sexta-feira, junho 20, 2003

O PT e o fim da infância

O Papel e a Estrada
Depois de quase um semestre das eleições presidenciais de 2002, vemos que todo o pânico causado no mercado financeiro pela eleição de Lula era realmente infundado, como afirmava o próprio PT. A política econômica não mudou, não houve o “grande caos”, não houve moratória da dívida externa, a inflação não explodiu. De fato, até Fernando Henrique escreveu para reclamar de exageros na condução da economia que o governo DELE criou. Mas talvez não devêssemos ser tão rápidos no julgamento. Afinal, o PT está apenas vivenciando aquilo que todo partido político que já ocupou o poder conhece muito bem: um choque de realidade. Em campanha, todo candidato a presidente afirma que vai “viajar a 200 km/h nessa auto-estrada chamada Brasil”. Uma vez eleito, contudo, o candidato percebe que a estrada não é tão larga quanto parecia, que o tráfego em sentido contrário é maior do que o previsto, que o asfalto é esburacado demais e que nem todos estão dispostos a ajudar o governo a atingir a velocidade máxima. Durante a campanha, na “hora do papel”, é freqüente que os planejadores imaginem uma situação ideal, ou próxima do ideal. Mas na “hora da estrada” aparecem restrições de todos os tipos. Todos cometemos esse tipo de erro em algum ponto da vida, e ele já foi responsável pelo naufrágio de muitos sonhos dourados.

Um bom exemplo da confusão entre “papel e estrada” foi dado pelo próprio Lula várias vezes durante a campanha. Ao tentar responder como ele planejava elevar o valor do salário mínimo, ele freqüentemente comentava que “basta acabar com a corrupção e teremos dinheiro para duplicar o salário mínimo”. Muito bem, só que elevar o valor do salário mínimo é um problema concreto e muito bem definido. Já a corrupção é um problema sistêmico, governado por milhares de variáveis interdependentes e muito difícil de ser atacado. Na hora do papel, acabar com a corrupção parecia solução viável para levantar dinheiro. Na hora da estrada, é melhor adotar soluções mais práticas, como a reforma da previdência, a reforma tributária e outras.

O Piloto Sumiu!
A verdade é que o governo atual, assim como qualquer outro, tem pouco espaço de manobra em vários segmentos. Por exemplo, para tentar equilibrar o déficit público, o governo se compromete a manter um superávit primário de 4,45% do PIB, e usa as taxas de juros elevadas para tentar evitar a volta da inflação, ao mesmo tempo em que fica de olho em uma recessão iminente. Ao fazer isso, as comparações com a política fiscal do governo anterior são inevitáveis. Lula afirma que está apenas conduzindo a economia legada a um novo “espetáculo de crescimento”, mas não poderá usar essa desculpa durante muito tempo. O próprio espetáculo de crescimento parece cada vez mais remoto, especialmente depois de um primeiro semestre no qual a economia praticamente parou. Isso nos faz pensar que governo esteja apenas usando aquela receita perversa para deixar um cachorro feliz: bata, bata, bata, e volte a bater. Quando você parar de bater, o cachorro ficará feliz (*).

Outra questão que mostra as limitações de atuação do governo é a dívida externa. Quando estava na oposição, o PT se posicionava contra o pagamento da dívida, assinava manifestos e organizava plebicitos a favor da moratória. Uma vez no governo, a hipótese da moratória, sempre pronta a ser enunciada pelos radicais do PT, tornou-se impensável. Felizmente, o governo se deu conta de que precisa do apoio mundial na condução da economia, e talvez tenha se lembrado do estrago feito ao país durante o governo de José Sarney, estrago do qual ainda não nos recuperamos completamente. Assim, o futuro de Lula, que já não parece tão brilhante quanto parecia em janeiro de 2003, dependerá do que o Banco Central e o Comitê de Política Monetária puderem fazer para que o país volte a crescer. Foi assim com FHC e não poderia ser diferente com Lula, mesmo que possa parecer frustrante aos eleitores.

Parte dessa frustração decorre de um raciocínio presunçoso a respeito dos poderes da democracia. Nas democracias modernas, há claramente dois sistemas democráticos representativos em operação, e os eleitores fazem parte de apenas um deles. O primeiro deles é o sistema das urnas. A cada quatro anos, os partidos políticos se organizam, escolhem candidatos e os eleitores são convocados a votar em um deles. Ocorre que, do ponto de vista do eleitor, o processo de votação é irracional: ele deve se deslocar alguns quilômetros, passar algum tempo na fila e tomar uma decisão que, comparada à decisão de outros milhões de eleitores, é insignificante. Assim, os eleitores fazem um investimento emocional no processo eleitoral, como única maneira de dar relevância a ele. Em conseqüência, o processo eleitoral acaba não sendo tão racional quanto se pretendia.

Esse primeiro sistema representativo, o sistema eleitoral, opera em regime de “salvas”, ou seja, ele é acionado somente a cada quatro anos e os eleitores não interferem nele depois. Mas há um outro sistema representativo muito mais poderoso e eficiente, que opera em regime contínuo. Ele opera durante as eleições e depois delas, e interfere de maneira muito mais eficiente nos destinos de uma democracia. Trata-se do sistema de negociação de influências junto aos políticos e, a não ser em situações excepcionais, o cidadão comum está totalmente excluído dele. Esses negociadores, que podem ser lobistas profissionais, empresários, grupos econômicos, setores organizados da sociedade, etc, exercem pressão constante junto a ministros, senadores e deputados na tentativa de obter vantagens setoriais importantes. Em algumas situações, as atividades desse sistema de pressões servem para indicar ao governo, freqüentemente isolado, qual caminho seguir. Em outras situações, esse sistema pode causar danos a alguns setores,ou mesmo ao país, especialmente quando a pressão é feita por meio de corrupção. De qualquer forma, o eleitor comum, após depositar seu voto na urna, segue seu caminho, certo de ter tomado a decisão correta e largamente ignorante do grande jogo que é jogado pelos donos do poder.

As democracias atuais não são monarquias absolutistas, onde é fácil identificar quem está no controle. Em uma democracia ninguém está no controle, ou melhor, o sistema de pressões está no controle e isso vale tanto para o governo do PT quanto para qualquer outro. Cedo ou tarde Lula aprenderá aquilo que FHC já sabe há anos: a democracia cobra um preço muito elevado daqueles que a praticam, pois é impossível agradar a todos. Ao cidadão comum pode parecer surpreendente que o piloto tenha sumido e que ninguém esteja no comando do avião, mas, na verdade, a situação não é nova. Os chefes dos estados modernos atuam muito mais como atores, como representantes de uma dada situação, do que como verdadeiros comandantes da nação. A nação, essa entidade abstrata e quase medieval, comanda a si mesma, por mais assustador que isso possa parecer.

O Leão de La Fontaine
Após 20 anos de estrada, o PT finalmente chegou ao poder e a longa infância chegou ao fim. Contudo, o PT nunca teria conseguido acesso à Presidência da República com um discurso radical de sindicalistas raivosos, e teve que se reinventar. Em certo sentido, o PT não teve escolha: ou abrandava o discurso e tentava uma eleição séria, ou se contentava em continuar como oposição eterna. Da mesma forma que faz qualquer candidato a emprego, o PT teve que mudar e se adaptar aos tempos modernos.

Parte dessa mudança foi feita pela mera aplicação de várias camadas de maquiagem eleitoral. Em campanha, Lula chorou, apelou para a emoção (“a esperança vencerá o medo”), arquitetou a campanha “Fome Zero”, um requinte na união da de demagogia com ingenuidade logística e econômica. Passado o tempo do palanque, contudo, Lula já começa a mostrar suas limitações, afirmando que não precisa “falar inglês” para ser respeitado e que basta ter caráter, ética e um projeto concreto para que as coisas aconteçam. A maquiagem eleitoral começa a cair, como sempre cai.

Outra parte da mudança, muito mais perigosa, foi feita por meio de alianças com outros partidos. Alianças fazem parte do jogo político e são necessárias em qualquer eleição, seja no Brasil, nos EUA ou em qualquer outro lugar. Mas esse não era o estilo do PT, sempre radical e purista. De fato, muita gente apostou que o PT não seria capaz de adotar o caminho das alianças, e que acabaria perdendo novamente as eleições presidenciais. Feitas as alianças, ganha a eleição, o PT tem agora que satisfazer uma multiplicidade de interesses antagônicos, desde vice-presidentes que se colocam na posição de presidente do Copom, até radicais que se posicionam contra qualquer reforma proposta pelo governo.

Há um risco muito grande envolvido em qualquer processo de mudança. Esse risco não significa que se deva abandonar a tentativa de mudança, mas é freqüentemente ignorado por aqueles que estão apenas em busca de queijo. Jean de La Fontaine, em uma de suas fábulas, esclarece o perigo:

Um leão havia se apaixonado pela filha de um lenhador. A bela, convencida das sinceras intenções do leão, pediu-lhe que este fosse falar com o pai. Ao ouvir o leão pedindo pela mão de sua filha, o lenhador disse: “Não. Suas presas são muito grandes e afiadas”. O leão retirou-se, extraiu todas as suas presas e voltou ao lenhador, que disse: “Suas garras são muito perigosas”. O leão retirou-se, extraiu suas garras, e voltou a falar com o lenhador. Este, vendo que o leão não representava mais ameaça alguma, esmagou-lhe a cabeça.

É este o preço que o mundo cobra daqueles que perdem sua identidade durante o processo de mudança. Os próximos anos nos mostrarão se esse é o caso do PT.

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(*) Nenhum animal foi ferido durante a preparação desse artigo. O autor vive na companhia de quatro cachorros e é completamente avesso à violência contra os animais.

segunda-feira, março 03, 2003

Antropomarketing, de Clemente Nobrega

Clemente Nobrega é uma ave rara no mundo empresarial brasileiro. Físico e Mestre em Engenharia Nuclear pela UFRJ, trabalhou na Nuclebrás durante 12 anos, até dar uma guinada na carreira em 1987 e se tornar um executivo de sucesso da Amil Assistência Médica. Ele confessa que demorou quatro anos para aceitar o convite do presidente da Amil, que teria estimulado seu interesse por outras áreas do conhecimento, dentre as quais o Marketing. Uma vez tomada a decisão, contudo, ele progrediu até se tornar diretor de marketing, contribuindo para fazer da Amil uma empresa de um bilhão de dólares.

A estréia de Clemente como escritor ocorreu em 1996, com o lançamento do best seller "Em Busca da Empresa Quântica". O estilo do autor é fácil e leve. Clemente é ágil, escreve e fala rápido, empolga o leitor não com promessas mirabolantes e histórias de ratos em busca de queijo, mas sim com uma visão única, aguçada e muitas vezes crua do mundo. Contudo, temo dizer que muita gente pode não querer ler o que ele escreve. De fato, em outras épocas ele teria sido queimado na fogueira antes de ter escrito o segundo de seus quatro livros. E, por razões que ficarão mais evidentes a seguir, acho que um marketeiro qualquer teria sido aquele a acender a fogueira.

Eu descobri "Em Busca da Empresa Quântica" por volta de 1997, perambulando pelas livrarias de Curitiba na hora do almoço. Tenho que confessar que eu estava muito mais interessado em física do que em administração e marketing e fui atraído pelo título do livro e pelo currículo do autor. Acabei encontrando um livro interessantíssimo, muito diferente daqueles livros acadêmicos de marketing. Mesmo assim, o título me deixou preocupado e escrevi para o autor comentando essa preocupação. Metáforas quânticas são escorregadias e é muito fácil encontrar livros "quânticos" cheios de má fé ou que simplesmente mostram que o autor não entende muito de física quântica e está só se valendo da onda do momento. Para minha surpresa, Clemente respondeu, dizendo que, até aquele momento, poucas pessoas haviam comentado o assunto, incluindo eu e um dos irmãos dele (ele parece ter irmãos espalhados por todas as áreas do conhecimento).

Na segunda edição de "Em Busca da Empresa Quântica", de 1999, Clemente inseriu uma introdução onde ele afirma: "É verdade que tive minha cota de problemas por causa do título". Mas ele garante que o título é marketeiro, pois desperta a curiosidade e soa bem. De fato, se não fosse o título, talvez eu não tivesse lido o livro. Além disso, o paralelo entre a física quântica e o mundo das empresas refere-se somente à linguagem usada pela física quântica, e não ao princípio da incerteza de Heisenberg, ao princípio da exclusão de Pauli e a outros fenômenos que só têm sentido no mundo atômico. A física quântica teve tanto sucesso em compreender o mundo microscópico por usar uma linguagem diferente da física newtoniana. Analogamente, precisamos de uma nova linguagem para entender o mundo das empresas modernas.

"Antropomarketing" é o livro mais recente de Clemente Nobrega, lançado no final de 2002. Clemente continua falando sobre linguagem e aproveita para voltar a alguns de seus assuntos preferidos: marketing, natureza humana, internet, teoria dos jogos, ciências do caos e da complexidade. A maneira como assuntos tão diversos são costurados para tecer um único pano de fundo é a atração principal do livro.

"Antropomarketing" surgiu de um grupo de discussão na internet, chamado pelo autor de "grupo dos porquês". Os participantes ocupavam cargos importantes em empresas e universidades e tinham formações distintas. Havia gente formada em história, antropologia, biologia, filosofia, engenharia e economia. A intenção dos participantes era encontrar respostas não triviais para várias questões do dia-a-dia e do mundo moderno. Por exemplo, "por que devemos ir ao supermercado para comprar uma caixa de cereais?" Uma questão leva a outra e quem já participou de um grupo desses sabe que, uma vez formada a massa crítica, ninguém é capaz de segurar as discussões que se seguem.

Mensagens são mais importantes que produtos

Clemente começa argumentando que as pessoas não compram produtos por causa de necessidade. No início da década de 90, a moda empresarial vinda do oriente era a Qualidade Total e o assunto do momento era "temos que satisfazer as necessidades dos nossos clientes". Clemente argumenta que a adoção de novos produtos não se dá por necessidade, mas por instinto de imitação, curiosidade, fantasia, brincadeira. De fato, se necessidade fosse a questão central, os egípcios teriam inventado o trator, os romanos a bomba atômica e os persas o telégrafo ou o rádio ou a internet. A verdade é que a adoção de novidades é um assunto muito complexo e nenhum guru, nenhum software, nenhuma metodologia pode prever se um produto novo dará certo ou não. Outro problema é que atender as necessidades dos clientes freqüentemente é fácil. Difícil é fazer isso sem quebrar. O assunto merece discussão e Clemente apresenta alguns insights interessantes.

Um desses insights é que mensagens são mais importantes que produtos. O soft é mais importante do que o hard. A derrocada da Encyclopaedia Britannica mostra bem o que pode acontecer quando se confunde essas coisas. Em 1990, as vendas da Britannica atingiram US$ 650 milhões, o recorde de vendas em duzentos anos de uma história de liderança de mercado, crescimento estável e enormes margens de lucro. Então, em cinco anos essa marca grandiosa quase foi destruída pelo mercado de computadores e CD Roms. Os executivos da Britannica não conseguiam acreditar que o seu negócio, que envolvia um produto primoroso de altíssima qualidade, estivesse ameaçado por enciclopédias eletrônicas de pouco conteúdo. Parte da confusão é que os pais de crianças e adolescentes, os principais compradores da Britannica, não estavam interessados em conteúdo, mas sim em algo que mostrasse que eles estavam fazendo algo pela educação de seus filhos. E hoje, a melhor forma de apaziguar essa culpa não é comprando uma maciça coleção de livros, mas sim comprando um computador. Comprando um computador, ganha-se uma enciclopédia de brinde (a Encarta) e, de quebra, ganha-se acesso a todos os computadores do mundo que estejam conectados à internet. Outra parte da confusão feita pelos executivos da Britannica foi que eles pensavam que estavam concorrendo contra um computador (o hard), quando, na verdade, estavam concorrendo contra uma rede de computadores (o soft).

Em contrapartida, muitos produtos que constituem uma necessidade real podem encontrar dificuldades em se impor no mercado. Clemente conta que a história da adoção da geladeira foi lenta e gradual. Em 1910 já havia empresas vendendo o produto, mas os problemas tecnológicos eram enormes. Na Europa, até mesmo Albert Einstein esteve envolvido no projeto de um refrigerador que não usasse amônia, a substância refrigerante usada por volta do início do século, mas altamente tóxica [1]. A demanda por refrigeradores era crescente, mas não existia um modelo de negócios definido para o setor. Ninguém sabia que tipo de empresa deveria fabricar e vender refrigeradores, tanto que até mesmo a General Motors esteve envolvida com isso. A General Electric, mais afeita a utilidades domésticas, também entrou no negócio de refrigeradores, mas foi a Sears que deu a cartada final. E a estratégia da Sears não se valeu somente de um produto adequado. Na verdade, o produto da Sears era igual ao dos concorrentes. A estratégia da Sears era baseada no marketing centrado naquilo que ela tinha de melhor: sua cadeia de distribuição. As vantagens na distribuição acarretavam em preços menores para o consumidor final. E o preço baixo associado à reputação da Sears tornaram o sistema imbatível. Hoje, o refrigerador doméstico é encontrado em 99,5% dos lares norte-americanos.

Outro fator que dificultou a adoção do refrigerador é que nos EUA do final do século XIX já havia uma indústria de gelo doméstico bem estabelecida. O primeiro refrigerador doméstico comercialmente viável foi patenteado pelo inventor norte-americano Jacob Perkins em 1834 e usava éter como líquido refrigerante. A invenção não foi muito bem recebida nos EUA, pois, por volta de 1890, a indústria norte-americana do gelo extraído de rios e lagos já estava exportando 25 milhões de toneladas anuais. É difícil imaginar, hoje em dia, atividade menos eficiente do que essa: vender gelo em uma época sem refrigeradores. Ainda assim, a indústria do gelo parece ter constituído uma importante barreira de entrada para o setor de refrigeração doméstica [2].

Deixando de lado as barreiras de entrada, verificamos que a parte soft (o conceito de rede de distribuição e o uso que se faz dela) é mais importante do que a parte hard (no caso, o refrigerador, mas poderia ser qualquer produto) do negócio. Clemente deve deixar furiosos alguns publicitários e marketeiros ao insistir que "Em cursos de marketing, ninguém trata de mercados, só tratam de ... extrato de tomate, entende? Mercados são sobre seres humanos conectados." Outras vezes, ele vai ainda mais longe: "Marketing será cada vez mais desafiador, mas o departamento de marketing vai acabar, e vai levar os marketeiros junto."
Uma das ferramentas de marketing que Clemente tem atacado constantemente são as pesquisas de mercado. Segundo ele, tais pesquisas só servem para descobrir o óbvio e só se aplicam a situações altamente estruturadas, como acontece em pesquisas eleitorais. No mundo dos produtos e empresas a situação nunca é tão simples. Os mercados não são mais tão homogêneos e passivos para que uma pesquisa de mercado funcione. Afirmações desse tipo, vindas de uma pessoa com tanta vivência em marketing, devem deixar as empresas de pesquisa de cabelo em pé.

A difícil arte de ficar vivo

Nossa cultura ocidental é fortemente baseada nas idéias de evolução, de aprimoramento, de progresso. Aprendemos a pensar que nosso longo caminho desde as savanas africanas até a modernidade da internet foi um caminho suave e contínuo. Tendemos a pensar que a evolução da era agrícola para a era industrial e para a era da informação foi uma evolução "natural". Esse pensamento é confortante, pois conduz à idéia de que o que vem pela frente é necessariamente melhor do que o que temos hoje. Clemente argumenta que as coisas não são assim tão simples. A agricultura, por exemplo, uma das tecnologias mais decisivas para a história da humanidade, pode ter sido simplesmente obra do acaso. Além disso, há consideráveis evidências de que a vida era muito mais fácil antes da agricultura. Esse fato é relatado metaforicamente no livro do Gênesis, quando Adão e Eva são expulsos do paraíso. A expulsão do paraíso representa, ao mesmo tempo, a aquisição da consciência e a adoção da agricultura [3].

Assim, embora não seja possível determinar como a agricultura apareceu, ela determinou que quem não a adotasse não seria capaz de deixar descendência suficiente para continuar com a vida nômade. Clemente observa que as únicas regiões do planeta onde o nomadismo ainda existe são aquelas imprestáveis para a agricultura, como o ártico e os desertos.

A agricultura, fixando o homem ao solo e possibilitando a formação das primeiras comunidades, teve um enorme impacto civilizatório. A humanidade evoluiu, mas nossa mentes não. Nossas mentes continuam habitando as savanas. Clemente justifica esse fato dizendo que nós somos "Flintstones às avessas". Os Flintstones são personagens pré-históricos com make-up moderno. Nós somos modernos, mas nossas mentes são pré-históricas. Isso não é só figura de linguagem. O estudo da estrutura do cérebro humano mostra que há uma "camada" mais recente (o neo-córtex) que envolve duas camadas muito mais antigas (o sistema límbico e o complexo réptil). E há muitos argumentos de que o neo-córtex está a serviço das outras duas partes, e não o contrário [4].

A herança biológica comum e a evolução da cooperação decorrente do processo civilizatório fizeram aparecer uma "natureza humana comum": seres humanos comportam-se da mesma forma em todos os lugares do planeta. É por isso que autores como Shakespeare, mesmo levando-se em conta toda a genialidade do bardo, continuam tão atuais mesmo na era digital. Shakespeare escreveu sobre essa natureza humana comum a todos nós, e que é a mesma na Dinamarca de Hamlet, na Verona dos Capuletos e Montecchios ou nos corredores do Congresso Nacional e na asa oeste da Casa Branca. Essa natureza humana é perceptível a quilômetros de distância e a sua compreensão, segundo Clemente Nobrega, é essencial em marketing.
Uma idéia a respeito da natureza humana que permeia todo o livro vem de uma frase de J.D.Bernall [6]: "Há dois futuros: o futuro do desejo e o futuro do destino; a razão humana nunca aprendeu a distingui-los."

O futuro do destino vem da biologia. Todos os seres vivos estão sujeitos a ele. No caso dos seres humanos, parte do destino é traçada não só pelos genes, mas também pela cultura. O futuro do desejo é exclusividade dos seres humanos. Somos o único animal capaz de moldar nosso próprio destino. É necessário entender o futuro do destino e construir o futuro do desejo. Pode ser assustador, mas não temos como escapar disso.

Jogos e Reputação

A constatação de que a civilização humana só é possível por meio da cooperação permite que Clemente Nobrega entre em um dos seus temas prediletos: a teoria dos jogos. O assunto ganhou certa notoriedade recentemente, por ocasião do lançamento do filme "Uma Mente Brilhante", em 2001, que é uma biografia romanceada do matemático John Nash. No Brasil, o assunto também tem sido tratado pelo administrador Raul Marinho em uma série de artigos publicados no site da revista Você S/A. Em 1998, contudo, Clemente Nobrega já dedicava consideráveis trechos de seu livro "Glorioso Acidente" a discussões sobre teoria dos jogos. Enquanto Glorioso Acidente é um livro de divulgação científica, escrito para fazer frente a uma "oferta explosiva de esoterismos, misticismos, espiritualismos e outros ismos" [5, pp. 11], em "Antropomarketing" o foco é o estabelecimento da reputação de pessoas e empresas.

Vou deixar os aspectos mais técnicos de lado e registrar simplesmente que a teoria dos jogos mostra como podemos passar de situações do tipo ganha-perde (jogos de soma zero) para situações do tipo ganha-ganha (jogos de soma não zero ou jogos colaborativos). Jogos envolvem sempre interesses conflitantes e a colaboração só pode surgir quando há reciprocidade entre jogadores. O altruísmo é sempre recíproco, nunca totalmente desinteressado.

O mundo empresarial nada mais é do que um imenso jogo. Se quiserem ficar vivas, as empresas modernas deverão ser capazes de mostrar aos outros jogadores (clientes, fornecedores, acionistas, governo) que são confiáveis. Terão que construir uma reputação de confiabilidade. Clemente Nobrega começou a esboçar esse ponto de vista em um artigo de maio de 2002 intitulado "O Marketing Bom Caráter" . Até onde sei, o termo "antropomarketing" foi introduzido nesse artigo, significando o marketing de uma era digital de informação abundante, onde nada pode ser escondido por muito tempo.

Algumas pessoas que leram o "Antropomarketing" ou assistiram o seminário de lançamento me disseram que o assunto da reputação é óbvio. Segundo essas pessoas, as empresas e instituições estariam "naturalmente" interessadas em construir uma boa reputação. Fico com o pé atrás sempre que aparece uma reposta "aristotélica" dessas. Se isso é tão óbvio, por que a Enron não percebeu? Se é tão óbvio, por que o Congresso Nacional não percebe? Afinal, os deputados federais acabam de assinar uma lei aumentando as próprias verbas de gabinete para cerca de R$ 35 mil mensais, o que representa um aumento de 40%, enquanto dizem que não haverá recursos para dar mais do que 4% de reajuste aos funcionários públicos federais!

Além disso, minha observação cotidiana me diz que ainda há muitas empresas por aí em busca do "grande trouxa". Diariamente eu recebo e-mails fazendo propaganda de "suco de clorofila", "magnetizadores de combustível", "viagra natural", sem falar em serviços de astrologia, numerologia, grafologia e outros métodos divinatórios do tempo do êpa. As grandes empresas também não vão muito longe. Distribuidoras de energia demoram duas horas para enviar um eletricista armar novamente uma simples chave-fusível, tarefa que demora cinco minutos sob chuva torrencial. Empresas de telecomunicações deixam os clientes pendurados durante horas no serviço 0800, passando o coitado de atendente para atendente até dizer que o caso não tem solução. Bancos promovem venda casada como quem vende cerveja na beira da praia. Sinceramente, não sei onde está a busca por reputação!

A verdade é que pode até parecer óbvio que as empresas devam estabelecer uma reputação de confiabilidade. Como fazer isso é outra história! Em uma grande empresa, o estabelecimento da reputação exige liderança dinâmica, coordenação de dezenas de departamentos que falam línguas diferentes, redução de custos e um canal eficiente de comunicação com o mercado. A verdadeira necessidade do cliente é a necessidade de ser respeitado, mas, apesar de todo o falatório, isso ainda está longe de acontecer. A maior parte das organizações centradas no cliente são, na verdade, centradas apenas no bolso do cliente.

Um traço comum a todos os livros e artigos de Clemente Nobrega é a falta de receitas prontas. Isso pode parecer um tanto frustrante para o leitor acostumado a ler vários gurus empresariais, mas a intenção é essa mesma. Não há receitas prontas porque o mundo tornou-se complexo demais para isso. Cada empresa, cada pessoa, deve encontrar o próprio caminho. A pergunta "o que eu faço agora?" só pode ser respondida por meio de tentativas e erros, aprendendo-se com os erros e incorporando-se o aprendizado a cada etapa. Clemente faz um diagnóstico sem maniqueísmos e, no máximo, dá algumas dicas e orientações gerais. Mais do que isso seria relegar os seres humanos à condição de ratos em busca de queijo.

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[1] A. Einstein, um físico teórico da mais alta estirpe, foi também co-autor de publicações experimentais que tratam de refrigeradores, aparelhos de audição, giromagnetismo e da permeabilidade de membranas para colóides. A invenção do "refrigerador de Einstein" teria ocorrido entre o final da década de 20 e início da década de 30, em colaboração com Leo Szilard. Os dois físicos conseguiram registrar 45 patentes acerca de três modelos diferentes de refrigeradores (Einstein devia estar bem a par do processo de registro de patentes, pois começou a vida profissional como examinador da repartição de patentes de Berna, na Suíça). O fato é citado por Abraham Pais em "Subtil é o Senhor", Gradiva Publicações, Lisboa, 1992, pp. 593. Há também uma referência interessante em Einstein's Refrigerator.

[2] Por outro lado, nos trópicos não havia indústria do gelo, mas também não havia demanda por refrigeradores. A necessidade pelo produto certamente estava lá, mas o nível de desenvolvimento dos países tropicais no início do século XX não era suficiente para sustentar uma indústria de refrigeradores. Nessa época, o único país sem indústria de gelo e com demanda por refrigeradores parece ter sido a Austrália. O clima quente e o hábito australiano de beber cerveja desenharam um cenário adequado para que o refrigerador comercial aparecesse, o que aconteceu em 1856, devido aos esforços do jornalista e inventor James Harrison.

[3] Em "Os Dragões do Éden", livro ganhador do prêmio Pulitzer de 1978, Carl Sagan traça uma vigorosa metáfora entre a aquisição da consciência e os contos do Gênesis.

[4] Carl Sagan, novamente em "Os Dragões do Éden", descreve com detalhes a estrutura e as funções de cada componente do "cérebro trino".

[5] Nobrega, C., "O Glorioso Acidente - A Ciência e o Acaso da Mente", Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1998.

[6] Bernall, J.D., "The World, the Flesh & the Devil: an Enquiry Into the Future of the three Enemies of the Rational Soul", 1929. http://www.cscs.umich.edu/~crshalizi/Bernal

domingo, março 02, 2003

Quem mexeu no meu queijo: uma análise crítica

Tomei contato com o livro "Quem Mexeu no meu Queijo" por volta do segundo semestre de 2001. Na época, não me pareceu leitura suficientemente importante para que eu me ocupasse dela, mas o livro sempre me perseguiu. Ele está à venda em farmácias e supermercados e, tenho que confessar, quase o comprei certa vez. Mas resisti bravamente à tentação. Recentemente, por volta do final de 2002, o livro do queijo começou a ser mencionado por vários participantes de várias listas de discussão e minha curiosidade foi aguçada.

O que se segue é uma análise pessoal desse livro que "mobilizou multidões", baseada na leitura de uma cópia cedida por um colega (sim, ainda não gastei meus preciosos trocados no livro!). Partes dela foram divulgadas em listas de discussão na internet, o que me causou muita dor de cabeça. Há muitos discípulos do queijo por aí! Ao leitor interessado, advirto que não se trata de desmontar um Hamlet ou um Ulysses, nem de qualquer outra grande obra da literatura universal. Shakespeare e Joyce já estavam por aqui muito antes de Spencer Johnson, e continuarão presentes depois que este último tiver desaparecido do mundo editorial.

Os norte-americanos são realmente gente esperta. Há anos eles nos vendem "fast food" e tentam nos convencer de que aquilo é comida de verdade. Consomem milhares de horas de futebol americano, boxe e baseball por ano, como se aquilo fosse esporte de verdade. Vendem-nos rap e hip-hop como se aquilo fosse música. Já faz algum tempo, também, que eles aprenderam a vender pequenas brochuras como se fossem livros. De fato, o livro "Quem Mexeu no Meu Queijo", um best seller de 1998, quando digitado com uma fonte de tamanho normal, não tem mais do que 20 páginas. Colocado em formato TXT, por exemplo, e eliminando os espaços em branco, sobrarão apenas 18 páginas, incluindo prefácio, dedicatória e toda a encheção de lingüiça usual. Para publicá-lo em formato de um livro de 96 páginas, foi necessário usar letras garrafais e formatar o texto em parágrafos curtos, de duas ou três linhas. Um cálculo rápido mostra que cerca de um terço do texto de 18 páginas é composto de espaço em branco. Fantástico! Irrelevância e espaço em branco à venda por apenas US$ 14 (US$10 em algumas
lojas eletrônicas e cerca de R$ 20 para a edição brasileira). Melhor do que essa idéia, nem mesmo aquela de enlatar ar da Amazônia e vendê-lo por um dólar.

Ao contrário do ar enlatado, esse livro sobre ratos, anões e queijo virou mania nos EUA e em outros países. Há vídeos e seminários de treinamento para quem estiver disposto a derreter o próprio cérebro como se fosse fondue. Várias empresas adotaram o livro como leitura obrigatória e embarcaram na onda da "mudança do queijo". E não se trata somente de empresas de pequeno e médio portes, mas também de gigantes de grosso calibre, como Laboratórios Abbot, Bell South, Exxon, Georgia Pacific, Lucent Technologies, Marriot Hotels, Mobil Oil, Texaco, além de hospitais e órgãos governamentais. Nem é preciso mencionar que o website do livro apresenta uma seção de venda de "produtos de queijo", no melhor estilo norte-americano: post it personalizado em forma de queijo suíço, canetas, camisas, canecas, calendários e até um planejador pessoal que custa a bagatela de US$ 110.

Eu imagino que um dos apelos do livro, se não o único, são as credenciais do autor. Spencer Johnson é bacharel em psicologia pela University of Southern California e MD (Medical Doctor) pelo Royal College of Surgeons. Ele é o autor de "O Gerente Minuto", um daqueles livros que as pessoas compram em aeroportos e rodoviárias quando as palavras cruzadas acabaram. Nessa mesma linha, seguiram-se "O Vendedor Minuto", "O Pai Minuto", "O Professor Minuto" e "A Mãe Minuto" e outros. Estimativas indicam que os livros de Johnson já venderam mais de 11 milhões de exemplares em todo o mundo. Contando que ele tenha recebido cinqüenta cents por livro (uma estimativa bem por baixo), ele deve ser atualmente o dono de uma pequena fortuna de US$ 5,5 milhões. Destes milhões todos, pelo menos um quarto deve ter vindo de "Quem Mexeu no meu Queijo". Minha estimativa, é claro, não leva em conta todos os milhões que devem ter vindo da venda de toda a parafernália associada ao livro. Auto-ajuda realmente é um grande negócio, e um excelente método para "auto-ajudar" o autor...

O prefácio do livro é escrito por Kenneth Blanchard, PhD, que também é co-autor de "O Gerente Minuto". Esses títulos acadêmicos confundem as pessoas. Elas pensam: "Puxa, o autor é MD, o livro foi prefaciado por um PhD. Deve haver algo de profundo aqui que eu ainda não percebi". Coisa parecida acontecia com as palestras de um certo palestrante motivacional brasileiro que se intitulava PhD (não estou dizendo que Spencer Johnson não seja MD). Esse palestrante retratava o óbvio, mostrava estatísticas erradas ou antigas, atirava-se apressadamente a conclusões duvidosas. Mas fazia tudo isso de uma maneira tão empolgante que deixava as pessoas confusas. Ninguém tinha coragem de declarar abertamente que a coisa toda não passava de ar quente, mas as "conversas de banheiro", logo após as palestras, não deixavam dúvidas de que muita gente só estava ali porque a empresa havia pago a conta. Além disso, sempre era uma ótima oportunidade para se livrar de um dia ou de uma manhã de trabalho! Naturalmente, não tenho idéia do que as mulheres falavam nessas conversas de banheiro, mas não deve ser nada muito diferente.

Isso não significa que devamos defenestrar todos os PhDs, MDs e MBAs. De fato, vários autores deliciosos, dentro e fora do Brasil, envergam títulos acadêmicos importantes, tais como Isaac Asimov, Richard Dawkings, Carl Sagan, Marcelo Gleiser, Clemente Nobrega e vários outros. O importante é ler o que eles escrevem e deixar os títulos acadêmicos de lado. Depois da leitura, compare o resultado com os títulos e, somente então, use estes últimos para certificar o autor. Certificar o autor antes da leitura é como um encontro às escuras. No mundo acadêmico, em particular, quando aceitamos a opinião de alguém com base apenas nas credenciais acadêmicas, estamos falando de um "argumento de autoridade". Coisa feia que já deixou muita gente boa em maus lençóis.

Além dos argumentos de autoridade, outro fator que me deixa preocupado é a homogeinização de opiniões em relação do livro do queijo. Comecei a ficar preocupado quando muita gente diferente, em muitas listas de discussão diferentes, começou a recomendar o livro. Há até mesmo versões DOC, PDF e RTF circulando por aí. Uma rápida pesquisa na internet mostra que a grande maioria das pessoas concluiu que o livro é realmente "uma parábola simples que revela verdades profundas sobre mudança". Isso é realmente incrível! Nem mesmo a Bíblia conseguiu tamanha unanimidade. Se os governantes mundiais aprendessem como fazer esse tipo de lavagem cerebral, todas as guerras seriam desnecessárias. De qualquer forma, fica aqui uma sugestão a George W. Bush: em vez de gastar US$ 300 bilhões para invadir o Iraque, basta enviar 20 milhões de cópias de "Quem Mexeu no meu Queijo" para os iraquianos, e estes serão imediatamente transformados em paçocas ambulantes. Depois é só pisar em cima e varrer...

O livro: um resumo comentado

Quando eu comecei a ler o livro, tarefa que não me tomou mais de meia hora, tive a impressão de que aquilo não passava de uma história para crianças. Depois de algumas páginas, contudo, percebi que, bem, aquilo não passava de uma história para crianças... É difícil saber o que é mais desconfortável: ler a história dos ratos e duendes (que se espalha por apenas 10 páginas e contém a "essência" do livro), ou ler o debate que se segue, envolvendo vários antigos colegas de uma turma de High School, dentre eles um tal Michael que é quem conta a história do queijo. Estes, supostamente, são os "seres pensantes" do livro, mas há uma superficialidade incômoda no que eles dizem, uma superficialidade indigna de seres humanos.

A história se passa em um labirinto habitado por dois ratos, Sniff e Scurry, e dois duendes, Hem e Haw. A tarefa dos quatro personagens é sair todos os dias em busca de queijo, que parece ser o único alimento desses pobres diabos. Talvez as confusões em que eles se metem sejam decorrentes da falta de proteínas adequadas, as quais estariam presentes em uma dieta mais equilibrada. Talvez também sejam decorrentes da falta de fibras, que causaria prisão de ventre. Mas isso é só especulação.

Os ratos, segundo o autor, usavam o "simples método da tentativa e erro". Aí está o primeiro problema do livro: o método da tentativa e erro não tem nada de simples e é usado universalmente em várias situações de pesquisa científica. Esse método deveria ser mais encorajado em nossas escolas. Não se trata, obviamente, do método de tentativas aleatórias como Johnson deixa subtendido. Mas esse assunto daria uma tese de mestrado e é melhor seguir em frente.

Um belo dia, grandes quantidades de queijo começam a aparecer em um lugar chamado Posto C. Todos os personagens adaptam-se imediatamente à essa situação, mudam-se para mais perto do Posto C e vivem uma vida feliz (até onde é possível levar uma vida feliz presos em um labirinto). Mas essa não é a mudança de que trata o livro. O problema é que em uma certa manhã, o queijo desaparece do Posto C e, frente a essa mudança, os personagens tomam atitudes diferentes.

Os ratos Sniff e Scurry partem imediatamente à procura de queijo em novos lugares do labirinto. Ao fim de algum tempo, acabam por encontrá-lo. Haw e Hew, duendes dotados de cérebros e que deveriam pensar melhor do que ratos, são mais lentos em perceber a mudança. Hem deseja ficar no território conhecido, aferrado às suas crenças e na esperança de que o queijo volte a aparecer no Posto C. Haw, por sua vez, procura adaptar-se à mudança e é dele que saem as fantásticas conclusões do livro. A primeira lição parece-me clara, mas não é mencionada
pelo autor: "Em situações de mudança, é melhor agir como ratos!". Bem, é isso que acontece nas empresas, não é? Quando começa a dança das cadeiras, os verdadeiros ratos são os primeiros a agir: apunhalam-se pelas costas, colocam a culpa em outros ratos, abandonam o navio, etc.

Durante seu lento processo de adaptação, o duende Haw começa a escrever "ensinamentos" nas paredes do labirinto. O primeiro deles é: "QUANTO MAIS IMPORTANTE SEU QUEIJO É PARA VOCÊ, MENOS VOCÊ DESEJA ABRIR MÃO DELE". Uma frase de efeito, mas que é na verdade uma tautologia e poderia ser escrita como "QUANTO MAIS IMPORTANTE SEU QUEIJO É PARA VOCÊ, MAIS IMPORTANTE SEU QUEIJO É PARA VOCÊ!"

Outra frase que vai parar na parede do labirinto é "SE VOCÊ NÃO MUDAR, MORRERÁ". Contudo, nem o autor e nem os duendes se esforçam muito para mostrar que a frase está incompleta. A verdade é que "SE VOCÊ NÃO MUDAR, MORRERÁ, MAS SE MUDAR, PODERÁ MORRER TAMBÉM!"

O mundo está cheio de empresas que se adaptaram à mudança e se deram bem, mas também está cheio de empresas que se adaptaram e morreram. A situação, portanto, não é tão simples quanto o Dr. Johnson deixa transparecer. Imagine que você fosse um grande fabricante de carroças e carruagens, vivendo nos EUA por volta do final do século XIX, quando os primeiros automóveis começaram a aparecer. O que você teria feito, face a essa enorme ameaça ao seu negócio? É fácil fazer o post mortem e dizer que você deveria ter abandonado as carruagens e começado a fabricar automóveis, mas quem poderia garantir que os automóveis dariam certo? Quem poderia garantir que as pessoas abandonariam ruas cheias de um cheiro infernal de esterco em favor de ruas cheias de um cheiro infernal de fumaça? Além disso, deixar de fabricar carruagens e passar a fabricar automóveis implicaria no investimento de grandes somas de dinheiro. Se o negócio não desse certo, o processo de adaptação à mudança somente teria acelerado a morte da empresa. De fato, na época de maior crescimento da Ford, por volta de 1910, existiam mais de 2.000 fabricantes de automóveis nos EUA. Alguns anos depois, só
existiam quatro. O que aconteceu com todos os outros fabricantes que se adaptaram à mudança?

Esse problema de não se saber a priori se devemos nos adaptar a uma mudança é o que Clayton M. Christensen chamou de "Dilema do Inovador", em um livro homônimo. Clemente Nobrega afirma que este é o melhor livro de administração escrito nos últimos 15 ou 20 anos [6]Chistensen também comenta que "É simplesmente impossível prever com qualquer grau razoável de precisão como inovações desse tipo (no caso, o microprocessador) serão usadas ou quão grandes serão seus mercados". O mundo real não é nada parecido com o mundo do queijo.

Voltando às frases que o duende Haw escreve nas paredes do labirinto, há uma particularmente intrigante: "O MOVIMENTO EM UMA NOVA DIREÇÃO AJUDA-O A ENCONTRAR UM NOVO QUEIJO". Mas como ter certeza disso? Claramente, o movimento em uma nova direção pode conduzir mais rapidamente a uma morte rápida. Há também frases com um toque New Age: "IMAGINAR-ME SABOREANDO O NOVO QUEIJO, ANTES MESMO DE ENCONTRÁ-LO, CONDUZ-ME A ELE". Sinto aqui uma incômoda lembrança dos gurus que dizem que a mentalização cria a realidade. Além disso, se o queijo é novo, e se o duende nunca teve contato com ele (no livro, há vários sabores de queijo), como ele poderia saber que sabor o queijo teria? Bem, pelo menos devemos ficar contentes que Johnson não tenha invocado os experimentos da Física Quântica ou milenares ensinamentos chineses para validar o que diz.

No fim do texto sobre ratos e duendes, que fica bem perto do começo, o duende Haw escreve na parede um resumo do seu aprendizado:

1) A MUDANÇA OCORRE - CONTINUAM A MEXER NO QUEIJO
2) ANTECIPE A MUDANÇA - PREPARE-SE PARA O CASO DO QUEIJO NÃO ESTAR NO LUGAR.
3) MONITORE A MUDANÇA - CHEIRE O QUEIJO COM FREQUÊNCIA PARA SABER QUANDO ESTÁ FICANDO VELHO.
4) ADAPTE-SE RAPIDAMENTE À MUDANÇA - QUANTO MAIS RÁPIDO VOCÊ SE ESQUECE DO VELHO QUEIJO, MAIS RÁPIDO PODE SABOREAR UM NOVO.
5) MUDANÇA - SAIA DO LUGAR ASSIM COMO O QUEIJO!
6) APRECIE A MUDANÇA - SINTA O GOSTO DA AVENTURA E DO NOVO QUEIJO
7) ESTEJA PREPARADO PARA MUDAR RAPIDAMENTE MUITAS VEZES - CONTINUAM
MEXENDO NO MEU QUEIJO.

Aí está uma receita fechada e enunciada à moda dos livros de auto-ajuda. Só que é também a receita perfeita para criar um autômato perfeito. A mudança ocorreu? Adapte-se! Ocorreu de novo? Adapte-se de novo e infinitum ad nauseum.

No prefácio do livro, Kenneth Blanchard diz que o queijo é uma metáfora para o que queremos ter na vida: um emprego, um relacionamento, dinheiro, uma casa grande, liberdade, saúde, reconhecimento, paz espiritual ou uma atividade como corrida ou golfe. A receita é que adaptar-se às mudanças é o caminho certo. Por outro lado, se você ficar questionando a mudança, será tratado como um cabeça-de-vento, como o duende Hem.

E é aí que surge o grande mecanismo de defesa do livro. Imagine uma reunião em uma empresa qualquer, onde um dos participantes (um consultor qualquer, mas fartamente nutrido com queijo) conta uma história de um executivo de uma empresa que riu dele quando sugeriu que adotassem o programa do queijo. A empresa entrou posteriormente em uma era revolucionária, o executivo em questão viu que não tinha mais lugar e foi afastado. Moral da história: livre-se das pessoas que resistem à mudança - e que não gostaram do livro - , ou simplesmente deixe que vão embora (tradução: torne o ambiente de trabalho insuportável para elas). Não resista à mudança, ou os discípulos do queijo o ridicularizarão e o chamarão de Hem. Por outro lado, se você for como Haw, e fizer tudo o que a empresa manda, e se adaptar direitinho a todas as mudanças, aí sim você terá lugar nas empresas do queijo!

Os caçadores-coletores do mundo do queijo

Um fato que fica evidente logo na primeira página do livro é que o mundo do labirinto jamais poderia servir como metáfora do mundo atual. O mundo de Hem, Haw, Sniff e Scurry é o mundo dos caçadores-coletores que percorriam as savanas africanas há mais de dez mil anos. Depois disso, o mundo passou pela revolução agrícola, pela revolução industrial e pela revolução da informação. Embora alguns grupos de caçadores-coletores ainda subsistam, no deserto do Kalahari, em Papua Nova Guiné e em outros lugares, a maioria esmagadora da humanidade
não é mais composta de indivíduos que passam os dias em busca daquilo que a natureza oferece. Nós aprendemos a domar a natureza e esse é o ensinamento fundamental que os habitantes do labirinto jamais aprenderam.

O mundo do labirinto é um mundo de nômades que nunca param para se perguntar porque o queijo aparece em tais e tais lugares. Eles nunca questionam quem coloca o queijo lá ou porquê. Nunca lhes ocorre como poderiam eles mesmos fabricar o queijo. Nunca se perguntam como poderiam sair do labirinto. Em resumo, eles nunca se perguntam como poderiam eles mesmos causar as mudanças, em vez de ficarem se adaptando, se adaptando, se adaptando.

Alguém pode argumentar que eu estou forçando demais e que o labirinto é apenas uma metáfora. Pode ser. Mas o problema é que metáforas podem ser perigosas. Metáforas são úteis para facilitar o processo de aprendizado, mas correm o risco de serem encaradas como a coisa real. Se tudo der certo, o leitor saberá fazer a transição para o novo, que é o que uma metáfora prega. Mas se não der certo, o leitor ficará preso em uma realidade artificial e altamente simplificada, da qual não tem nada a aprender.

Um mundo complexo avesso a receitas prontas

A receita básica dos livros de auto-ajuda é constatar que as pessoas estão perdidas e algumas estão suficientemente perdidas para gastar US$ 10 ou US$ 20 em um livro. De fato, as pessoas estão desesperadas. Vivemos em um mundo complexo que não para de mudar e muitos de nós - senão todos - perderam as referências. A pergunta que todos fazem é: "O que devo fazer da minha vida? Qual a receita?". O autor de auto-ajuda é o espertalhão que responde essa pergunta que nenhum psicoterapeuta de algum valor se atreveria a responder.

A raiz do nosso desconforto começou a nascer em algum ponto da década de 80, com o início da liberalização econômica, o fim da guerra fria e a fragmentação dos regimes socialistas. No decorrer de poucos anos, o mundo ficou maior e muito mais interconectado. As pessoas começaram a perceber que sempre tinham vivido em guetos. Mudança sempre houve na história da humanidade. O diferente agora - foi Alvin Toffler que esclareceu a questão - é a rapidez com que a mudança ocorre. A sensação de que havia uma receita pronta para cada problema acabou. Talvez nunca tenha existido, mas agora sabemos que acabou.

A única certeza que temos é que as coisas mudam e vão continuar mudando. Algumas mudanças não podemos evitar, como aquelas advindas de uma guerra no Oriente Médio ou do fato de se ter um partido de esquerda do poder. Mas as mudanças discutidas por Johnson parecem ser muito mais triviais do que essas. Do ponto de vista de um gerente que precisa administrar o moral durante uma fusão ou reestruturação empresarial, o livro do queijo parece ser um prato cheio, pois prega a receita simples de “adapte-se ou morra”. Essa falsa dicotomia, decorrente de uma supersimplificação do raciocínio, exclui alternativas adicionais. Em uma fusão de empresas, por exemplo, os funcionários podem decidir não se adaptar nem morrer, mas simplesmente pular fora. Uma alternativa mais trabalhosa poderia envolver tentativas de interferir no processo de mudança, o que certamente não é para todos.

Seres humanos não são ratos em busca de queijo. Nossas motivações e desejos são muito mais complexos. Freqüentemente não sabemos porque fazemos aquilo que fazemos. Freqüentemente não sabemos o que fazer em várias situações. Freqüentemente adaptar-se pode ser até a solução mais viável, mas encarar sempre a adaptação como o único caminho possível é indigno de seres dotados de cérebros muito maiores do que os de ratos.