sábado, julho 28, 2007

Yahoo! Respostas: um Orkut um pouco mais inteligente

Resolvi entrar no Yahoo! Respostas [1] como forma de ajudar a divulgar o meu blog, conforme sugestão do blogueiro Cadu de Castro Alves [2]. Segundo ele, o Yahoo Respostas (*) nada mais é do que um grande fórum, que pode trazer vários benefícios ao blogueiro. Descobri que ele tem razão, pelo menos quanto à primeira parte. Quanto à segunda, minha participação no sistema ainda não é suficiente para saber.

O serviço foi fundado em dezembro de 2005. Menos de 12 meses depois já se encontravam cadastradas mais de 7 milhões de perguntas e 65 milhões de respostas. Os usuários são atraídos pela facilidade de uso, pelo caráter inovador do sistema e pela promessa de prêmios futuros (os quais, no momento, inexistem). O Yahoo Respostas está atualmente presente em 26 países, inclusive Brasil e 12 países asiáticos. Curiosamente, há duas versões para o Canadá: uma para Quebec e outra para o “resto” do país. Na América Latina, estão presentes apenas Brasil, Argentina e México.

Como eu sou membro do Yahoo desde os tempos áureos da Geocities, tornar-me membro do Yahoo Respostas foi realmente muito simples. Precisei apenas configurar meu “avatar” e começar a usar os serviços.

A coisa funciona assim: há uma série de categorias do conhecimento, desde assuntos bem prosaicos, como casa e jardim, até assuntos mais profissionais e específicos, como engenharia, psicologia, física, matemática, economia, etc. Os participantes podem formular perguntas ou simplesmente procurar uma pergunta para responder. Cada resposta dá dois pontos ao participante e, se ela for escolhida pelo formulador como a melhor pergunta, o respondedor tem direito a dez pontos adicionais. Os pontos acumulados fazem com que o participante vá subindo de nível. Assim, há uma certa competição no site, embora as regras possbilitem uma boa dose de comportamento oportunista, sobre o qual comentarei no final deste post.

Como no Orkut, o participante pode formar uma “rede de amigos”, e, como no Orkut, é possível criar perfis verdadeiros ou fictícios, bem como possibilitar que ou outros entrem ou não em contato. Ao contrário do Orkut, não há espaço para fotografias, vídeos, depoimentos e comunidades específicas.

O mais curioso é que há pouco espaço para discussões no Yahoo Respostas, pelo menos no que diz respeito a discussões do tipo “thread”. Uma vez respondida uma pergunta, ela pode ser editada ou excluída, mas não há como repondê-la mais de uma vez. Isso impossibilita que o ambiente se transforme em uma sala de bate-papo ou em um grupo de discussões, e esse é justamente o diferencial do Yahoo Respostas. Naturalmente, o participante que estiver em busca de discussões, sobre qualquer assunto, acaloradas ou não, poderá encontrá-las facilmente em um dos infinitos grupos de discussão atualmente existentes. Mas, pelo que percebi até o momento, esse diferencial Yahoo Respostas torna o ambiente mais elegante e educado, embora sem frescuras.

Outra característica interessante é que o participante pode passar com grande facilidade de uma pergunta sobre Adam Smith para uma pergunta sobre animais domésticos ou sobre “noivado e casamento”. Não há necessidade de se cadastrar em um grupo ou comunidade, aguardar aprovação dos moderadores, etc. Tudo está disponível ao mesmo tempo e ao alcance de poucos cliques. É claro que, dependendo do tipo de assunto, as respostas podem ser altamente profissionais ou altamente pessoais. E a existência de respostas muito pessoais, particularmente quando o assunto é sexo, política ou religião, talvez explique a existência de tantos perfis fictícios.

Uma coisa que ainda não entendi é a razão do baixo índice de violação das “regras da comunidade” [3]. Tais regras são bastante restritivas e não permitem a publicação de conteúdo que infrinja os direitos das crinças, que estimulem comportamentos não saudáveis, que incitem a violência, que infrinjam qualquer lei brasileira, etc. Também não é permitida a personificação de outros usuários ou a criação de perfis com a intenção de violar regras. Contudo, é sabido que muitos internautas não costumam se importar com regras de uso. Ainda assim, até onde pude perceber, o índice de violação no Yahoo Respostas Brasil é pequeno. Talvez eu tenha me concentrado apenas em assuntos nos quais a violação é mínima, mas, mesmo assim, comparado às comunidades do Orkut ou mesmo aos grupos de discussão do Yahoo, as mensagens do Yahoo Respostas são muito mais pacíficas e educadas. Por exemplo, enquanto o vocábulo “vagina” comparece 2.161 vezes, o análogo vulgar mais famoso dessa palavra comparece apenas 4 vezes.

Como se poderia esperar, o comportamento oportunista está presente no Yahoo Respostas, assim como em qualquer sistema, online ou não, fracamente regulamentado e que atribua classificações às pessoas, com ou sem a promessa de prêmios. Entende-se como comportamento oportunista a disposição de alguém alcançar algo de seu interesse próprio à custa da contraparte, especialmente quando a contraparte não percebe o perigo da violação das regras ou quando não pode se proteger.

Há vários tipos de comportamento oportunista no Yahoo Respostas. Por exemplo, cada pergunta respondida dá direito a dois pontos, independentemente do conteúdo. Assim, muitos participantes escrevem respostas sem sentido, usam um decepcionante “não sei”, distorcem a pergunta ou escancaram o oportunismo de outra forma qualquer. Em um caso típico, ao responder à pergunta “qual a distância do Rio de Janeiro a Paris”, um participante respondeu “dois pontos”! Outro tipo de comportamento oportunista é copiar as respostas de outro lugar, principalmente da Wikipedia. Isso, pelo menos, exige um pouco de pesquisa.

Apesar das deficiências e dos abusos por parte dos participantes, o Yahoo Respostas me parece muito mais interessante do que outras comunidades online. E, ao contrário do Orkut, que é praticamente inútil, o Yahoo Respostas permite o comportamente inteligente. Vale a pena ficar de olho nesse serviço, que nada mais é do que uma experiência comportamental online, com regras específicas e fracamente regulada.

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[1] Yahoo! Respostas Brasil. Disponível em: <http://br.answers.yahoo.com/my/profile;_ylt=A0WTc7X4nqtGDKgAmhLlExV.?show=gtDJF4EGaa> .
(*) No restante desse texto, irei escrever Yahoo em vez de Yahoo!, para não prejudicar a legibilidade.
[2] Blog do Cadu de Castro Alves. Disponível em: <http://cadudecastroalves.com/blog/2007/07/21/como-divulgar-seu-blog-parte-iv-faca-as-midias-sociais-trabalharem-por-voce>.
[3] Regras da Comunidade do Yahoo Respostas. Disponível em: <http://br.answers.yahoo.com/info/community_guidelines.php>.

quarta-feira, julho 25, 2007

De novo, o SNPTEE

Fantástico! A comissão técnica do XIX SNPTEE – Seminário Nacional de Produção e Transmissão de Energia Elétrica – enlouqueceu de vez e selecionou dois trabalhos meus para apresentação:

1. “Custos de transação e forças propulsoras: uma visão estratégica da desverticalização no Setor Elétrico” (GEC – Grupo de Estudo de Comercialização, Economia e Regulação de Energia Elétrica).

2. “A visão dos cursos de tecnologia como produto disruptivo: sugestões para estruturação e gestão” (GTE – Grupo de Estudo da Gestão da Tecnologia, da Inovação e da Educação).

Agora é só responder aos questionamentos da comissão técnica, preparar as apresentações e... conseguir financiamento para a viagem.

O XIX SNPTEE será realizado no Rio de Janeiro, entre 14 e 17 de outubro próximos. Os organizadores são o Cigré-Brasil (como usual) e Furnas, que é também a anfitriã. O site oficial do evento pode ser acessado em http://www.xixsnptee.com.br .

Vamos ver se dessa vez eu ganho o "grande prêmio SNPTEE" (uma viagem para Paris) ou pelo menos o "pequeno prêmio SNPTEE" (não sei o que é, mas cabe dentro de uma sacola).

terça-feira, julho 24, 2007

Vem aí a “Alcoolbrás”!?

Deu no blog da Miriam Leitão [1]: o governo federal está pensando em estatizar as operações de produção e comercialização do etanol, o conhecido álcool combustível!

Para quem pensa que não existe mais risco regulatório, o governo sempre tem umas cartas na manga. Em vez de implantar medidas para estimular a competição, reduzir a carga tributária e desfazer os cartéis desse setor que chegou ao Brasil junto com Pero Vaz Caminha, o governo pensa em criar um monopólio estatal da produção de álcool. Um verdadeiro retrocesso! Roberto Campos estaria esbravejando. Fabio Giambiagi e outros certamente estão.

Se a estatização ocorrer, é líquido e certo que os preços do álcool irão aumentar. Se não aumentarem, será porque as ineficiências e diferenças de custos serão transferidas para outras áreas da economia estatal, sendo pagas por outras pessoas que não os consumidores diretos do produto.

Não existe maneira de se fazer mágica em economia e o único caminho para se reduzir custos, e garantir que tais custos continuem reduzidos no longo prazo, é por meio da competição. E, como as entidades estatais não têm incentivos suficientes para competir, a única maneira de implantar a competição é por meio da iniciativa privada. Precisamos de mercados livres, não de tecnocratas decidindo de maneira centralizada quais produtos serão produzidos e quanto o consumidor desejará pagar por eles.

Com as experiências frustradas do Instituto do Açúcar e do Álcool (criado por Getúlio Vargas e desmontado na década de 90) e do Pró-álcool (criado em 1975 e estagnado a partir de 1995), o Brasil já deveria ter aprendido a lição. Não deu certo daquela vez, e não vai dar certo desta.

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[1] http://oglobo.globo.com/economia/miriam/post.asp?cod_post=67069

quinta-feira, julho 19, 2007

Moto contínuo: o sonho que não quer morrer

Alguns assuntos definitivamente me perseguem. Há pouco mais de um mês recebi seguidamente vários e-mails sobre um tal "motor revolucionário", supostamente desenvolvido por japoneses e baseado "num simples princípio básico de actração e repulsão de corpos magnéticos" (sic). O motor seria ainda "capaz de gerar energia mecânica de forma contínua e quase ilimitada, sem consumir nenhuma energia". Em resumo: outra proposta de moto contínuo, aquele criatura fictícia que seria capaz de gerar energia com rendimentos superiores a 100%.

Há um vídeo do suposto motor no Youtube [1], mostrado também abaixo, no qual se menciona que o invento já estaria em fase de testes no Japão, mas que ainda seria preciso "vencer os fortes e poderosos especuladores e produtores de petróleo". É claro! A culpa é sempre do petróleo, que não deixa o moto contínuo ganhar vida!


O vídeo também mostra uma motocicleta, alegadamente construída com o "motor revolucionário". Depois de ter respondido a três ou quatro e-mails que me foram enviados, nos quais tive o cuidado de citar as leis da termodinâmica e remeter os interessados a alguns sites, resolvi enviar uma curta mensagem à Ciencialist [2], uma lista de discussão sobre ciências. Um dos parcipantes da lista (Homero, também conhecido como "Oráculo") enviou então um link [3] que contém, dentre outras, a fotografia da moto abaixo, idêntica à moto do filme do "motor revolucionário".



A moto acima usa motores elétricos alimentados por baterias convencionais. Nada de moto contínuo. Nada de energia livre. Nada de rendimentos superiores a 100%.
Os fãs do Akira reconhecerão que a moto é uma das muitas inspiradas no veículo usado pelo personagem principal deste mangá, como também me lembrou o Homero.
Infelizmente, quase toda a informação sobre esse assunto na internet está em japonês, a começar pelo site do fabricante, Axle Corporation, que tem sede em Tóquio [4] e construiu a moto em parceria com a Genesis Corporation, também japonesa. Encontrei alguma informação em inglês no site "JCN Network" [5]. De acordo com esse site, as características da moto da Axle seriam: (a) o motor, denominado "SUMO A EV-X7", usa eletroímãs e ímãs permanentes, sendo caracterizado pelo fabricante como um motor "híbrido"; (b) a autonomia do motor é de 180 km, sendo capaz de atingir velocidades de 150 km/h; (c) o motor é instalado sobre a roda traseira da moto, diminuindo perdas por transmissão, e é controlado por microprocessador; (d) O motor fornece 2.130 W com 80% de rendimento. Esse último item é um pouco estranho, pois 2.130 W correspondem a cerca de 2,86 HP, potência insuficiente para um veículo a motor. Deve ter sido engano do jornalista (Mark Eddinger).

Qualquer melhoria em motores elétricos pode ser considerada importante, mas um rendimento de 80% está muito longe do que se espera de um moto contínuo (mesmo um rendimento de 99,99999% ainda estaria infinitamente longe do que se espera de um moto contínuo). De fato, a alegação do fabricante não é ter desenvolvido um moto contínuo, mas sim ter desenvolvido um motor eficiente e suficientemente compacto para ser instalado sobre a roda de uma motocicleta.

Da pouca informação existente, não fica muito claro que tipo de motor foi implementado na moto da Axle. Entretanto, eu apostaria que se trata de um motor síncrono a ímãs permanentes. Esse tipo de motor, que não é exatamente uma novidade, tem um estator trifásico convencional, que produz um campo magnético girante e pode ser alimentado a partir de um inversor comum, o qual, por sua vez, pode ser alimentado por meio de baterias.

"Inversor" é um equipamento eletrônico que realiza o processo inverso ao da retificação: em vez de transformar corrente alternada em corrente contínua (como o retificador), o inversor transforma corrente contínua em corrente alternada.

O rotor do motor síncrono da moto, por outro lado, poderia ser construído com ímãs permanentes de neodímio-ferro-boro, que produzem um campo magnético bastante intenso, fornecendo um acoplamento eficiente entre rotor e estator. O controle da velocidade e da potência não seriam tarefas triviais, mas estariam totalmente ao alcance da tecnologia atual. Mais informações sobre motores síncronos a ímãs permanente podem ser encontradas em [6].

Uma vez conhecido o fabricante da moto do filme do "motor revolucionário", foi razoavelmente fácil descobrir um filme sobre a moto real, mostrado abaixo e também disponível em [7]. Fica claro que o filme do "motor revolucionário" não passa de uma fraude, uma mera colagem usando o filme real da Axle e algumas outras cenas.




Mas, como eu escrevi no início desse texto, o assunto do moto contínuo me persegue. No início desta semana, eu estava examinando alguns feeds da revista "The Economist" [8] e encontrei uma matéria sobre um moto contínuo que estaria sendo desenvolvido pela empresa irlandesa Steorn Ltd. No dia seguinte, o assunto apareceu na Ciencialist. A Steorn alega ter desenvolvido um verdadeiro moto contínuo a ímãs permanentes, denominado "Orbo", que retira energia não se sabe de onde, e prometeu uma demonstração prática para o dia 7 de julho. Todavia, chegou o dia combinado e os executivos da Steorn não conseguiram instalar o motor, alegando dificuldades tecnológicas devido ao calor excessivo produzido pela iluminação local. A empresa diz que o motor teria rendimento entre 285% e 400% e continua investindo na idéia.
Aguardem mais sobre motos contínuos e a Steorn em posts futuros.

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[1] "Motor Revolucionário". Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=vGFhr5uY3Yc>.
[2] CienciaList - Lista de discussão sobre ciência. Disponível em: <http://www.ciencialist.com/>.
[3] Electric motorbike concept car. Disponível em: <http://negatendo.net/kmc/en_us_axle.htm>[4] Axle Corporation. Disponível em: <http://www.axle-group.com/> (em japonês).
[5] JCN Network. Disponível em < http://www.japancorp.net/Article.Asp?Art_ID=12282> .
[6] Permanent Magnet Sychronous Motor. Disponível em: <http://www.freescale.com/webapp/sps/site/overview.jsp?nodeId=02nQXGrrlPZL8l>
[7] A moto da Axle/Genesis em funcionamento. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=NUXhJZZRUIg> .
[8] The Economist. "Perpetual Nonsense". 13 jul. 2007. Disponível em: <http://www.economist.com/displayStory.cfm?story_id=9494346>.

quarta-feira, julho 18, 2007

O “risco Congonhas”

Uma das frases do célebre “Macaco Simão” tornou-se tristemente real ontem: “Eu não tenho medo de voar. Tenho medo é de aeroporto!

O que dizer sobre o acidente em Congonhas que já não tenha sido dito? O que dizer que já não esteja em todos os jornais do mundo, em todos os sites, em todos os blogs, em todos os grupos de discussão? Mesmo assim, é preciso dizer alguma coisa, pois não é possível deixar passar em branco esse desastre.

Já que o Brasil é movido a solavancos e crises, talvez as coisas mudem daqui para frente. Talvez o governo se conscientize de que é preciso privatizar o setor aéreo, pois os órgãos e funcionários estatais não têm incentivos para melhorias. Após as honras aos mortos de Congonhas, com a percepção do risco aeroportuário subitamente elevada, talvez haja pressão popular suficiente para que o governo perceba que não temos o melhor sistema do mundo e que reformas são necessárias e urgentes. Talvez. Todavia, mesmo que a reforma do setor começasse hoje, serão necessários dois ou três anos, em uma estimativa muito otimista, para que algum resultado surta efeito.

É uma pena. Todas as medalhas conquistadas pelos atletas brasileiros ontem indicavam que hoje seria dia de festa. O acidente com o avião da TAM mostrou como o Pan-americano é irrelevante, além de ter deixado claras duas coisas, ambas indicadas por mim no post de ontem, publicado horas antes do desastre: (a) investimentos em esportes não são importantes para o crescimento econômico de um país, especialmente tratando-se de um país com infraestrutura deficiente; (b) existe um tradeoff econômico entre investimentos em esportes e investimentos em outros setores da economia.

Em outras palavras, se o governo insiste em fazer tudo com verbas públicas, mas se não há dinheiro para fazer de tudo, o racional teria sido investir o dinheiro do Pan-2007 nos setores realmente deficitários. O setor aéreo e as vítimas de Congonhas teriam agradecido.

terça-feira, julho 17, 2007

Pan 2007, Diogo Silva, Rafael Capote e Desenvolvimento Econômico

Nossa primeira e suada medalha de ouro nesse Pan-americano não veio dos esportes mais conhecidos, como natação e ginástica, mas de um esporte que só se tornou oficialmente olímpico nas olimpíadas de Sydney, em 2000, e não tem tradição no Brasil: o taekwondo.

Nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, o agora medalhista Diogo Silva havia ficado em quarto lugar e aproveitou para desfiar um rosário de lamentações, bem conhecido dos esportistas brasileiros que se dedicam a modalidades amadoras pouco divulgadas: não há patrocínio, muitos atletas competitivos abandonam o esporte por falta de condições financeiras, somente quem tem amor ao esporte consegue continuar, etc. [1]. Na mesma época, Natália Falavinha, outra praticante do esporte, falou sobre falta de transparência na gestão da Confederação Brasileira de Taekwondo (CBTKD) e sugeriu a existência de uma máfia no esporte [2].

A mensagem que fica é conhecida de todos: no Brasil, praticar esportes é difícil, praticar esportes amadores é ainda mais difícil e praticar esportes amadores sem tradição é quase impossível. Aqueles que o fazem, ou são heróis, ou contam com o famoso “paitrocínio”.

À luz dessas conhecidas dificuldades, foi com surpresa que recebi a notícia de que o cubano Rafael Capote abanbonou a seleção de handebol de seu país e pretende entrar com pedido de asilo junto ao governo brasileiro [3]. No Pan-americano de Winnipeg, em 1999, treze atletas cubanos desertaram, mas Winnipeg fica no Canadá, um país do G7! Se atletas cubanos estão escolhendo o Brasil como destino, e considerando-se ainda o convênio esportivo firmado entre Cuba e Venezuela, que rendeu 50 milhões de dólares ao governo de Fidel Castro em 2006, isso só pode significar uma coisa: Cuba está quebrada!

Os parágrafos anteriores podem ter deixado a impressão de que sou um grande estusista dos esportes e que estou reclamando do reduzido incentivo dado aos esportes “não-futebolísticos” no Brasil. Na verdade, estou apenas relatando fatos e acontecimentos. E ainda que eu reconheça o esforço heróico dispendido por nossos atletas, bem como um certo papel social dos esportes, sou altamente cético quando vejo alguém argumentar que os esportes podem ou devem ser usados para promover o desenvolvimento do pais. Há uma inversão da causalidade aqui: os países desenvolvidos não se tornaram desenvolvidos por se dedicarem aos esportes, mas se dedicam aos esportes porque são desenvolvidos. Cuba é um grande exemplo, embora não o único, de que o desenvolvimento não se dá a custa dos esportes.

Na história das competições pan-americanas, Cuba ocupa o segundo lugar geral no quadro de medalhas, atrás apenas dos Estados Unidos. O desempenho desse país começou a melhorar a partir do Pan-americano de 1971, na Colômbia, quando Cuba saltou para o segundo lugar, posição que também ocupou em várias outras vezes, inclusive em Santo Domingo, em 2003 [4]. Na edição de Havana, em 1991, Cuba finalmente veio a ocupar o primeiro lugar, tendo conquistado 265 medalhas, 140 delas de ouro. No momento em que escrevo esse texto, Cuba já ocupa a segunda colocação no quadro de medalhas do Pan-2007.

Apesar de tudo isso, o incentivo ao esporte em Cuba não trouxe desenvolvimento ao país. O IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de Cuba é 0,826, considerado elevado (o IDH do Brasil é 0,792), mas colocando o país caribenho apenas no 50° lugar geral, atrás de países como Eslovênia, Chipre, Croácia, Argentina, Uruguai e Chile [5]. A renda bruta per capita dos cubanos é de US$ 3.900, o que coloca a ilha em posição pouco melhor do que a da Argélia, mas em posição pior do que a da Jamaica, Costa Rica, Sérvia, Brasil e outros 79 países [6].

A realidade é que Cuba poderia ter melhorado seu IDH se tivesse investido o dinheiro dos esportes em outros setores, como ciência e tecnologia. Uma simples questão de trade-off econômico. E, como acontece em todos os lugares, a situação dos esportes no Brasil melhorará apenas quando nossa situação econômica geral melhorar, não antes disso.

Mas a principal diferença entre Cuba e Brasil não diz respeito a abstratos índices econômicos, a investimentos em esportes ou a classificações em campeonatos internacionais. A principal diferença é que os brasileiros podem vaiar seu presidente ao vivo, em rede nacional, e por repetidas vezes, sem medo de represálias.

Assim, meu caro Rafael Capote, bem-vindo ao mundo livre!

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[1] Terra Esportes, Atenas 2004. 27 ago. 2004. Disponível em: <http://esportes.terra.com.br/atenas2004/interna/0,,OI373231-EI2835,00.html>.
[2] Terra Esportes, Atenas 2004. 4 set. 2004. Disponível em:
< http://esportes.terra.com.br/atenas2004/interna/0,,OI378048-EI2835,00.html>
[3] UOL Pan 2007. 16 jul. 2007. Disponível em: <http://pan.uol.com.br/pan/2007/ultnot/2007/07/16/ult4343u1195.jhtm>
[4] Yahoo! Pan 2007. Disponível em:
< http://br.esportes.yahoo.com/pan2007/paises/cuba>
[5] Wikipedia. List of countries by Human Development Index. Disponível em:
< http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_Human_Development_Index>
[6] Wikipedia. List of countries by GDP (nominal) per capita. Disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_GDP_%28nominal%29_per_capita>

sexta-feira, julho 13, 2007

“Lance de Dados”, de Stephen Jay Gould

Stephen Jay Gould (1941 – 2002) foi um paleontólogo, biólogo evolucionista e professor da Universidade de Harvard, conhecido também como divulgador científico, particularmente no que se refere à teoria da evolução [1]. Adversário ferrenho do determinismo biológico, Gould esteve sempre presente na mídia, não se furtando a participar de debates controversos ou a defender o ensino da evolução naquele ambiente espinhoso que é o sistema educacional norte-americano.

No papel de cientista, Gould desenvolveu, dentre outras coisas, a teoria do equilíbrio pontuado. Nessa teoria, desenvolvida em conjunto com o paleontólogo Niles Eldredge, a mudança evolucionária ocorre em rápidos períodos, intermediados por longos períodos de estabilidade evolutiva. Essa noção, que se opõe ao gradualismo preferido pelos darwinistas mais ortodoxos, rendeu-lhe várias críticas de colegas, as quais são de vez em quando usadas pelos criacionistas como prova de que “os biólogos não se entendem”. Contudo, os cientistas de qualquer área sempre criticam uns aos outros e raramente concordam em tudo. É assim que a ciência evolui.

Gould aproveita essa história pessoal para discutir o papel das medidas de tendência central em estatística (“Lance de Dados” é, na verdade, um livro de estatística disfarçado de livro de biologia misturada com história do beisebol norte-americano; Gould tece esses conceitos diferentes de maneira elegante, sem deixar que o leitor médio se lembre da aridez matemática por detrás deles).

A mais famosa das medidas de tendência central é a média, que é obtida somando-se todos os valores das ocorrências de um determinado fenômeno e dividindo-se o resultado da soma pelo número total de ocorrências. Outra medida de tendência central é a moda, que é simplesmente a ocorrência mais comum de um fenômeno. Já a mediana é calculada de forma que metade das ocorrências esteja acima dela e metade abaixo. Assim, o fato do mesotelioma peritoneal ter sobrevida mediana de oito meses significa que metade dos pacientes diagnosticados morre antes de oito meses, uma previsão sem dúvida assustadora.

Quando agrupamos as ocorrências de um fenômeno por ordem de freqüência, podemos desenhar um diagrama denominado “distribuição de probabilidades” ou “distribuição de freqüências”. O tipo mais conhecido de distribuição é distribuição normal, a famosa “curva do sino” mostrada na Fig. 1, na qual a média, a moda e a mediana são iguais.


Gould então nos lembra que a distribuição de fatalidades do mesotelioma ao longo do tempo não é normal, mas tem um desvio para a direita. A formação da “cauda” significa que muitos pacientes diagnosticados com a doença sobreviverão mais do que oito meses, alguns sobreviverão muito mais do que isso e alguns poucos sobreviverão o suficiente para morrer de outras causas. Um exemplo de distribuição assimétrica é mostrado na Fig. 2. “A mensagem não é a mediana”, mas a variação total, argumenta Gould, lembrando que não podemos “coisificar” uma medida de tendência central, ou seja, não podemos tomar tal medida como sendo o próprio fenômeno.

Outro exemplo citado por Gould é provavelmente mais difícil de entender para os brasileiros, pois envolve a história do beisebol norte-americano: o desaparecimento das rebatidas de 0,400. Até 1920, os bons rebatedores conseguiam índices individuais de rebatidas médias de 0,400 (ou 40% de acertos). Hoje em dia, nem mesmo os jogadores milionários conseguem atingir esse nível de desempenho. As explicações usuais (aquelas que “todo mundo sabe com certeza”) dividem-se em dois tipos: a) os jogadores atuais ficaram mais “moles” quando comparados aos verdadeiros heróis do passado; b) as condições de trabalho atuais são mais difíceis.

Por meio de vários argumentos, Gould conclui que a rebatida de 0,400 desapareceu porque o jogo foi aperfeiçoado, não porque tenha caído de padrão. Novamente, devemos nos concentrar na variação inteira, não só na média. Gould mostra que, embora a média global tenha permanecido a mesma (26% de acertos) o aperfeiçoamento do jogo fez com que a variância (medida associada ao desvio padrão da distribuição de freqüências) diminuiu, pois os jogadores se aproximaram mais do limite físico de seus desempenhos. Assim, no início do século os melhores jogadores conseguiam atingir facilmente um percentil de 0,400, mas atualmente esse número não ultrapassa 0,350. O valor extremo de 0,400 não é mais atingido porque se afastou muito para a direita da distribuição de freqüências. O “encolhimento” da distribuição de freqüências é mostrado na Fig. 3. O deslocamento da curva para a direita indica que mesmo aqueles jogadores medianos atuais estão mais próximos do limite humano do que suas contrapartes do início do século.

O último exemplo de Gould é o melhor de todos e se relaciona à idéia muito difundida de que a evolução das espécies corresponde a um tipo de progresso, pois a complexidade dos organismos parece ter aumentado ao longo do tempo. De fato, os livros didáticos costumam citar, em ordem cronológica, que a Terra viu aparecer primeiro a “era das bactérias”, depois a “era dos invertebrados”, a “era dos dinossauros”, a “era dos mamíferos” e, por fim, a “era dos seres humanos”. Esse tipo de raciocínio é também representado na Fig. 4, repetida milhões de vezes em vários lugares, e que dá a impressão de que o homem representa o caso final de uma escalada evolutiva rumo à perfeição (digite a palavra “evolução" no Google Imagens e veja várias figuras semelhantes aparecerem).

Gould argumenta, contudo, que o mundo nunca saiu da era das bactérias, que são os seres vivos mais comuns no planeta. Os seres mais complexos que as bactérias não representam mais do que um acaso, um efeito evolucionário randômico. Esses seres mais complexos não representam mais do que uma pequena cauda direita na distribuição de freqüência de todas as espécies. Aos nos concentrarmos nessa pequena cauda, onde casualmente se encontram os seres humanos, deixamos de observar o “panorama completo” (ou “full house”, do título original do livro).

O objetivo de Gould com o livro é mais ambicioso do que apresentar conceitos estatísticos abstratos. Ele diz que é preciso enfrentar o “quarto desafio freudiano”. Freud mencionou que as grandes revoluções científicas provocaram a sucessiva derrubada da arrogância humana, de pedestal em pedestal, mencionando três exemplos: a) a remoção da Terra do centro do universo; b) a teoria da evolução de Darwin, que nos colocou junto com os demais animais e; c) a própria psicologia freudiana, que descobriu o inconsciente e mostrou que existe uma parte de nossa psique que não controlamos. Gould comenta que o quarto desafio freudiano seria colocar o homem em seu devido lugar: não o ápice da evolução, mas uma espécie que surgiu por meio de processos aleatórios que provavelmente não se repetiriam caso o filme da evolução fosse rodado novamente.

Esse argumento dificilmente conquistará muitos adeptos, especialmente no mundo ocidental, imerso em uma tradição judaico-cristã que prega o papel especial do ser humano no planeta. Trata-se, contudo, de um argumento fascinante, ao qual não se adere com pouca coragem: somos fruto de processos evolutivos, nenhum deles orientado para o progresso ou aumento da complexidade e todos eles com baixíssima probabilidade de ocorrência.

A respeito de eventos de baixa probabilidade, é interessante lembrar que Gould também contribuiu para a divulgação do conceito das contingências históricas do processo evolucionário. Um exemplo que ele gostava de citar é o da extinção em massa ocorrida há 65 milhões de anos, produzida pela queda de um meteoro e responsável pelo desaparecimento dos dinossauros. Em seu último e maciço livro de 1.433 páginas, “The Structure of Evolutionary Theory”, Gould escreveu (tradução de Sergio Danilo Pena [3]).

“Dinossauros e mamíferos compartilharam a Terra por 130 milhões de anos, o dobro do período subseqüente de sucesso dos mamíferos que levou à emergência do Homo sapiens entre outras 4.000 outras espécies vivas da nossa classe Mammalia. [...] podemos conjecturar que, na ausência deste acidente cósmico, os dinossauros ainda estariam dominando os habitats de grandes animais terrestres e os mamíferos ainda seriam criaturas das dimensões de ratos, vivendo nos interstícios ecológicos do mundo reptiliano. Neste episódio, mais vitalmente pessoal que qualquer outro, deveríamos literalmente agradecer à nossa estrela da sorte [...] que certas marcas da nossa incompetência ancestral – persistência de um pequeno tamanho no mundo dos dinossauros, por exemplo – subitamente transformaram-se em vantagens cruciais e fortuitas na vigência das novas regras do impacto K-T, enquanto a fonte prévia de triunfo para os dinossauros [seu grande tamanho] levou à tragédia deles nas novas regras”.

Para quem pensa que eventos de baixíssima probabilidade não ocorrem, cabe uma nota final, não sem certo pesar. Stephen Jay Gould finalmente se curou do perigosíssimo mesotelioma peritoneal, após longo e penoso tratamento, mas veio a falecer em 2002, de uma doença não correlacionada, mas igualmente perigosa: adenocarcinoma pulmonar metastático, uma das formas do câncer de pulmão.

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[1] The Unofficial Stephen Jay Gould Archive. Disponível em: <http://www.stephenjaygould.org/>.
[2] GOULD, S.J. The median isn’t the message. Disponível em: <http://www.cancerguide.org/median_not_msg.html>. [3] PENA, S.D. Acidentes acontecem. 14 abr. 2006. Disponível em: < http://cienciahoje.uol.com.br/45989>.

quinta-feira, julho 12, 2007

Cientistas detectam água em planeta fora do Sistema Solar

O nome do planeta, HD 189733b, é pouco inspirador e mais parecido com o número de série de um equipamento de informática, mas não se pode dizer o mesmo da substância detectada em sua atmosfera: vapor d’água [1].

HD 189733b fica a 63 anos-luz da Terra, uma distância desprezível em termos astronômicos, mas fora do alcance de qualquer nave espacial da atualidade. O planeta foi descoberto em 2005 e é um gigante gasoso com massa 1,15 vezes maior do que a de Júpiter [2]. Ontem, 11 de julho, uma equipe liderada por Giovanna Tinetti publicou na revista Nature os resultados das observações feitas com o telescópio espacial Spitzer: à medida que o planeta passa em frente à estrela, sua atmosfera absorve luz nas frequências de 3,6 e 5,8 micrometros, que é o padrão de absorção do vapor d’água.

Apesar da provável presença de água, HD 189733b não parece o melhor candidato à presença de vida. Orbitando sua estrela hospedeira a cada 2,22 dias e distante dela de apenas 0,0313 vezes a distância da Terra ao Sol, o planeta é quente demais. Todavia, considerando-se que já se encontrou vida nas fossas submarinas mais quentes da Terra, não se pode descartar facilmente a hipótese de que exista vida em HD 189733b, mesmo que somente na forma bacteriana.

Paradoxalmente, o curto período orbital torna HD 189733b bastante adequado aos estudos astronômicos, pois seus “trânsitos” (passagens em frente à estrela) podem ser observados e medidos com mais freqüência. As temperaturas elevadas também facilitam a observação, pois a radiação térmica é mais facilmente mensurável.

HD 189733b ainda não é o planeta ideal para nosso “primeiro contato”, mas esse dia está chegando. Tudo indica que o século XXI será uma época excitante para a exoplanetologia e, talvez, também para a exobiologia.


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[1] Folha de São Paulo, 12 jul. 2007. Disponível em: <http://cienciaesaude.uol.com.br/ultnot/efe/2007/07/11/ult4429u686.jhtm>.
[2] SkyandTelescope.com. Disponível em: < http://www.skyandtelescope.com/news/3310756.html?page=1&c=y>.

terça-feira, julho 10, 2007

Igreja Católica: a única “igreja de Cristo”

Aos poucos, Bento XVI mostra suas garras. Embora tente vestir o manto de “papa pop” tecido por João Paulo II, Bento XVI não consegue escapar de suas origens conservadoras e autoritárias. Nessa terça-feira, o Vaticano publicou um documento, ratificado pelo papa, no qual afirma que a Igreja Católica é e sempre foi a única igreja de Cristo [1]. Nessa era de pluralidade ideológica, essa posição não reflete apenas a megalomania do Vaticano, mas é também repleta de preconceitos históricos.

A história é conhecida de todos. Em um belo dia, após uma famosa profissão de fé, Jesus de Nazaré teria se dirigido a Simão Barjona e dito: “...e eu digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus"( Mateus, XVI, 16-19). A Igreja Católica tem usado esse singelo versículo, desde os primórdios, para assegurar sua prioridade sobre as demais denominações cristãs. Há, contudo, outras interpretações.

Para os protestantes, Jesus não estaria falando sobre Pedro, mas sim sobre ele mesmo: “sobre esta pedra” seria uma referência ao próprio Cristo, não ao apóstolo. É sobre a divindade atribuída a Jesus que seria construída a nova igreja, não sobre a autoridade meramente humana de um discípulo qualquer. É claro que tal interpretação deixa o texto evangélico imerso em uma certa confusão, mas, tratando-se de um texto religioso, não se pode esperar uma lógica muito refinada.

Outra interpretação é que, mesmo considerando-se que Jesus tenha conferido a Pedro o cargo de primeiro pontífice, de modo algum ele indicou como se daria a sucessão. Ele não disse “... tu és Pedro, sobre esta pedra edificarei minha igreja... e teus sucessores serão eleitos por meio do voto direto de cardeais reunidos em conclave...

Por que razão deveríamos acreditar que o papa que aí está é resultado de uma linha sucessória que remonta ao próprio Pedro? Por que razão deveríamos acreditar que um processo sucessório de origem divina teria levado à eleição de 212 papas italianos dentre os 265 papas que já viveram? Não é muita coincidência?

A resposta a essas questões é justamente aquela que o Vaticano jamais será capaz de dar: sede de poder. De fato, a Igreja Católica é a única igreja no mundo que é também uma instituição. Se resolvesse compartilhar decisões com o arcebispo de Canterbury ou com outros líderes religiosos, a igreja perderia poder e estaria ameaçada como instituição. E isso seria o fim do cargo de papa, coisa que os cardeais, que estão sempre de olho nele, jamais poderão permitir.

Resta esperar qual será a reação dos outros líderes religiosos sobre essa mais recente reafirmação de poder por parte da Igreja Católica. Para quem acredita no princípio da liberdade religiosa, inclusive na liberdade de não ter religião alguma, o documento do Vaticano é como uma pá de areia, embora não se trate de algo realmente inesperado. Afinal, a Igreja Católica é uma instituição da idade do ferro, com fortes raízes na idade do bronze. Não se pode esperar que religiosos criados e educados nessa tradição pré-medieval possam entender como é o mundo da era da informação.

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[1] "Respostas a questões relativas a alguns aspectos da doutrina sobre a igreja". Disponível em <http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/
rc_con_cfaith_doc_20070629_responsa-quaestiones_po.html
>

sábado, julho 07, 2007

Escolhidas as novas sete maravilhas do mundo

Acredite se quiser, o Cristo Redentor é uma das “Novas Sete Maravilhas do Mundo”! O resultado oficial, em ordem de classificação, é o seguinte:

  1. A Grande Muralha (China).
  2. Petra (Jordânia).
  3. Cristo Redentor (Brasil).
  4. Machu Picchu (Peru).
  5. Chichén Itzá (México).
  6. Coliseu (Itália).
  7. Taj Mahal (Índia).

Não consegui acessar o site oficial do evento [1], provavelmente porque milhões de pessoas no mundo estão tentando fazer o mesmo, mas a relação também está disponível na Wikipédia [2].

Da minha lista anterior, preparada por ordem populacional de cada país, acertei quatro dos sete classificados. Também acertei quatro na classificação por antigüidade, se bem que “outros quatro” [3].

O incrível não é o Cristo Redentor ter sido escolhido, pois torciam por ele não só o Brasil, mas toda a Igreja Católica mundial. O incrível é a Estátua da Liberdade ter ficado de fora! O que aconteceu com os americanos? Enlouqueceram? Resolveram dar uma chance aos subdesenvolvidos (*)? De qualquer forma, estamos dentro da lista e ainda não sei se rio ou se choro.

Antes de encerrado o concurso, a Igreja Católica andou choramingando suas mágoas e reclamando que a “cristandade estava pouco representada dentre os finalistas”, pois obras como a Capela Sistina, o Santo Sepulcro (?) e a Catedral da Sagrada Família haviam ficado de fora da lista preliminar [4]. Mas agora a Santa Sé pode descansar em paz, pois a cristandade comparece com duas obras dentre as sete novas maravilhas: o Cristo Redentor e o Coliseu. Ou alguém duvida que os cristãos tiveram participação importante na construção da reputação do Coliseu?

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(*) Dos sete classificados, apenas o Coliseu fica em um país considerado desenvolvido.
[1] New7Wonders Foundation. Disponível em: < http://www.new7wonders.com/>.
[2] Wikipédia, “Novas sete maravilhas do mundo”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Sete_maravilhas_do_Mundo_Moderno#Novas_Sete_Maravilhas_do_Mundo>. [3] Blog Rabiscos Aleatórios, “Cristo Redentor – Maravilha do Mundo?”. 6 jul. 2007. Disponível em: <http://alvaroaugusto.blogspot.com/2007/07/cristo-redentor-maravilha-do-mundo.html>.
[4] Blog do Marcos Guterman, 6 jul. 2007. Acesso em: 7 jul. 2007. Disponível em: <http://blog.estadao.com.br/blog/guterman/?title=vaticano_reclama_maravilhas_do_mundo_ign&more=1&amp;amp;amp;amp;amp;amp;amp;amp;amp;c=1&tb=1&pb=1>.

sexta-feira, julho 06, 2007

Cristo Redentor – Maravilha do Mundo?

De uns tempos para cá comecei a receber e-mails recomendado que eu votasse no Cristo Redentor, escolhido como finalista de uma lista das “Novas Sete Maravilhas do Mundo”. Tentei responder a alguns deles, mas as caixas postais dos remetentes não existem. Trata-se de spam, nada mais, enviado com a displicência de gente que julga estar a serviço de uma boa causa.

As Sete Maravilhas do Mundo Antigo, relembremos, eram: a Grande Pirâmide de Gizé, os Jardins Suspensos da Babilônia, o Templo de Ártemis em Éfeso, a Estátua de Zeus em Olímpia, o Mausoléu de Halicarnasso, o Colosso de Rhodes e o Farol de Alexandria. Embora essa lista tenha sido compilada na Idade Média, em uma época na qual muitos dos monumentos não mais existiam, é fácil perceber que se trata na verdade de uma lista das “Sete Maravilhas do Mundo Helênico”. A organização sem fins lucrativos New7Wonders, que se propôs a compilar uma nova lista de sete maravilhas, decidiu não ser tão centralizadora e escolheu como finalistas, muito apropriadamente, monumentos de vários lugares do mundo, os quais serão escolhidos por meio de votação, que se encerra amanhã. É aí que entra o Cristo Redentor.

Na condição de brasileiro, é natural que muitos pensem que eu deveria obrigatoriamente votar no Cristo Redentor. Não fazê-lo poderia dar a idéia de falta de patriotismo e, nesse mundo dado a avaliações rápidas e simplistas, poderia também dar a idéia de falta de religiosidade, coisa tão prezada por esse nosso povo semi-analfabeto. Contudo, se patriotismo fosse o fator decisivo nessa eleição, ela já estaria decidida pela mera diferença populacional dos países onde se localizam os monumentos. Os vencedores seriam os seguintes (juntamente com as estimativas populacionais de cada país):

  1. A Grande Muralha (China) – 1,322 bilhão de habitantes.
  2. O Taj Mahal (Índia) – 1,12 bilhão de habitantes.
  3. A Estátua da Liberdade (EUA) – 302 milhões de habitantes.
  4. O Cristo Redentor (Brasil) – 188 milhões de habitantes.
  5. A Catedral de São Basílio (Rússia) – 143 milhões de habitantes.
  6. O Templo de Kiyomishu (Japão) – 128 milhões de habitantes.
  7. A Pirâmide de Chichen Itzá (México) – 109 milhões de habitantes.

O Cristo Redentor ficaria em um confortável quarto lugar, mas o “voto patriótico” deixaria de fora monumentos com a Pirâmide de Gizé, a Torre Eiffel, o Coliseu, Stonehenge e a Acrópole de Atenas, esta última amargando um penúltimo lugar, motivado por pouco mais de 11 milhões de votos. Essa classificação decorre naturalmente da hipótese de que todos os habitantes de um país votem em seus monumentos, o que nem de longe é verdade, mas classificação semelhante seria obtida partindo-se da hipótese de que 10% (ou 5%, ou 2%, tanto faz) dos habitantes de cada país irá participar da votação. A determinação dos percentuais verdadeiros, que certamente não serão os mesmos para cada país, é justamente o objetivo da eleição.

Outro critério de escolha poderia ser a dificuldade de construção de cada monumento. Tal critério excluiria automaticamente monumentos como a Estátua da Liberdade, a Ópera de Sidnei (Austrália), a Torre Eiffel e, claro, o Cristo Redentor, pois todos esses monumentos foram construídos a partir do século XIX, quando a engenharia civil já era bastante avançada e havia motores para fazer o trabalho pesado. Uma classificação preliminar pela “dificuldade de construção” poderia ser feita levando-se em conta a antiguidade do monumento e provavelmente resultaria na seguinte lista:

  1. As Pirâmides de Gizé (Egito, 2.500 aC).
  2. Stonehenge (Inglaterra, 1.600 aC).
  3. A Acrópole de Atenas (Grécia, 330 aC).
  4. A Grande Muralha (China, 220 aC).
  5. Petra (Jordânia, 40 dC).
  6. Coliseu (Roma, 82 dC).
  7. Basílica de Santa Sofia (Turquia, 537 dC).
  8. Pirâmide de Chichen Itzá (antes de 800 dC).

Listei oito candidatos em vez de sete porque a Fundação New7Wonders acaba de declarar as Pirâmides de Gizé como “candidato honorário”, excluído, portanto, da votação. A decisão foi tomada em conjunto com o Supremo Conselho de Antiguidades do Egito e com o Ministério da Cultura do Egito, que concluíram que as pirâmides fazem parte do patrimônio cultural da humanidade e, na condição de único monumento incluído na lista antiga, merecem esse status especial.

Outro critério de classificação possível, embora repleto de subjetividade, seria a beleza dos monumentos. Mas como comparar a Estátua da Liberdade e o Cristo Redentor com o Coliseu e a Acrópole, ambos reduzidos a uma pálida lembrança do que foram em seus tempos de glória? E quem garante que o Cristo Redentor é intrinsecamente mais belo do que a Estátua da Liberdade? E como escolher entre a beleza clássica da Acrópole e as curvas orientais da Catedral de São Basílio ou do Tah Mahal? Impossível, dada a subjetividade do conceito de “belo”.

Ainda outra possibilidade seria excluir os monumentos construídos em função da megalomania de algum rei, imperador, engenheiro ou arquiteto. Tal critério imediatamente deixaria de fora a Torre Eiffel, único dos candidatos batizado em homenagem a seu construtor. Castelos também deveriam ser excluídos da lista, o que deixaria de fora Alhambra de Granada (Espanha), o Castelo Neuschwanstein (Alemanha), o Templo Kiyomishu (Japão), construído para servir de residência a shoguns e imperadores. O Taj Mahal (Índia) também ficaria de fora e, infelizmente, deveríamos excluir também as Pirâmides de Gizé, construídas para servir de túmulos a reis que se imaginavam deuses. A Estátua da Liberdade deveria ser excluída por motivos semelhantes, por representar, não a megalomania de um indivíduo, mas a de um povo inteiro. E, claro, o Cristo Redentor deveria ser excluído por ter sido construído por um povo que se imagina mais abençoado por Deus do que os outros.

Ainda assim, na minha modesta opinião, nenhum desses 21 monumentos deveria sequer estar na lista de candidatos. Mesmo a lista das sete maravilhas do mundo antigo sempre me pareceu meio fora de perspectiva. A verdadeira maravilha da Grécia antiga não era um templo ou uma estátua, mas sim uma civilização que criou a filosofia ocidental, lançou as bases da ciência moderna e inventou um sistema de governo diferente de todos os outros. As verdadeiras maravilhas da Roma antiga não eram estádios monumentais, mas os aquedutos, as estradas e até os exércitos, dependendo do ponto de vista. A grande maravilha da civilização maia não era uma pirâmide construída para o sacrifico humano, mas sim a capacidade de construir pirâmides e cidades sem o uso de tração animal ou de ferramentas de metal, assim como uma astronomia extraordinariamente precisa. No caso da China, não cabe nem mesmo cogitar que um muro de pedra, não importa quão monumental, seja mais maravilhoso do que a bússola, o papel e outras tantas invenções (a lista completa inclui também a pólvora, a besta e outras armas, que não são entendidas como maravilhosas por muita gente, mas desempenham um papel importante no desenvolvimento da civilização). E, obviamente, o que vale no caso do Egito não são as pirâmides em si, obras que não servem para absolutamente nada, mas sim uma engenharia que permitiu erigir aquelas construções, sem o uso de máquinas modernas, em uma época na qual a maioria dos povos ainda vivia em bandos primitivos. Mesmo a prosaica estátua norte-americana representa os ideais de democracia e liberdade que, embora tenham se originado em solo europeu, encontraram terreno fértil do outro lado do Atlântico.

Uma obra canditada a maravilha do mundo deve representar a exuberância científica, tecnológica ou artística de uma civilização inteira e não pode, portanto, ser analisada isoladamente.

No caso do Brasil, a grande maravilha não é uma estátua, por mais bela que seja e a despeito do receio do nosso povo inculto em ser punido por Deus caso deixe de votar em um monumento religioso. Nosso legado ao mundo poderia ser representado pelo Cristo Redentor apenas se fôssemos uma nação verdadeiramente cristã (tenho , contudo, sérias dúvidas se isso seria bom) ou se fôssemos uma nação verdadeiramente acolhedora, as duas características supostamente representadas pelo Cristo. Todavia, nunca fomos mais do que uma nação de católicos não praticantes, embora agora estejamos sob o ataque de seitas evangélicas sedentas de dinheiro e poder. E tenho sérias dúvidas se somos realmente mais acolhedores do que outros povos. É difícil dizer isso de uma nação que expulsou tantos de seus próprios filhos durante a ditadura, que cancela o visto de permanência de jornalistas por supostas ofensas ao Presidente da República e que assalta e mata turistas de todas as partes do mundo.

A grande maravilha brasileira, nossa grande obra, deveria representar a exuberância de nossa civilização, aquilo que temos de melhor para oferecer ao mundo. Infelizmente, não tenho idéia de qual seja nosso legado ao mundo e nem de qual obra o representaria. Mas não seria o Cristo Redentor.

quinta-feira, julho 05, 2007

Um curto comentário sobre Angra 3

No último dia 25, o Conselho Nacional de Política Energética aprovou, em sua primeira reunião do ano (socorro!), a construção da usina nuclear Angra 3, com potência de 1.350 MW. A decisão ainda depende do aval do presidente da República, mas a Eletronuclear pretende iniciar as obras ainda em 2008.

Em meio aos brados de ambientalistas e partidários da opção nuclear, cada um deles gritando por razões diferentes, parece ter passado despercebido um ponto fraco do projeto: Angra 3 será uma usina estatal. Por razões óbvias, o nacionalismo vigente jamais deixará que uma usina nuclear seja construída e operada pela iniciativa privada. Trata-se de decisão discutível para um governo que anda esbanjando em seus gastos.

Outro ponto fraco é que o modelo de venda da energia de Angra 3 provavelmente será no estilo “goela abaixo” usado em Itaipu: as distribuidoras adquirem cotas e as repassam obrigatoriamente aos consumidores cativos. Isso sem falar no modo de operação das nucleares no Brasil, que despacham sempre fora da ordem de mérito e provocam o vertimento das usinas hidráulicas, especialmente no período úmido.

Muita discussão ainda será necessária. Do ponto de vista da engenharia pura, o projeto é obviamente interessante, renderá algumas visitas técnicas e criará empregos para os nossos poucos engenheiros nucleares. O mercado, por outro lado, sairá perdendo, assim como os consumidores. Mais energia nas mãos de estatais. Mais contratos negociados de forma inflexível e anacrônica.

terça-feira, julho 03, 2007

Imagem do dia

Não posso deixar passar em branco essa fotografia de um garotinho relaxando no aeroporto de Guarulhos (SP), conforme recente recomendação da ministra do turismo.

É preciso iniciar urgentemente o processo de privatização do setor aéreo brasileiro, sob risco de colapso total! Não se trata apenas do desconforto causado aos passageiros, o que já seria motivo suficiente, mas também das perdas causadas pela interrupção de negócios, atrasos na entrega de mercadorias e documentos e aumento do risco de acidentes. Vamos esperar que caia outro avião para tomarmos alguma atitude?

Prêmio IPEA-CAIXA 2007

Para quem se interessa por economia e finanças, o Prêmio Ipea-Caixa 2007 acaba de ser divulgado. Realizado desde 2004, nessa edição os temas serão:

  1. Mecanismos para a redução de desigualdades no Brasil.
  2. Determinantes do crescimento de longo prazo no Brasil.
  3. Sistema financeiro e desenvolvimento econômico brasileiro.

O prazo para inscrição, que inclui a entrega de uma monografia de até 60 páginas, vai até 3 de setembro de 2007. Mais informações em http://www.ipea.gov.br/ipeacaixa .

domingo, julho 01, 2007

Ernst Mayr e a Filosofia da Biologia

A edição n°7 da revista “Scientific American História”, intitulada “O homem em busca das origens”, traz o artigo “O impacto de Darwin no pensamento moderno”, artigo este muito interessante e baseado em uma palestra de Ernst Mayr, quando do recebimento do prêmio Crafoord da Academia Real de Ciências da Suécia, em 1999.

Ernst Mayr (1904 – 2005), nascido na Alemanha, foi um dos mais importantes e influentes biólogos evolucionistas do século XX. Após iniciar seus estudos em medicina, em parte para atender a uma tradição familiar, Mayr concluiu um doutorado em ornitologia, em 1926. Logo após, foi convidado pelo banqueiro e zoólogo Walter Rothschild (1868 – 1937) para participar de uma expedição à Nova Guiné. Após retornar da expedição, em 1931, Mayr tornou-se curador do Museu Americano de História Natural, posição que ocupou até 1953, quando se uniu à Universidade de Harvard, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1975. Em 1942, Mayr publicou seu primeiro livro “Systematics and the Origin of Species” [1]. Ao lado dos trabalhos de Theodosius Dobzhansky (1900 – 1975), George Gaylord Simpson (1902 – 1984) e outros, esse livro contribuiu para a síntese entre a teoria da hereditariedade de Mendel e a teoria da evolução de Darwin, dando origem àquilo que se denomina atualmente de “síntese moderna”, “síntese evolucionária” ou, simplesmente, “neodarwinismo” (apesar das objeções de muitos, este blogueiro incluído, quanto ao uso do sufixo “ismo” para caracterizar um ramo da ciência). Mesmo após sua aposentadoria, Mayr não parou de escrever, publicando 14 de seus 25 livros após os 65 anos de idade.

Ernst Mayr também é considerado o inventor da moderna filosofia da biologia. Para Mayr, a biologia se distingue da física pela necessidade da construção de uma narrativa histórica. A biologia, diz Mayr, especialmente a biologia evolutiva, é uma ciência histórica, pois tenta explicar eventos que já ocorreram e, ao contrário da física e da química, experimentos e leis não são adequados a ela. Na biologia, em vez de leis, temos conceitos. Em seu artigo da Scientific American, Mayr afirma: “Nas ciências físicas, via de regra as teorias são baseadas em leis; por exemplo, as leis do movimento levaram à teoria da gravitação. Na biologia evolutiva, no entanto, as teorias são na maior parte baseadas em conceitos como competição, escolha de fêmeas, seleção, sucessão e dominação. Os conceitos biológicos, e as teorias neles baseadas, não podem ser reduzidos às leis e teorias das ciências físicas”.

A biologia é freqüentemente criticada por não ser científica da mesma maneira como a física é científica. Por exemplo, o filósofo Karl Popper (1902 – 1994), famoso por ter introduzido a falseabilidade como critério de demarcação entre ciência e não-ciência, afirmou, em 1974: “Cheguei à conclusão de que o darwinismo não é uma teoria científica testável, mas um programa metafísico de pesquisa – um esquema possível para teorias científicas testáveis” [2]. Embora tal afirmação tenha servido de munição aos criacionistas e anti-darwinistas desde então, de acordo com Mayr a suposição de que a biologia evolutiva deva ter o mesmo status científico da física não é razoável e nem mesmo necessária, pois a biologia evolutiva é científica à sua própria maneira. Popper, por outro lado, tem sido cada vez mais criticado por não ter compreendido o modo como os cientistas trabalham. Mesmo na física, a rainha dos popperianos, os cientistas não trabalham com o objetivo de expor suas teorias à refutação, pois mesmo os físicos gostam de mostrar que estão certos, não que estão errados.

Mayr também se opunha às tentativas de abordagem matemática da teoria da evolução, tais como a de J.B.S. Haldane (1892 – 1964), que figura, ao lado de Ronald Fisher (1890 – 1962) and Sewall Wright (1889 – 1988), como fundador da genética populacional. Mesmo que tal objeção se deva parcialmente à falta de conhecimento matemático de Mayr, e que desde então a genética populacional tenha experimentado grande desenvolvimento, não podemos perder de vista a idéia geral, que é a de que a biologia não pode ser reduzida à física, nem mesmo à química. Logo, como afirmei recentemente nesse blog [3], a idéia de que a teoria da evolução deva ter uma estrutura algébrica para ser caracterizada como científica não é relevante.

Em seu artigo republicado na Scientific American, Mayr enumera ainda os princípios básicos introduzidos por Darwin em 1859, com a publicação da Origem das Espécies, e que tanto abalaram o mundo científico e filosófico de então:

1) O darwinismo rejeitou todos os fenômenos e causas sobrenaturais, abrindo espaço para a explicação estritamente científica de todos os fenômenos naturais.

2) O Darwinismo, ao introduzir o pensamento populacional, refutou a tipologia, ou seja, o conceito, originado com os gregos antigos, de que toda variedade da vida consistia de um número reduzido de “tipos” ou “essências”, cada uma formando uma classe.

3) A teoria da evolução tornou desnecessária qualquer força de origem teleológica, ou seja, qualquer força ou “causa final” que conduza a vida a graus de perfeição cada vez mais elevados.

4) Darwin eliminou o determinismo. Embora os físicos ainda tenham demorado mais de sessenta ou setenta anos para concluir que “Deus joga dados”, Darwin já aceitava a aleatoriedade como produtora da variabilidade da vida.

5) Embora Darwin tenha removido o homem do lugar central a ele reservado pelas religiões judaico-cristãos, o darwinismo possibilitou uma nova visão da humanidade, onde o homem surge como o único animal dotado de linguagem verdadeira, com gramática e sintaxe, e de uma cultura rica.

6) Darwin possibilitou o estabelecimento de fundamentos científicos para a ética, pois a seleção natural favorece o comportamento altruísta.

Não é surpresa que a teoria da evolução tenha estremecido os fundamentos sobre os quais se assentava o refinado mundo do século XIX, com sua visão antropocêntrica e baseada na crença de que o progresso era a força propulsora da humanidade.

Aos biólogos, peço desculpas por mais essa incursão em um terreno alheio à minha experiência profissional, mas, dada a importância e efervescência do assunto, pretendo continuar.

_________________________

[1] MAYR, E. Systematics and the Origin of Species. Harvard University Press (reprint), 1999.
[2] POPPER, K. Autobiography. In: The Philosophy of Karl Popper, Part I, Open Court, 1974.
[3] ALMEIDA, A.A. Sobre a palestra de Eduardo Lütz: “Ciência, Fé, Evolucionismo e Criacionismo”. 2007. Disponível em: <http://alvaroaugusto.blogspot.com/2007/06/sobre-palestra-de-eduardo-ltz-cincia-f.html>.