sábado, agosto 12, 2006

Newton da Costa no "Café com Ciência"

O matemático e filósofo Newton da Costa esteve em Curitiba no último dia 9/8 para participar do projeto Cáfé com Ciência do SESC da Esquina. O título da palestra era para ser "23 problemas abertos da matemática" (os problemas de Hilbert), mas da Costa acabou falando sobre filosofia do conhecimento científico, pois achou o tema original árido demais para uma audiência diversificada. Foi melhor assim, pois nem mesmo haveria tempo suficiente para falar detalhadamente sobre os 23 problemas de Hilbert.

Newton Carneiro Affonso da Costa nasceu em Curitiba, em 1929, e graduou-se em engenharia civil e em matemática pela Universidade Federal do Paraná. Seu reconhecimento internacional veio a partir de 1974, com a publicação do artigo "On the theory of inconsistent formal systems", que o lançou como um dos fundadores da lógica paraconsistente.

A lógica clássica, lembremos, não admite contradições. Dadas duas proposições contraditórias, qualquer proposição do sistema pode ser deduzida e este se torna trivial. Newton da Costa mostrou que é possível construir sistemas formais onde podem existir contradições sem que o sistema se torne trivial. Segundo muitos, o surgimento da lógica paraconsistente e de outras lógicas não clássicas representa uma revolução comparável à das geometrias não euclidianas no século XIX. Outros trabalhos de da Costa relacionam-se ao conceito de "quase verdade", à axiomatização das teorias da física (sexto problema de Hilbert) e, mais recentemente, ao problema P=NP, que é um dos "problemas do milhão".

Na palestra da última quarta-feira, da Costa procurou conceituar o conhecimento científico, principiando por dizer que conhecimento é uma crença justificável e que não pode ser confundido com opinião. Contudo, as dimensões dedutiva e indutiva não são suficientes, pois a crítica é fundamental em ciência, devendo ser exercitada diariamente. Nenhuma verdade é definitiva e, se um determinado corpo de conhecimentos não se expõe à crítica, não pode ser considerado científico.

Em uma das perguntas ao final da palestra, fez-se menção ao critério da refutação (ou falseabilidade) de Popper, segundo o qual uma teoria só pode ser considerada científica se puder ser experimentalmente refutada. Nesse ponto, da Costa disse não concordar totalmente com Popper, pois, segundo ele, existiriam teorias não científicas que podem ser refutadas, e citou a astrologia. Imagino que da Costa seja otimista demais em relação aos astrólogos, por razões que passarei a discutir brevemente.

A teoria da relatividade geral foi publicada por Albert Einstein em 1915. Dentre outras coisas, essa teoria prevê que os raios de luz devem se curvar ao passar perto de um corpo pesado, e Einstein foi capaz de calcular o ângulo de deflexão. Se a previsão estivesse errada, todo o edifício teórico da relatividade geral desabaria, sem possibilidade de reparo. Em tal situação, seria até preferível continuar usando a gravitação newtoniana, que prevê uma deflexão menor, mas que é uma teoria muito mais simples. Contudo, em 1919 algumas expedições organizadas por Sir Arthur Eddington aproveitaram um eclipse solar para observar a deflexão da luz das estrelas ao passar perto do sol. Apesar da incerteza experimental, os resultados se mostraram mais de acordo com a relatividade geral do que com a gravitação newtoniana. A teoria einsteiniana sobreviveu a esse experimento crucial e a muitos outros desde então, mas isso não significa que venha sobreviver a todos os testes futuros. Como disse o próprio Einstein, em 1922:

"O cientista teórico não deve ser invejado, pois a Natureza, ou, mais precisamente, o experimento, é um juiz inexorável e não muito cordial de seu trabalho. Ele nunca diz "Sim" a uma teoria. Nos casos mais favoráveis, ele diz "Talvez" e, na grande maioria dos casos, simplesmente "Não". Se um experimento concorda com uma teoria, isto significa, para esta, "Talvez", e se não concorda, "Não". Provavelmente, toda teoria algum dia experimentará o seu "Não" - a maioria das teorias, logo após sua concepção." (H. DUKAS; B. HOFFMANN, Albert Einstein: o lado humano, 1979, p. 19).

As boas teorias da física não permitem remendos: uma vez que não concorde com o experimento, a teoria desaba irremediavelmente. O mesmo não acontece com a astrologia, que usa remendos em profusão. É nesse sentido, imagino, que a astrologia deve ser considerada irrefutável, pois a teoria sempre pode ser modificada de maneira a se ajustar aos fatos.

Newton da Costa é mais otimista e argumenta que a astrologia pode ser refutada por meio de experimentos cuidadosamente projetados. Os astrólogos, contudo, são incansáveis e muito imaginativos. Se inquiridos, muitos deles argumentarão que existem provas abundantes a favor da astrologia e lançarão mão de dados históricos mostrando correlações entre configurações celstes e acontecimentos terrestres. Outros dirão que a astrologia existe há milhares de anos, incorrendo em uma falácia clássica conhecida como "argumento da antigüidade" (se é antigo e ainda existe, deve estar correto). Finalmente, muitos deles, ao serem confrontados com falhas em previsões astrológicas, lembrarão do remendo astrológico definitivo e dirão que "os astros impelem, mas não compelem".

É claro que, se a astrologia pode ser refutada ou não, tudo depende do significado que se dê ao termo "refutar". Se por isso entendemos a elaboração de um conjunto de experimentos que mostrem à comunidade científica internacional que os princípios astrológicos não são válidos, então a astrologia pode ser refutada. Isso, de fato, já foi feito mais de uma vez. Por outro lado, se por "refutar a astrologia" entendemos "convencer os astrólogos, imagino que isso jamais acontecerá. Da experiência que tenho com astrólogos, eles jamais aceitarão qualquer prova. É claro que isso somente mostra que a astrologia é imune a críticas e, assim sendo, não é ciência. QED.

Newton da Costa também lembra que não é possível justificar logicamente todas as nossas crenças, pois sempre existe um conjunto de crenças primitivas assumidas anteriormente. A maioria das pessoas não se dá conta de tais crenças primitivas e as tem como embutidas no funcionamento do universo. A ciência é o único ramo do conhecimento humano que invoca a crítica constante como maneira de verificar a validade de qualquer crença, primitiva ou não. Nessa singela característica reside sua enorme importância.

O contato com cientistas como Newton da Costa é sempre estimulante. Na voz dele, até mesmo afirmações aparentemente triviais, como "algumas pessoas são mais inteligentes do que outras", se revestem de um significado especial. É fascinante que ele, em uma idade na qual muitos brasileiros já se aposentaram há muito, continue escrevendo e participando de congressos e eventos científicos. Que isso sirva de exemplo a todos nós.

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