quinta-feira, fevereiro 15, 2007

O Livre Mercado de Energia Elétrica Brasileiro – Parte I: Introdução

Um fato ainda desconhecido de muitos tomadores de decisão, especialmente em empresas de médio porte, é que uma grande parcela dos consumidores brasileiros de energia elétrica já são livres para escolher de quem irão adquirir energia. Esses consumidores livres surgiram com a reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro, ocorrida a partir da publicação da Lei 9.074/1995, inspirada nas experiências de outros países e que criou também a figura do produtor independente de energia.

Na maior parte dos países que reestruturaram seus setores elétricos, a energia elétrica passou a ser vista como uma commodity negociada em um ambiente competitivo. Para viabilizar a competição e torná-la transparente, é necessário separar essa commodity dos serviços a ela associados (transmissão e distribuição). No Brasil, tal separação foi viabilizada em duas frentes. A primeira delas foi a desverticalização das empresas de energia elétrica, ou seja, a separação dos ativos de geração, transmissão e distribuição nos casos em que eram detidos por uma mesma empresa. Caso contrário, a competição oferecida pelas empresas verticalizadas seria desigual frente aos geradores não verticalizados. A segunda frente foi a separação das antigas tarifas de fornecimento em Tarifas de Uso (TUSD e TUST) e Tarifas de Energia (TE), no caso de consumidores cativos, e em Tarifas de Uso e Preços de Energia, no caso de consumidores livres. Desta forma, o consumidor de energia pode ter uma noção mais precisa dos respectivos valores pagos pelos serviços do sistema e pela energia efetivamente comprada.

Em alguns países, como Inglaterra e Noruega, os preços da energia elétrica variam diariamente em intervalos fixos (15, 30 ou 60 minutos, dependendo do caso) e são definidos pela livre interação entre a oferta e a demanda no curto prazo. Nesse regime, denominado loose pool, o despacho energético (*) é descentralizado e depende das ofertas dos geradores e das condições de carga. A comercialização de energia pode ser feita por meio de contratos bilaterais de longo prazo ou por meio de operações de curto prazo em um mercado spot (**), sujeito aos preços de curto prazo. Note-se que a variação diária de preços não é repassada aos consumidores, a não ser no caso daqueles que decidiram deliberadamente pela exposição aos preços spot. Em geral, o risco do curto prazo é gerenciado e assumido pelos agentes de geração e comercialização.

No Brasil, o consórcio de consultores que deu suporte à primeira rees­truturação do Setor Elétrico Brasileiro, conhecido como Projeto RE-SEB e concluído em 1998, não recomen­dou a livre negociação de energia em um mercado spot e nem o despacho descentralizado da geração [1]. Num regime que os consultores denominaram tight pool, o despacho continua a ser definido centraliza­damente pelo Operador Nacional do Sistema – ONS. O mercado spot existe, mas tem seus preços definidos com base nos cus­tos marginais de curto prazo (ou seja, custos marginais de operação), obtidos por meio de uma cadeia de programas computacionais conhecidos como “modelos de otimização”. Esses preços são atualmente denominados “Preços de Liquidação de Diferenças”, PLD.

O racionamento ocorrido entre 2001 e 2002, a falência fraudulenta da Enron, que atuava também como comercializadora de energia, e o ataque ao World Trade Center afetaram significativamente o ritmo da reestruturação que vinha sendo realizada no Brasil. Junte-se a isso a mudança para um governo brasileiro de centro-esquerda e estava formado um quadro de incertezas a respeito do livre mercado e da atuação de agentes setoriais privados. Tal quadro vigorou entre 2002 e 2004. Apesar de algumas vozes estatizantes dessa época, que viam o consumidor livre como uma falácia, o produtor independente como inconstitucional e as comercializadoras como meros atravessadores [2], a reforma setorial conduzida a partir de 2004 manteve as figuras de tais agentes, bem como o mercado livre.

No modelo atual do Setor Elétrico Brasileiro, os consumidores livres contratam energia junto a geradores ou comercializadoras e pagam pelo acesso à rede por meio de uma tarifa de uso, informalmente conhecida como “pedágio”. A maior parte dos consumidores paga o acesso à rede diretamente ao agente de distribuição local, mas os consumidores conectados em tensões de 230 mil volts ou superiores pagam o acesso à rede aos agentes de transmissão. Os consumidores cativos continuam a existir e são aqueles não qualificados para a migração para o mercado livre, ou então aqueles consumidores qualificados, mas que ainda não efetivaram a migração. Este último caso ocorre basicamente por três razões: (a) contratos cativos ainda não vencidos; (b) falta de conhecimento da existência do mercado livre ou; (c) falta de viabilidade em se migrar para a modalidade livre.

A estrutura atual do Setor Elétrico Brasileiro é regulada pela Lei 10.848/2004, pelo Decreto 5.163/2994 e legislação acessória. Os principais agentes setoriais são:

- Ministério das Minas e Energias - MME (www.mme.gov.br): detém o poder concedente.
- Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL (www.aneel.gov.br): detém os poderes regulador e fiscalizador.
- Operador Nacional do Sistema - ONS (www.ons.com.br): responsável pela operação física do sistema e pelo despacho energético centralizado.

- Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE (www.ccee.org.br): responsável pela operação comercial do sistema.

A comercialização de energia elétrica é atualmente realizada em dois ambientes diferentes:

- Ambiente de Contratação Livre (ACL): destinado ao atendimento de consumidores livres por meio de contratos bilaterais firmados com produtores independentes de energia, agentes comercializadores ou geradores estatais. Estes últimos só podem fazer suas ofertas por meio de leilões públicos.

- Ambiente de Contratação Regulada (ACR): destinado ao atendimento de consumidores cativos por meio das distribuidoras, sendo estas supridas por geradores estatais ou independentes que vendem energia em leilões públicos anuais.

Esse modelo híbrido, simultaneamente estatal e liberal, inédito no mundo, foi a maneira encontrada pelo governo atual para dar vazão à sua ideologia de planejamento centralizado e controle estatal, ao mesmo tempo em que respeitava as regras e contratos estabelecidos no modelo do governo anterior, inspirado no modelo liberal inglês.

A CCEE é responsável pela liquidação das operações do ACL e pela operacionalização de alguns aspectos do ACR, como os leilões de energia e o MCSD (Mecanismo de Compensação de Sobras e Déficits).

Todos os agentes de geração e consumo que desejem comercializar energia no ACL devem registrar seus contratos mensais de maneira eletrônica, por meio de uma ferramenta computacional conhecida como SINERCOM. Os consumidores livres devem obrigatoriamente se tornar agentes da CCEE, assim como os geradores com potência instalada acima de 50MW. Geradores com potência abaixo de 50MW podem ser representados na CCEE por meio de outro agente (um comercializador, por exemplo).

A CCEE determina e publica semanalmente os Preços de Liquidação de Diferenças, PLD. Ao final do mês, após o registro e validação de todos os contratos, a CCEE usa os PLDs para liquidar as operações de compra e venda de energia, alocando sobras e déficits energéticos aos agentes adequados. Os PLDs são calculados individualmente para cada um dos quatro submercados existentes (Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Norte e Nordeste). Adicionalmente, as penalidades, em caso de déficit energético (consumo superior à energia contratada), são calculadas por meio do Valor Anual de Referência, VR. Para o ano de 2007, o VR foi fixado em R$ 77,70/MWh e corresponde ao preço máximo da energia vendida nos leilões de empreendimentos existentes do ACR, realizados em 2004, com entrega em 2007 [3].

Vale a ressalva de que o termo “déficit energético” diz respeito somente a uma falta de energia contratada em determinado período. Na operação física do sistema, excetuando-se condições de racionamento ou de interrupção acidental de fornecimento, nenhum consumidor adimplente deixa de ter suas necessidades energéticas atendidas.

A existência de um Ambiente de Contratação Livre permite a interação adequada e competitiva entre consumidores livres e fornecedores de energia. Já existem mais de 500 consumidores livres no Brasil, a maioria deles de grande e médio porte, pertencentes ao setor industrial e somando mais de 25% do consumo nacional. Contudo, nem todo consumidor de energia pode se tornar livre. Esse é o assunto do nosso próximo artigo.

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(*) “Despacho” é um termo usado internacionalmente para caracterizar a entrega de energia ou potência por parte de um gerador.

(**) O termo “mercado spot” tem, no setor elétrico, o mesmo significado daquele do mercado de commodities convencionais: um mercado onde as transações são feitas com pagamento a vista e entrega no curto prazo. No Brasil, devido a características particulares do processo de comercialização, o curto prazo é definido como um mês.

[1] BORN, P.H.; ALMEIDA, A.A. Mudanças estruturais no setor elétrico: formação e regulação de preços. CIER/SUPLAMA, 1998.

[2] SAUER, I et al. Um novo modelo para o setor elétrico brasileiro, Programa Interunidades de Pós-graduação em Energia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2002.

[3] BRASIL. ANEEL. Boletim Energia. n. 243. outubro 2006. Disponível: http://www.aneel.gov.br/arquivos/PDF/boletim243.htm. Acesso : 15 de fev 2007.

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