Hoje sou americano, hoje sou muçulmano
Fiquei sabendo sobre o ataque aos Estados Unidos quando o primeiro avião atingiu o World Trade Center. Eu estava no escritório de um cliente, trabalhando ao computador e conectado à Internet por meio de uma rede de alta velocidade. O escritório praticamente parou à medida que as notícias iam se sucedendo. Primeiro um avião, depois outro, depois o Pentágono, o avião da Pensilvânia, a paralisação da Bolsa de Valores de São Paulo, a queda dos prédios, etc. Tudo trasmitido em alta velocidade.
Fora a tragédia em si, alguns fatos me preocuparam bastante desde aquela terçafeira. Primeiro, as crescentes manifestações apocalípticas e a referência a uma possível Terceira Guerra Mundial. Há que se descontar um certo grau de histeria e ansiedade, mas, a certa altura daquele dia, pareceu que todos os jornalistas haviam "pirado". Gente tida como séria falando de Armagedon não é uma cena boa de se ver. Até mesmo agora, depois que a poeira baixou um pouco, o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo, publicado na última página da revista Veja de 19 de setembro, faz menção sobre "ninguém ter dúvidas de que se trata da Terceira Guerra". Bem, eu tenho.
Nossa cultura ocidental é fortemente apocalíptica e as raízes de tal cultura quase se perdem no tempo. Seria necessário recorrer ao persa Zaratustra, criador da primeira religião onde se menciona a idéia de juízo final, para compreender tal cultura. O que se pretende, com a pregação de idéias apocalípticas, é simplesmente fazer uma "reengenharia na humanidade". A idéia é mais ou menos a seguinte: a humanidade que está aí é má e corrupta, sendo necessário substituí-la por outra, o que somente seria possível por meio de uma grande guerra, da intervenção divina, ou de ambos. Nada mais ilusório. Estamos condenados à nossa humanidade e nenhuma reengenharia irá mudar tal fato.
Quanto à Terceira Guerra Mundial, o próprio conceito é ultrapassado. As duas grandes guerras que tivemos até hoje foram travadas entre as grandes nações do globo, por isso foram mundiais. A noção de que poderia haver uma Terceira Guerra se deve ao período da Guerra Fria, quando o mundo era polarizado entre EUA e URSS. Hoje, com o desmantelamento da URSS e com a redução da Rússia a uma insignificância, o conceito de Guerra Mundial perdeu o sentido, ao menos enquanto não mexerem com a China. No momento não é este o caso e não haverá uma guerra mundial simplesmente porque não há contra quem declarar guerra.
O segundo fato que me preocupou foi a velha afirmação, pisada e repisada, de que a vítima mereceu o crime. A velha retórica antiamericanista de sempre, espalhada por dezenas de websites, salas de bate-papo e fóruns eletrônicos. Em meio à mesmice, encontrei um artigo de Contardo Caligaris, psicanalista e colunista da Folha de São Paulo com quem raramente concordo, que desvenda o mistério: "... atribuímos aos EUA as características que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos... Graças a esse artifício, podemos freqüentá-los dando livre curso ao nosso desejo de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que sejam um mal da cultura americana". Assim, o antiamericanismo é apenas um mecanismo de defesa engendrado com o objetivo de disfarçar o fato indigesto de que todos somos americanos e nos comportamos como eles. Especialmente hoje, também sou americano, pois o ataque aos EUA não foi somente um ataque a prédios e pessoas, mas sim um ataque à nossa cultura ocidental e a todos os nossos modelos mentais, construídos com sacrifício e assentados sobre as noções de respeito aos direitos civis, à liberdade e à individualidade.
O terceiro fato que me preocupou foi uma grande confusão entre o que é ser árabe, o que é ser palestino e o que é ser muçulmano. Na mente de várias pessoas, árabes e descendentes de árabes se tornaram imediatamente assassinos, como se todo americano branco, anglo-saxão e protestante (os WASPs) fosse membro da Ku Klux Klan. Árabe é somente quem nasce na Península Arábica, e mais ninguém. Chamar os palestinos de árabes seria o mesmo que chamar um brasileiro de português, só porque falamos a mesma língua. Finalmente, muçulmanos são os praticantes de uma das religiões que mais cresce no mundo, o islamismo, criado por Mohammad (traduzido incorretamente como Maomé) por volta de 600 d.C., e que já conta com cerca de 1,2 bilhão de seguidores. Tal religião, cujo livro sagrado é o Corão, baseia-se nos ideais de paz, misericórdia e perdão tanto quanto o cristianismo e o judaísmo, mas, sendo uma religião, pode ser distorcida da mesma forma que o cristianismo o foi para promover as Cruzadas e torturar pessoas durante a Inquisição. Um dos versículos do Corão, felizmente bastante citado ultimamente, diz: "Matar uma pessoa significa matar toda a humanidade e salvar uma pessoa significa salvar toda a humanidade". Ora, isso não é nada mais do que um preceito cristão! Contudo, em todas as religiões existem radicais e extremistas e foram eles que atacaram o World Trade Center e o Pentágono. O mundo muçulmano reprovou o atentado, assim como representantes de todas as outras religiões. É por isso que, hoje, também sou muçulmano.
Infelizmente, os conceitos de respeito aos direitos civis, à liberdade e à individualidade não existem nos países muçulmanos. Eles ainda não chegaram lá, mas não há razão para supor que não irão chegar. Não existe nada na religião islâmica que impeça o progresso social e científico. Mais que isso, o Islã até mesmo assegura direitos sociais e econômicos iguais para homens e mulheres, inclusive direito à educação, à expressão e ao voto. As raízes do atraso devem, assim, ser buscadas em outras áreas que não a religiosa.
É uma pena, mas o isolacionismo em que ainda vivem os países do Islã é prejudicial a todos. Eles perdem porque não podem compartilhar da cultura ocidental. Nós perdemos porque não podemos compartilhar de uma cultura vastíssima, que nos deu a Química, a Astronomia, a Álgebra (para desespero de alguns), algumas das mais belas construções arquitetônicas, preservou e traduziu para o árabe boa parte dos antigos manuscritos gregos e introduziu a pizza na Europa (sim, a pizza foi inventada no antigo Egito, mas entrou na Europa como uma modificação da sfiha árabe!).
Da minha parte, sempre tento colocar as coisas dentro do que eu chamo de "perspectiva do alienígena". Tento imaginar como é ser a outra pessoa, como é ter nascido e crescido em outro país, como é compartilhar de crenças e valores que me são totalmente alienígenas. A internet é fantástica nesse aspecto. Com ajuda dela, até mesmo aprendi algumas palavras em árabe e em chinês. Recentemente, descobri que o nome oficial da "perspectiva do alienígena" é "relativismo cultural", uma teoria formulada na década de 30 pelo antropólogo Melville Jean Herkovitz que afirma que nenhuma cultura é superior a outra. Embora seja uma teoria sociológica, difícil de ser comprovada "experimentalmente", duvido que muita gente discorde dela. É certo que o momento é dos guerreiros, mas, passado tudo isso, deveremos voltar a encarar o fato de que precisamos entender nossas diferenças para continuar vivendo no planeta. A perspectiva do alienígena é uma receita difícil de ser aplicada, exigindo dedicação, educação e persistência, mas pode salvar o mundo.
Fora a tragédia em si, alguns fatos me preocuparam bastante desde aquela terçafeira. Primeiro, as crescentes manifestações apocalípticas e a referência a uma possível Terceira Guerra Mundial. Há que se descontar um certo grau de histeria e ansiedade, mas, a certa altura daquele dia, pareceu que todos os jornalistas haviam "pirado". Gente tida como séria falando de Armagedon não é uma cena boa de se ver. Até mesmo agora, depois que a poeira baixou um pouco, o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo, publicado na última página da revista Veja de 19 de setembro, faz menção sobre "ninguém ter dúvidas de que se trata da Terceira Guerra". Bem, eu tenho.
Nossa cultura ocidental é fortemente apocalíptica e as raízes de tal cultura quase se perdem no tempo. Seria necessário recorrer ao persa Zaratustra, criador da primeira religião onde se menciona a idéia de juízo final, para compreender tal cultura. O que se pretende, com a pregação de idéias apocalípticas, é simplesmente fazer uma "reengenharia na humanidade". A idéia é mais ou menos a seguinte: a humanidade que está aí é má e corrupta, sendo necessário substituí-la por outra, o que somente seria possível por meio de uma grande guerra, da intervenção divina, ou de ambos. Nada mais ilusório. Estamos condenados à nossa humanidade e nenhuma reengenharia irá mudar tal fato.
Quanto à Terceira Guerra Mundial, o próprio conceito é ultrapassado. As duas grandes guerras que tivemos até hoje foram travadas entre as grandes nações do globo, por isso foram mundiais. A noção de que poderia haver uma Terceira Guerra se deve ao período da Guerra Fria, quando o mundo era polarizado entre EUA e URSS. Hoje, com o desmantelamento da URSS e com a redução da Rússia a uma insignificância, o conceito de Guerra Mundial perdeu o sentido, ao menos enquanto não mexerem com a China. No momento não é este o caso e não haverá uma guerra mundial simplesmente porque não há contra quem declarar guerra.
O segundo fato que me preocupou foi a velha afirmação, pisada e repisada, de que a vítima mereceu o crime. A velha retórica antiamericanista de sempre, espalhada por dezenas de websites, salas de bate-papo e fóruns eletrônicos. Em meio à mesmice, encontrei um artigo de Contardo Caligaris, psicanalista e colunista da Folha de São Paulo com quem raramente concordo, que desvenda o mistério: "... atribuímos aos EUA as características que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos... Graças a esse artifício, podemos freqüentá-los dando livre curso ao nosso desejo de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que sejam um mal da cultura americana". Assim, o antiamericanismo é apenas um mecanismo de defesa engendrado com o objetivo de disfarçar o fato indigesto de que todos somos americanos e nos comportamos como eles. Especialmente hoje, também sou americano, pois o ataque aos EUA não foi somente um ataque a prédios e pessoas, mas sim um ataque à nossa cultura ocidental e a todos os nossos modelos mentais, construídos com sacrifício e assentados sobre as noções de respeito aos direitos civis, à liberdade e à individualidade.
O terceiro fato que me preocupou foi uma grande confusão entre o que é ser árabe, o que é ser palestino e o que é ser muçulmano. Na mente de várias pessoas, árabes e descendentes de árabes se tornaram imediatamente assassinos, como se todo americano branco, anglo-saxão e protestante (os WASPs) fosse membro da Ku Klux Klan. Árabe é somente quem nasce na Península Arábica, e mais ninguém. Chamar os palestinos de árabes seria o mesmo que chamar um brasileiro de português, só porque falamos a mesma língua. Finalmente, muçulmanos são os praticantes de uma das religiões que mais cresce no mundo, o islamismo, criado por Mohammad (traduzido incorretamente como Maomé) por volta de 600 d.C., e que já conta com cerca de 1,2 bilhão de seguidores. Tal religião, cujo livro sagrado é o Corão, baseia-se nos ideais de paz, misericórdia e perdão tanto quanto o cristianismo e o judaísmo, mas, sendo uma religião, pode ser distorcida da mesma forma que o cristianismo o foi para promover as Cruzadas e torturar pessoas durante a Inquisição. Um dos versículos do Corão, felizmente bastante citado ultimamente, diz: "Matar uma pessoa significa matar toda a humanidade e salvar uma pessoa significa salvar toda a humanidade". Ora, isso não é nada mais do que um preceito cristão! Contudo, em todas as religiões existem radicais e extremistas e foram eles que atacaram o World Trade Center e o Pentágono. O mundo muçulmano reprovou o atentado, assim como representantes de todas as outras religiões. É por isso que, hoje, também sou muçulmano.
Infelizmente, os conceitos de respeito aos direitos civis, à liberdade e à individualidade não existem nos países muçulmanos. Eles ainda não chegaram lá, mas não há razão para supor que não irão chegar. Não existe nada na religião islâmica que impeça o progresso social e científico. Mais que isso, o Islã até mesmo assegura direitos sociais e econômicos iguais para homens e mulheres, inclusive direito à educação, à expressão e ao voto. As raízes do atraso devem, assim, ser buscadas em outras áreas que não a religiosa.
É uma pena, mas o isolacionismo em que ainda vivem os países do Islã é prejudicial a todos. Eles perdem porque não podem compartilhar da cultura ocidental. Nós perdemos porque não podemos compartilhar de uma cultura vastíssima, que nos deu a Química, a Astronomia, a Álgebra (para desespero de alguns), algumas das mais belas construções arquitetônicas, preservou e traduziu para o árabe boa parte dos antigos manuscritos gregos e introduziu a pizza na Europa (sim, a pizza foi inventada no antigo Egito, mas entrou na Europa como uma modificação da sfiha árabe!).
Da minha parte, sempre tento colocar as coisas dentro do que eu chamo de "perspectiva do alienígena". Tento imaginar como é ser a outra pessoa, como é ter nascido e crescido em outro país, como é compartilhar de crenças e valores que me são totalmente alienígenas. A internet é fantástica nesse aspecto. Com ajuda dela, até mesmo aprendi algumas palavras em árabe e em chinês. Recentemente, descobri que o nome oficial da "perspectiva do alienígena" é "relativismo cultural", uma teoria formulada na década de 30 pelo antropólogo Melville Jean Herkovitz que afirma que nenhuma cultura é superior a outra. Embora seja uma teoria sociológica, difícil de ser comprovada "experimentalmente", duvido que muita gente discorde dela. É certo que o momento é dos guerreiros, mas, passado tudo isso, deveremos voltar a encarar o fato de que precisamos entender nossas diferenças para continuar vivendo no planeta. A perspectiva do alienígena é uma receita difícil de ser aplicada, exigindo dedicação, educação e persistência, mas pode salvar o mundo.
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