domingo, setembro 16, 2001

Hoje sou americano, hoje sou muçulmano

Fiquei sabendo sobre o ataque aos Estados Unidos quando o primeiro avião atingiu o World Trade Center. Eu estava no escritório de um cliente, trabalhando ao computador e conectado à Internet por meio de uma rede de alta velocidade. O escritório praticamente parou à medida que as notícias iam se sucedendo. Primeiro um avião, depois outro, depois o Pentágono, o avião da Pensilvânia, a paralisação da Bolsa de Valores de São Paulo, a queda dos prédios, etc. Tudo trasmitido em alta velocidade.

Fora a tragédia em si, alguns fatos me preocuparam bastante desde aquela terçafeira. Primeiro, as crescentes manifestações apocalípticas e a referência a uma possível Terceira Guerra Mundial. Há que se descontar um certo grau de histeria e ansiedade, mas, a certa altura daquele dia, pareceu que todos os jornalistas haviam "pirado". Gente tida como séria falando de Armagedon não é uma cena boa de se ver. Até mesmo agora, depois que a poeira baixou um pouco, o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo, publicado na última página da revista Veja de 19 de setembro, faz menção sobre "ninguém ter dúvidas de que se trata da Terceira Guerra". Bem, eu tenho.

Nossa cultura ocidental é fortemente apocalíptica e as raízes de tal cultura quase se perdem no tempo. Seria necessário recorrer ao persa Zaratustra, criador da primeira religião onde se menciona a idéia de juízo final, para compreender tal cultura. O que se pretende, com a pregação de idéias apocalípticas, é simplesmente fazer uma "reengenharia na humanidade". A idéia é mais ou menos a seguinte: a humanidade que está aí é má e corrupta, sendo necessário substituí-la por outra, o que somente seria possível por meio de uma grande guerra, da intervenção divina, ou de ambos. Nada mais ilusório. Estamos condenados à nossa humanidade e nenhuma reengenharia irá mudar tal fato.

Quanto à Terceira Guerra Mundial, o próprio conceito é ultrapassado. As duas grandes guerras que tivemos até hoje foram travadas entre as grandes nações do globo, por isso foram mundiais. A noção de que poderia haver uma Terceira Guerra se deve ao período da Guerra Fria, quando o mundo era polarizado entre EUA e URSS. Hoje, com o desmantelamento da URSS e com a redução da Rússia a uma insignificância, o conceito de Guerra Mundial perdeu o sentido, ao menos enquanto não mexerem com a China. No momento não é este o caso e não haverá uma guerra mundial simplesmente porque não há contra quem declarar guerra.

O segundo fato que me preocupou foi a velha afirmação, pisada e repisada, de que a vítima mereceu o crime. A velha retórica antiamericanista de sempre, espalhada por dezenas de websites, salas de bate-papo e fóruns eletrônicos. Em meio à mesmice, encontrei um artigo de Contardo Caligaris, psicanalista e colunista da Folha de São Paulo com quem raramente concordo, que desvenda o mistério: "... atribuímos aos EUA as características que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos... Graças a esse artifício, podemos freqüentá-los dando livre curso ao nosso desejo de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que sejam um mal da cultura americana". Assim, o antiamericanismo é apenas um mecanismo de defesa engendrado com o objetivo de disfarçar o fato indigesto de que todos somos americanos e nos comportamos como eles. Especialmente hoje, também sou americano, pois o ataque aos EUA não foi somente um ataque a prédios e pessoas, mas sim um ataque à nossa cultura ocidental e a todos os nossos modelos mentais, construídos com sacrifício e assentados sobre as noções de respeito aos direitos civis, à liberdade e à individualidade.

O terceiro fato que me preocupou foi uma grande confusão entre o que é ser árabe, o que é ser palestino e o que é ser muçulmano. Na mente de várias pessoas, árabes e descendentes de árabes se tornaram imediatamente assassinos, como se todo americano branco, anglo-saxão e protestante (os WASPs) fosse membro da Ku Klux Klan. Árabe é somente quem nasce na Península Arábica, e mais ninguém. Chamar os palestinos de árabes seria o mesmo que chamar um brasileiro de português, só porque falamos a mesma língua. Finalmente, muçulmanos são os praticantes de uma das religiões que mais cresce no mundo, o islamismo, criado por Mohammad (traduzido incorretamente como Maomé) por volta de 600 d.C., e que já conta com cerca de 1,2 bilhão de seguidores. Tal religião, cujo livro sagrado é o Corão, baseia-se nos ideais de paz, misericórdia e perdão tanto quanto o cristianismo e o judaísmo, mas, sendo uma religião, pode ser distorcida da mesma forma que o cristianismo o foi para promover as Cruzadas e torturar pessoas durante a Inquisição. Um dos versículos do Corão, felizmente bastante citado ultimamente, diz: "Matar uma pessoa significa matar toda a humanidade e salvar uma pessoa significa salvar toda a humanidade". Ora, isso não é nada mais do que um preceito cristão! Contudo, em todas as religiões existem radicais e extremistas e foram eles que atacaram o World Trade Center e o Pentágono. O mundo muçulmano reprovou o atentado, assim como representantes de todas as outras religiões. É por isso que, hoje, também sou muçulmano.

Infelizmente, os conceitos de respeito aos direitos civis, à liberdade e à individualidade não existem nos países muçulmanos. Eles ainda não chegaram lá, mas não há razão para supor que não irão chegar. Não existe nada na religião islâmica que impeça o progresso social e científico. Mais que isso, o Islã até mesmo assegura direitos sociais e econômicos iguais para homens e mulheres, inclusive direito à educação, à expressão e ao voto. As raízes do atraso devem, assim, ser buscadas em outras áreas que não a religiosa.

É uma pena, mas o isolacionismo em que ainda vivem os países do Islã é prejudicial a todos. Eles perdem porque não podem compartilhar da cultura ocidental. Nós perdemos porque não podemos compartilhar de uma cultura vastíssima, que nos deu a Química, a Astronomia, a Álgebra (para desespero de alguns), algumas das mais belas construções arquitetônicas, preservou e traduziu para o árabe boa parte dos antigos manuscritos gregos e introduziu a pizza na Europa (sim, a pizza foi inventada no antigo Egito, mas entrou na Europa como uma modificação da sfiha árabe!).

Da minha parte, sempre tento colocar as coisas dentro do que eu chamo de "perspectiva do alienígena". Tento imaginar como é ser a outra pessoa, como é ter nascido e crescido em outro país, como é compartilhar de crenças e valores que me são totalmente alienígenas. A internet é fantástica nesse aspecto. Com ajuda dela, até mesmo aprendi algumas palavras em árabe e em chinês. Recentemente, descobri que o nome oficial da "perspectiva do alienígena" é "relativismo cultural", uma teoria formulada na década de 30 pelo antropólogo Melville Jean Herkovitz que afirma que nenhuma cultura é superior a outra. Embora seja uma teoria sociológica, difícil de ser comprovada "experimentalmente", duvido que muita gente discorde dela. É certo que o momento é dos guerreiros, mas, passado tudo isso, deveremos voltar a encarar o fato de que precisamos entender nossas diferenças para continuar vivendo no planeta. A perspectiva do alienígena é uma receita difícil de ser aplicada, exigindo dedicação, educação e persistência, mas pode salvar o mundo.

sexta-feira, setembro 07, 2001

Reengenharia, Qualidade Total e Complexidade

Muito se tem falado sobre mudanças e gerenciamento de mudanças. Até mesmo pessoas cujas vidas nunca foram afetadas por mudanças drásticas parecem ter a sensação de que o mundo muda muito mais rápido do que há meros dez anos. Por exemplo, Michael Hammer, o criador da "Reengenharia", ganha a vida ajudando empresas a se adaptarem e sobreviverem a mudanças. Contudo, ele mesmo parece um grande exemplo de estabilidade: entrou no renomado MIT (Massachusetts Institute of Technology ) aos 16 anos e nunca saiu de lá. É claro que, se alguém examinar a vida de Hammer ao microscópio, perceberá muita mudança ao longo dos anos, mas o ambiente em que ele vive nunca mudou muito.

Eu sempre gostei de mudanças, e nunca gostei muito de Reengenharia. A primeira vez que tive contato com o assunto foi por volta de 1993, quando eu trabalhava na Telepar com o Programa da Qualidade Total. A Reengenharia em si não é muito mais velha do que isto: o primeiro dos quatro livros de Hammer, "Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution", em conjunto com James Champy, foi lançado neste mesmo ano. Na época me pareceu uma metodologia para quem havia perdido a paciência com Qualidade Total, melhoria dos processos, mudança de cultura organizacional, etc. Se as práticas japonesas pregavam a mudança gradativa dos processos, a Reengenharia pregava a ruptura rápida e reinvenção radical de todos os processos deficientes.

O próprio termo "Reengenharia" é uma má tradução. Como em vários outros casos de conflitos entre as línguas inglesa e portuguesa, as palavras "engineering" e "engenharia" não significam sempre a mesma coisa. Por exemplo, a palavra inglesa admite um verbo, "to engineer", que em português significa aproximadamente "engendrar" (recentemente foi introduzido também o pavoroso neologismo "engenheirar", na esteira da revolução transgênica). Deveríamos dizer, então, "Reinvenção" da empresa, nunca "Reengenharia".

É claro que ninguém duvida que as empresas estão repletas de processos mal planejados e rotinas desnecessárias. Lembro-me de ter visitado uma empresa há pouco tempo. Sobre a mesa de um dos funcionários estava um "relatório mensal de saldo de férias". Perguntei a ele por que aquele relatório era impresso e distribuído todos os meses, pois eu sabia que todos os empregados tinham acesso ao mesmo relatório a qualquer hora, bastando acessar um terminal de computador. "Não sei, - disse ele - mas é melhor não perguntar. Talvez a pessoa que emite o relatório não faça muito mais do que isso".

Um processo deste tipo torna-se rapidamente extinto quando alguém resolve reinventar a empresa. E quanto à pessoa que emite o relatório? Bem, daí fica fácil entender porque "reengenharia" tornou-se sinônimo de "downsizing", para desespero de Hammer, que diz ter perdido algumas noites de sono por causa de executivos que diziam estar reinventado a empresa, quando na verdade só queriam uma desculpa para enxugar o quadro de pessoal.

O fato é que, apesar de todo o falatório, Reengenharia e Qualidade Total são metodologias muito semelhantes, diferindo principalmente na velocidade de aplicação e em alguns outros fatores que não passam de meros temperos. Ambas são herdeiras diretas da Administração Científica, criada por Frederick Winslow Taylor e outros. Reengenharia é Taylor passado a limpo e, segundo a revista Exame, parece estar de volta, com a publicação de mais um livro de Hammer. Quanto à Qualidade Total, basta dar uma olhada em um dos livros brasileiros mais famosos sobre o assunto: "TQC - Controle da Qualidade Total", de Vicente Falconi Campos. Trata-se de um livro essencialmente centrado em processos (prática do PDCA, QC Story, método de análise e solução de problemas, ferramentas da qualidade, etc). Ambas as metodologias dizem o tempo todo: controle, controle, controle. São, "cartesianas" demais, "newtonianas" demais, em um mundo não linear que se recusa a ser controlado.

As descobertas dos últimos anos, em várias áreas do conhecimento, mas especialmente na física, têm chamado a atenção para o comportamento de sistemas não lineares. Antigamente, físicos e engenheiros gostavam de resolver sistemas lineares, relegando os sistemas não lineares à condição de meras exceções. Na verdade, sistemas lineares é que são a exceção e a única particularidade que eles têm é a de poderem ser resolvidos analiticamente (com lápis e papel). A invenção do computador digital tornou mais fácil a resolução de sistemas não lineares, e as surpresas começaram a aparecer. Em alguns sistemas não lineares, as ligações entre causa e efeito desaparecem pela amplificação de realimentações que podem transformar fracas variações iniciais em severas conseqüências. O resultado ficou conhecido como "efeito borboleta": uma borboleta batendo as asas na China pode causar uma tempestade no Brasil. O futuro de tais sistemas, denominados "caóticos, não é passível de ser conhecido. São sistemas determinísticos, que seguem as leis de Newton, mas são imprevisíveis.

O mundo dos sistemas não lineares (uma empresa, por exemplo) não pode ser representado pela metáfora da máquina. Neste mundo, a estabilidade significa a morte, a mudança é essencial e a desordem e o paradoxo estão em todo lugar. Uma tentativa de tornar o sistema mais estável trabalha apenas no sentido de torná-lo menos flexível e incapaz de interagir com o meio-ambiente. A estabilidade significa a destruição do sistema: ou o sistema deixa de apresentar os resultados necessários, ou simplesmente não apresenta resultado algum.

Uma outra idéia que vem ganhando força no meio empresarial é a Ciência da Complexidade, que estuda as propriedades da realimentação não linear em estruturas de rede. A ciência da complexidade é parente da dinâmica do caos e, como ela, surgiu a partir das experiências com programas de computadores, especialmente a partir dos anos 80. Enquanto a dinâmica do caos se concentra no estudo do comportamento individual de um único sistema não linear, a complexidade estuda o comportamento conjunto de milhares ou milhões de agentes trocando informações e compondo o que se chama de "sistema adaptativo complexo". Tais sistemas podem aprender por meio de realimentação e incorporar o aprendizado na sua própria estrutura. O sistema como um todo passa a exibir um comportamento que nenhum dos agentes individuais é capaz de exibir. Tal comportamento é denominado "comportamento emergente". Muitos teóricos imaginam que as empresas do mundo real e a sociedade como um todo se comportam como sistemas adaptativos complexos.

Existem muitos exemplos de sistemas adaptativos complexos, alguns teóricos e computacionais, outros extraídos da própria realidade. Um dos primeiros softwares a exibir comportamento emergente foi o BOIDS, criado por Craig Reynolds em 1987. Craig gostava de observar o comportamento dos pássaros, especialmente o fenômeno denominado "flocular", no qual os pássaros voam em bandos. Após algum tempo de observação, ele desenvolveu três regras simples que seriam responsáveis pela floculação:

1. Os pássaros precisam olhar para a sua área local e decidir onde está a maioria dos outros pássaros, e então tentar se dirigir para lá.

2. Os pássaros precisam olhar seus vizinhos e tentar igualar sua velocidade à deles.

3. Os pássaros precisam evitar colidir com obstáculos e com outros pássaros.
 
O programa desenvolvido por Craig incorporava estas três regras básicas e exibia cada pássaro como um elemento gráfico. A floculação surgiu espontaneamente como um comportamento emergente, algo que não foi explicitamente programado, mas que surgiu da interação entre os pássaros. A ordem surge do caos e, embora os pássaros de Craig fossem muito simples, é possível que os pássaros da vida real se comportem de maneira não muito diferente.
 
Em um exemplo da vida real, quando Mike McMaster, diretor da Knowledge Based Development Ltd, uma empresa de consultoria localizada em Londres, foi contratado para aumentar a produtividade de um campo de petróleo, ele fez algo similar: com a ajuda de uma equipe multifuncional ele resumiu o trabalho em apenas quatro princípios básicos. A intenção, ao contrário do que se poderia pensar, era produzir, não a simplicidade, mas uma entidade complexa e adaptativa, capaz de lidar com as condições mutantes tão rápida e adaptativamente quanto um bando de pássaros.
 
"O problema é que nós matamos a complexidade com regras e estruturas rígidas que bloqueiam o fluxo natural da informação. Assim, o que fazemos é simplesmente olhar para os quatro princípios e deixar o resto cuidar de si mesmo, de modo a deixar emergir a criativa complexidade", afirma McMaster. Tal pensamento está em perfeito acordo com o "teorema de Von Foster", da cibernética: "Quanto mais rígidas as conexões, tanto mais alienados do comportamento global estarão os elementos."
 
Recentemente, vários autores têm insistido que a lógica da rede é, na verdade, a "bio-lógica". Por exemplo, Kevin Kelly, editor executivo da revista Wired, escreveu o livro "Out Of Control" (Fora de Controle). Neste livro, Kelly argumenta que a dinâmica atual da economia não é mais "controlável" pelas regras do capitalismo, e que é indispensável aprender "a biologia dos negócios na economia em rede". Quem tentar obter o controle, acabará por perdê-lo. Em um sentido um pouco diferente, Peter Senge, autor de "The Fifth Discipline" (A Quinta Disciplina), tem insistido sobre a necessidade de se estudar o comportamento sistêmico das organizações, em vez de se focar os comportamentos individuais.
 
No Brasil, Clemente Nobrega, autor de "Em Busca da Empresa Quântica", acaba de lançar o livro "Supermentes", onde ele advoga a necessidade imperiosa que a natureza tem de se comunicar, e alerta sobre os prejuízos que podem ser causados quando a comunicação é artificialmente restringida.
 
Nóbrega chama as empresas rigidamente controladas de "empresas da era da chaminé", em referência às práticas administrativas que surgiram junto com a primeira revolução industrial. Na era da informação, que almeja se tornar uma "era do conhecimento", não há mais sentido em se controlar rigidamente uma organização. Há vários motivos para isso, mas vou citar dois dos principais. Primeiro, a quantidade de informação fluindo para dentro e para fora das fronteiras da empresa não pode ser controlada. Os empregados sempre ficam sabendo das notícias antes de receberem o "boletim oficial". Segundo, ninguém sabe mais onde ficam as fronteiras da empresa. Isso acontece por causa de terceirizações, "externoparceirizações", joint-ventures e outros tipos de ligações, que forçam as empresas a atuar em conjunto para reduzir custos e aumentar a produtividade. Um dado gerente, por exemplo, pode não ter controle direto sobre os responsáveis por determinada atividade. A velha máxima "manda quem pode, obedece quem tem juízo" está cada vez mais velha e mal adaptada.
 
Também no Brasil, Ricardo Semler, que foi recentemente matéria de capa da revista Exame, tem atraído bastante atenção por pregar e implantar princípios de flexibilização de normas de trabalho. E ninguém pode dizer que se trata de um teórico acadêmico. A Semco, empresa da qual Semler é acionista majoritário, tem crescido a 35% ao ano, devendo atingir uma receita de R$ 245 milhões (quase US$ 100 milhões) em 2001.
 
Os princípios seguidos por Semler são simples: esqueça o escalão superior, nunca deixe de ser uma "start-up", não seja babá dos seus empregados (trate-os como adultos), deixe que o talento encontre seu lugar, tome decisões rápida e abertamente e associe-se promiscuamente. "Nossos parceiros - diz Semler - são tão parte do nosso negócio quanto nossos empregados".
 
Apesar de tudo, seguir as recomendações de Semler e outros não significa deixar as pessoas fazerem o que bem entenderem. A liderança é essencial, mas liderar não significa forçar as pessoas a seguir um caminho. Significa, simplesmente, apontar o caminho e fornecer as condições para que as pessoas o percorram livremente. A administração taylorista foi importante para o desenvolvimento da excelência empresarial, mas não precisamos continuar usando tal ferramenta, da mesma forma que não precisamos continuar usando machados de pedra com cabo de osso.

segunda-feira, fevereiro 12, 2001

Davos e Anti-Davos

Davos esteve novamente na moda, durante a última semana de janeiro, mas eu preferia quando a imprensa brasileira pronunciava o nome desta cidade suíça como "Dávos", e não "Davôs", como estão fazendo agora. Esta última forma me parece afrancesada demais, pouco adequada a um fórum que, supostamente, prega o neoliberalismo. Sim, pois os franceses se encontram dentre os países europeus que mais resistem a liberalizar sua economia. Por exemplo, a toda-poderosa e monolítica Electricité de France (EDF) continua tão estatal quanto sempre foi, mas não se importa em comprar frações substanciais de empresas de energia elétrica pelo mundo afora, como a Light, por exemplo, da qual a EDF detém cerca de 21%. A lição é clara: privatização, na França, nem pensar. No resto do mundo, tudo bem.

Questões de pronúncia à parte, a maior novidade este ano foi a realização, em Porto Alegre, do Fórum Social Mundial, chamado por alguns de Fórum Anti-Davos, simulaneamente ao Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos. Além de se opor a Davos, o evento de Porto Alegre pretendeu se opor à globalização, o que me parece muito estranho. Não se trata apenas de uma batalha de Davi contra Golias, mas também de uma batalha contra a tecnologia. E, durante toda a história da humanidade, qualquer povo que se opôs à tecnologia acabou por perder. Assim, imagino que a única maneira de "desglobalizar" o mundo seja voltarmos a viver em tribos, isolados uns dos outros por uma densa floresta. Seria mais fácil combater a força da gravidade!

O debate anti-globalização é também puramente retórico, recheado da mais descarada ideologia, o que é fácil perceber pelos participantes dos debates de Porto Alegre: Oscar Niemeyer (arquiteto e planejador de uma das cidades mais stalinistas do mundo), Luís Inácio Lula da Silva (presidente de honra do PT), João Pedro Stedile (líder do MST), Tarso Genro (prefeito petista de Porto Alegre), Olívio Dutra (governador do Rio Grande do Sul), José Bové (líder dos agricultores franceses, processado na justiça por ter comandado a destruição de uma loja do McDonalds), Noam Chomsky (professor de linguística do MIT e famoso por seus artigos e livros contrários à política externa norte-americana), sem falar em guerrilheiros, agricultores sem terra, padres, presidentes de ONGs, líderes de ocasião, etc. Seria fácil desqualificar os participantes, e dizer que eles não entendem nada de finanças internacionais e tecnologia da informação, mas seria também anti-científico e, portanto, resistirei à tentação.

Sem entrar no terreno da desqualificação, uma das curiosidades em eventos desse tipo é que todos também se mostram igualmente tolos e igualmente sábios. Luís Inácio Lula da Silva, por exemplo, garantiu, em meio a uma manifestção, que "nos sentimos livres nas ruas, porque o que queremos é o que o povo quer". Palavras estranhas, especialmente vindas de um homem que, por duas vezes, foi submetido ao voto popular e, por duas vezes, viu o povo dizer não.

Outra curiosidade é que o fórum de Porto Alegre também foi globalizado e também usou de tecnologia, valendo-se de tradução simultânea e web sites (com opções para português, inglês, francês e espanhol). Também arrisco dizer que, como em qualquer evento deste tipo, foram bebidos litros de coca-cola, queimados galões de gasolina e consumidos vários kWh de energia elétrica. Tendo o evento sido realizado na PUC-RS, arrisco também que o participante não precisou andar muito para encontrar uma loja do McDonald's. Isso sem falar que, a julgar pelas fotografias do evento, era possível encontrar gente de qualquer país perambulando por lá.

O fato, então, é que os participantes do evento usam o termo "globalização" apenas como uma palavra de efeito, uma espécie de símbolo da nova divisão entre Norte e Sul, que substituiu a divisão entre Ocidente e Oriente após o fim da Guerra Fria. E, como todo efeito de retórica, o debate anti-globalização vem recheado de erros lógicos e conceituais.

Um dos erros comuns no debate público sobre a globalização, de acordo com John Micklethwait e Adrian Wooldridge, autores de "O Futuro Perfeito", é que a discussão "sempre parece envolver uma fábrica fechada na Carolina do Sul, nunca um jovem africano sentado em frente a um computador; sempre a floresta amazônica em chamas, nunca um jovem banqueiro de investimentos brasileiro; sempre o Rei Leão ou as Spice Girls, nunca o Museu Guggenheim em Bilbao".

De fato, um dos ícones do movimento anti-globalização é a mal-fadada reunião da Organização Mundial do Comércio, em Seattle, em novembro de 1999. Entretanto, toda a pancadaria que evitou a realização do encontro foi organizada por norte-americanos que temiam perda de subsídios em razão da "reforma agressiva das regras de comércio agrícola", que estaria entre os pontos principais da pauta de discussões. Não teve nada a ver com crianças famintas da Tanzânia, nem com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, nem com florestas em chama.

Outro erro é que a solução proposta para os efeitos adversos da globalização frequentemente esbarra na chamada "Terceira Via", apoiada até pelo presidente Fernando Henrique, em um de seus arroubos intelecuais. Esta Terceira Via seria um meio termo entre o capitalismo, que em sua forma mais pura existe somente nos Estados Unidos e Inglaterra, e o socialismo, que desparecerá da face da Terra quando Fidel Castro se for.

Tal polarização tende a simplificar demais a questão, tentando tornar opostos os sistemas capitalista e socialista. O socialismo é uma coisa tremendamente simples, pois é artificial: trata-se do melhor sistema já imaginado para tornar todo mundo igualmente pobre. Já o capitalismo não é um "ismo". O capitalismo não é uma ideologia e surge naturalmente onde há liberdade de comunicação e ação. Assim, não há apenas três vias, mas infinitas vias. Quando o governo não atrapalha, surge o que Marx chamou de capitalismo. Quando o governo intervém de forma progressiva, restringindo a liberdade de mercado, o sistema econômico sofre uma transição até chegar ao comunismo, que não passa de "capitalismo de estado", regime onde o governo controla todos os meios de produção.

A globalização, assim, á algo muito complicado, mas é necessariamente relacionada à liberdade. E um dos problemas aqui é que a liberdade é perigosa, pois envolve competição e, no fim de tudo, competição envolve perdedores. Da minha parte, vivi quase vinte anos em um regime ditatorial e fico assustado quando alguns brasileiros dizem que "na época da ditadura era melhor". Isso é o mesmo que dizer que "na época de inflação galopante era melhor, pois tínhamos reajuste de salário todo mês.Hipersimplificação do debate, mais uma vez, escondendo pontos essenciais e dirigindo o raciocínio.

Também é comum pensar que estamos vivendo algo novo, que nunca aconteceu antes, e que nunca acabará, mas, você quer ler algo com sabor de dejá-vú? Então preste atenção às palavras do economista John Maynard Keynes relatando a era de tranquilidade que antecedeu a Primeira Guerra Mundial:

"O habitante de Londres poderia pedir por telefone, enquanto bebericava seu chá matinal ainda na cama, vários produtos de todo o globo, na quatidade que quisesse, e esperar razoavelmente que fossem entregues na manhã seguinte à sua porta; da mesma forma, e no mesmo momento, ele poderia arriscar suas riquezas investindo em empresas de todos os cantos do mundo, e compartilhar, sem problema algum, de seus frutos e vantagens ... Mais importante, ele considerava tal estado de coisas como normal, certo e permanente, exceto no que se referisse a possíveis melhorias."

Então veio a guerra, e a era de protecionismo que se seguiu acabou por mergulhar o mundo na grande depressão, de um lado, e no comunismo, do outro. Contudo, Keynes poderia muito bem estar falando da Internet e da economia atual baseada em cliques, capital de risco e logística. E, da mesma forma que os ingleses de Keynes, também nós consideramos tal estado de coisas como permanente, imutável e sujeito a apenas alguns ajustes.

Ainda assim, parece adequado supor que esta nova era de globalização nada mais é do que a continuação da era de globalização dos ingleses de Keynes, interropida por duas guerras. Imagino que a humanidade tende naturalmente a esse estado de coisas, impelida por uma grande curiosidade e pela busca de eficiência na alocação de recursos sempre escassos. Talvez a nova Ciência da Complexidade tenha algo a nos dizer sobre isso, tratando da evolução de sistemas adaptativos complexos como parece ser a economia mundial.

E foi exatamente por sermos organismos adaptativos que chegamos até aqui. Se fôssemos dados ao isolacionismo, ainda seríamos macacos habitando alguma região da África. Se fôssemos dados ao pânico de tudo que se move, ainda estaríamos sentados no topo das árvores, cogitando se a vida nas savanas seria melhor ou pior, como talvez façam as preguiças.

Na minha opinião, a verdadeira globalização ainda não começou, pois nem todos os países que contam estão no jogo. Por enquanto, há um país que está praticamente fora dele, mas que está observando à distância, flexionando os músculos, reunindo forças e aprendendo tudo que pode com exércitos de homens e mulheres espalhados pelo globo. A verdadeira globalização só começará no dia em que os chineses, inventores da pólvora, do papel, da imprensa e do espaguete, entrarem definitivamente no jogo. É impossível saber se o mundo será melhor ou pior, mas será suficientemente diferente para que Davos, Porto Alegre e Seattle empalideçam em insignificância provinciana.