o acerte com uma lança”. O herói maia consegue escapar, mas acaba sendo perseguido de maneira obsessiva, tentando retornar para casa com um pedaço de lança enfiado na barriga e recorrendo a todo tipo de truque para escapar do chefe dos captores, cujo filho teve que matar durante a fuga. Uma pessoa normal jamais conseguiria tal feito, mas Jaguar é um tipo especial de maia, talvez um descendente dos “maias intergalácticos” de Lulu Santos.

A correria acaba quando Jaguar Paw e os dois captores restantes chegam à praia e se deparam com os navios espanhóis. Isso é realmente estranho, pois a civilização maia já estava em acentuado declínio em 900 dC, quando as cidades começaram a ser abandonadas. Os espanhóis somente chegaram à península de Yucatán, onde presumivelmente se passa a história, em 1.517 dC. Os maias ainda estavam por lá e, na verdade, resistiram aos espanhóis por 150 anos e resistem aos conquistadores até hoje, mas a civilização e as cidades cerimoniais já haviam desaparecido há séculos. Mais estranho é que Gibson inicie seu filme com uma citação do historiador Will Durant a respeito dos romanos: “Uma grande civilização não pode ser conquistada de fora antes de ter se destruído por dentro”. Aplicada aos romanos, a frase é precisa. Aplicada aos maias, é apenas retórica. Talvez Gibson tenha confundido os maias com os astecas, civilização existente quando da chegada dos espanhóis e dizimada por eles com auxílio de cavalos, armas de ferro e de fogo e, principalmente, da varíola. A propósito, a pequena “menina profeta” que Jaguar Paw e seus colegas encontram a caminho da cidade cerimonial apresenta sinais de varíola, mas essa doença só chegou à América com os espanhóis.

A chegada dos espanhóis no filme serve apenas como um “deus ex machina”, um recurso narrativo banal usado para que Jaguar Paw consiga escapar. Finalmente, o herói consegue salvar sua esposa, que estava escondida em um poço com seus dois filhos, um dois quais havia acabado de nascer dentro do poço que se enchia progressivamente por causa das chuvas incessantes. Mais um feito digno de heróis intergalácticos.

Uma menção final deve ser feita quanto ao título do filme. Gibson diz que “Apocalypto” significa “um novo começo” e é em busca desse novo começo que Jaguar Paw sai no final do filme. Gibson justifica o título dizendo que “para que algo de novo possa começar, algo tem que acabar”. Nesses dias de informação barata e abundante não foi difícil descobrir que “apocalypto” é na verdade um verbo grego que significa “descobrir”, “revelar” e que está mais ligado ao termo “apocalipse”, que significa “revelação”, do que Gibson quer dar a entender. Somente uma mente conturbada é capaz de misturar história maia a profecias bíblicas e querer achar algo de profundo nisso.


[1] BOSCOV, Isabela. Apocalíptico e desintegrado. In: Veja. 24 jan 2007. pp. 102-103. Disponível em < http://veja.abril.com.br/240107/p_102.html>. Acesso: 03 fev 2007.


[2] BOOTH, William. Culture shocker. In: Washington Post. 9 dez 2006. Disponível em < http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/12/08/AR2006120801815.html>. Acesso: 03 fev 2007.

2 comentários:

  1. Anônimo3:11 PM

    A civilização Maia ainda existia quando da chegada dos espanhóis, apesar de estarem sob domínio Asteca, a cultura era uma mescla de Maia e Astecas. Tanto é que hoje em dia o povo maia ainda existe na mesma região da península, falando o idioma que Gibson utiliza no filme.

    A cena do eclipse é soberba por mostrar como os governantes manipulavam o povo utilizando um conhecimento mais avançado do que a população.

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  2. OK, obrigado pelo comentário.

    [ ]s

    Alvaro

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