quinta-feira, setembro 12, 2019

Os 90 anos de Newton C. A. da Costa

Neste mês o professor Newton da Costa celebra seu 90° ano de vida. Curitibano de nascença e dono de um enorme currículo nas áreas de filosofia e lógica matemática, ele lecionou na UFPR, na Unicamp e na USP até sua aposentadoria, vindo a seguir ocupar a cadeira de professor visitante na UFSC. Ele calcula também que suas estadas no exterior, como professor visitante, devem somar pelo menos uma década, em países como Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Austrália, México e Argentina e outros.

Tive a honra de conhecê-lo bem no início da minha vida de estudante do curso de Engenharia Industrial Elétrica do antigo CEFET-PR, hoje UTFPR, quando eu era monitor do Departamento de Matemática. Naquela época o professor Décio Krause estava cursando doutorado na USP. Depois de algum tempo, ele deve ter percebido que eu estava realmente interessado em matemática e física e me convidou para assistir algumas palestras do professor Newton.

Não me lembro exatamente da ordem daquelas palestras (isso foi há mais de 30 anos!), mas a primeira deve ter sido no CEFET-PR, várias outras na UFPR, um curso no Instituto de Estudos Avançados da USP e um seminário da Sociedade Paranaense de Matemática. Algumas outras palestras foram com o próprio professor Décio e uma outra com o professor Francisco Antônio de Moraes Accioli Dória, grande colaborador do professor Newton.

Para um estudante de engenharia, que imaginava que o nível mais avançado da matemática estava no cálculo diferencial e integral e que o nível mais avançado da lógica estava na álgebra booleana, utilizada em eletrônica digital, aquela enxurrada de conhecimento foi quase capaz de torcer meus miolos. Mas é exatamente isso que o professor Newton diz querer:  "A finalidade do professor não é transmitir certezas. Minha finalidade é criar caso, é embrulhar o caco da pessoa, é fazer com que ela pense criticamente por si mesma" [1]. Seus alunos também dizem que ele costuma iniciar algumas de suas palestras dizendo: "Vim aqui jogar a serpente no paraíso de vocês".

A criação mais famosa do professor Newton é a lógica paraconsistente, desenvolvida de maneira simultânea e independente pelo lógico polonês Stanisław Jaśkowski (1906-1965). O termo "paraconsistente" foi cunhado somente em 1976 pelo filósofo peruano Francisco Miró Quesada [2].

A lógica desenvolveu-se como o estudo das formas válidas de inferência (estudo da argumentação), mas, até a segunda metade do século 19, nunca havia acompanhado os desenvolvimentos da matemática. A partir de então a lógica começou a se transformar em uma disciplina essencialmente matemática, hoje ensinada nos cursos de matemática e nos cursos de engenharia elétrica e computacional.

A lógica clássica (ou tradicional) é a mãe das outras lógicas e baseia-se em uma série de princípios. Dentre os mais conhecidos estão:
  1. Princípio da identidade: todo objeto é igual a si mesmo.
  2. Princípio do terceiro excluído: dentre duas proposições contraditórias, uma delas é verdadeira (não há terceira possibilidade).
  3. Princípio da não-contradição: dentre duas proposições contraditórias, uma delas é falsa.
  4. Princípio da identidade proposicional: "uma vez verdadeiro, sempre verdadeiro; uma vez falso, sempre falso" (Russel).
Dentre as lógicas que se desenvolveram a partir da lógica clássica estão, por exemplo, a lógica modal clássica, a lógica clássica da ação, as lógicas intencionais clássicas, a lógica indutiva clássica, as lógicas paracompletas, as lógicas quânticas, as lógicas relevantes,  as lógicas paraconsistentes, etc. Além disso, qualquer estudante de Inteligência Artificial deve entender um pouco de lógica difusa (fuzzy) [2].

A lógica paraconsistente é uma lógica não-clássica que derroga o princípio da não-contradição. Se uma lógica contém alguma inconsistência, ela se torna trivial, ou seja, a partir de uma contradição, qualquer coisa segue. A característica definidora de uma lógica paraconsistente é que ela rejeita esse "princípio da explosão". O resultado é que as lógicas paraconsistentes, ao contrário das lógicas clássicas, podem ser usadas para formalizar teorias inconsistentes, mas não triviais.

Mesmo tendo origens puramente teóricas, as lógicas paraconsistentes encontram hoje aplicações em vários campos, tais como mecânica quântica, relatividade geral, inteligência artificial, engenharia de produção, controle de tráfego, robótica e até mesmo em ciências humanas, como a economia.

É esse o espírito da pesquisa acadêmica: ninguém sabe o que pode surgir. Talvez uma tese seja defendida e nunca mais citada, mas talvez se transforme em uma cornucópia. Nesse aspecto o professor Newton cita Jawaharlal Nehru, ex-primeiro ministro da Índia, para quem seu país era "tão subdesenvolvido que não podia se dar ao luxo de não apoiar a pesquisa básica em todos os setores". É por isso que a pesquisa não pode deixar de ser incentivada.

Outra paixão do professor Newton são os fundamentos da ciência, especialmente da física. Ele diz, por exemplo, que "a matemática e a lógica são apenas ferramentas para se entender o que é o conhecimento científico". A física pode ser entendida como uma série de teorias bem-sucedidas em suas respectivas áreas de aplicação, mas incompatíveis entre si. Um exemplo é o da física do plasma, que encontra várias aplicações e envolve outras três teorias: a mecânica clássica, o eletromagnetismo e a teoria quântica, todas elas incompatíveis aos pares. O professor Newton diz que não haverá solução para tais incompatibilidades a não ser que a lógica subjacente às teorias (que é sempre a lógica clássica) seja alterada [3].

Depois da minha formatura encontrei o professor Newton somente uma vez, quando ele veio a Curitiba fazer uma palestra sobre filosofia da ciência. Contudo, depois que você é picado pela serpente, fica muito mais difícil respeitar a ordem unida, fica muito mais difícil participar de embustes coletivos, mesmo quando reforçados pela participação de "famosos". A vida em si fica muito mais difícil, mas frequentemente mais divertida.

Referências:
1. Newton C. A. da Costa, "A lógica da física", palestra, 2009.
2. Newton C. A. da Costa et al., "Lógica Paraconsistente Aplicada", Editora Atlas, 1999
3. Neldson Marcolin, "Newton da Costa: Passion and contradiction", Pesquisa FAPESP, 2008

segunda-feira, setembro 02, 2019

Yesterday, o filme

"Yesterday" (2019) é um daqueles filmes de realidade alternativa nos quais um mundo diferente é produzido por seres extraterrestres, por um "evento quântico" ou simplesmente por algo que não é explicado. Alguns críticos podem dizer que esse enredo não é nem um pouco original, mas, quando se trata dos Beatles, ou da ausência deles, esse deslize é facilmente perdoado.

Na realidade alternativa de "Yesterday", George Harrison, o mais novo dos Beatles, teria 76 anos e Ringo Starr, o mais velho, teria 79. Talvez eles até existam individualmente no filme, mas os Beatles nunca existiram, a não ser para Jack Malik, um cantor de boteco que desiste de sua carreira pouco antes de um apagão mundial, durante o qual ele é atropelado por um ônibus. Ao acordar em uma cama de hospital, ele descobre que, felizmente,  sua bicicleta ficou muito pior do que ele, apesar da falta de dois de seus dentes.

Depois de se recuperar, a primeira canção que ele toca a três de seus amigos é Yesterday, aproveitando para estrear o violão que sua "quase namorada" e empresária amadora lhe dá de presente. Todos ficam emocionados, mas nenhum deles conhece a canção.

Ao voltar para casa, Jack faz algumas pesquisas e descobre que os Beatles não existem nesse mundo (e nem o Oasis, por exemplo), embora os Stones existam. O filme também faz outras brincadeiras com coisas que teriam deixado de existir em um mundo sem os Beatles, algumas delas que muito provavelmente continuariam existindo e foram apenas um exagero dos roteiristas, mas das quais ninguém sentiria falta, como os cigarros, por exemplo.

Daí em diante o filme é uma espécie de montanha russa, na qual Jack se apropria das canções dos Beatles para alcançar sucesso em nível mundial e começa a se apavorar com isso. E, da mesma forma que o final de uma montanha russa é quase sempre previsível, o espectador também tem quase certeza de que os roteiristas usarão um final ao estilo “Deus ex machina” tão ao gosto de Hollywood: ou o personagem principal acordará e descobrirá que foi tudo um sonho ou então sofrerá outro acidente e tudo voltará ao normal, com ele e sua empresária mais amadurecidos e finalmente apaixonados. Felizmente nenhum desses finais é usado, o que fez os críticos do Rotten Tomatoes, por exemplo, concluírem que:

"Yesterday pode ficar aquém do esperado, mas o resultado final ainda é uma fantasia docemente encantadora com uma intrigante – embora um pouco subexplorada – premissa.”

Na minha opinião essa fantasia é tão doce que, ao menos durante a seção em que eu fui, era possível ouvir choros aqui e lá. Esses seres humanos são realmente muito estranhos.

E é isso que torna o filme imperdível.

Cuidado, spoiler abaixo!

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Um crítico mais duro poderia dizer que um filme que se encerra com o personagem principal e sua amada vivendo uma vida de Desmond e Molly, embora com ele provavelmente falido, não é nada mais do que uma comédia romântica. Mas um filme no qual o único dos Beatles a aparecer é um John Lennon aos 78 anos, vivendo uma pacata vida de artista plástico, é certamente imperdível!