Davos e Anti-Davos
Davos esteve novamente na moda, durante a última semana de janeiro, mas eu preferia quando a imprensa brasileira pronunciava o nome desta cidade suíça como "Dávos", e não "Davôs", como estão fazendo agora. Esta última forma me parece afrancesada demais, pouco adequada a um fórum que, supostamente, prega o neoliberalismo. Sim, pois os franceses se encontram dentre os países europeus que mais resistem a liberalizar sua economia. Por exemplo, a toda-poderosa e monolítica Electricité de France (EDF) continua tão estatal quanto sempre foi, mas não se importa em comprar frações substanciais de empresas de energia elétrica pelo mundo afora, como a Light, por exemplo, da qual a EDF detém cerca de 21%. A lição é clara: privatização, na França, nem pensar. No resto do mundo, tudo bem.
Questões de pronúncia à parte, a maior novidade este ano foi a realização, em Porto Alegre, do Fórum Social Mundial, chamado por alguns de Fórum Anti-Davos, simulaneamente ao Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos. Além de se opor a Davos, o evento de Porto Alegre pretendeu se opor à globalização, o que me parece muito estranho. Não se trata apenas de uma batalha de Davi contra Golias, mas também de uma batalha contra a tecnologia. E, durante toda a história da humanidade, qualquer povo que se opôs à tecnologia acabou por perder. Assim, imagino que a única maneira de "desglobalizar" o mundo seja voltarmos a viver em tribos, isolados uns dos outros por uma densa floresta. Seria mais fácil combater a força da gravidade!
O debate anti-globalização é também puramente retórico, recheado da mais descarada ideologia, o que é fácil perceber pelos participantes dos debates de Porto Alegre: Oscar Niemeyer (arquiteto e planejador de uma das cidades mais stalinistas do mundo), Luís Inácio Lula da Silva (presidente de honra do PT), João Pedro Stedile (líder do MST), Tarso Genro (prefeito petista de Porto Alegre), Olívio Dutra (governador do Rio Grande do Sul), José Bové (líder dos agricultores franceses, processado na justiça por ter comandado a destruição de uma loja do McDonalds), Noam Chomsky (professor de linguística do MIT e famoso por seus artigos e livros contrários à política externa norte-americana), sem falar em guerrilheiros, agricultores sem terra, padres, presidentes de ONGs, líderes de ocasião, etc. Seria fácil desqualificar os participantes, e dizer que eles não entendem nada de finanças internacionais e tecnologia da informação, mas seria também anti-científico e, portanto, resistirei à tentação.
Sem entrar no terreno da desqualificação, uma das curiosidades em eventos desse tipo é que todos também se mostram igualmente tolos e igualmente sábios. Luís Inácio Lula da Silva, por exemplo, garantiu, em meio a uma manifestção, que "nos sentimos livres nas ruas, porque o que queremos é o que o povo quer". Palavras estranhas, especialmente vindas de um homem que, por duas vezes, foi submetido ao voto popular e, por duas vezes, viu o povo dizer não.
Outra curiosidade é que o fórum de Porto Alegre também foi globalizado e também usou de tecnologia, valendo-se de tradução simultânea e web sites (com opções para português, inglês, francês e espanhol). Também arrisco dizer que, como em qualquer evento deste tipo, foram bebidos litros de coca-cola, queimados galões de gasolina e consumidos vários kWh de energia elétrica. Tendo o evento sido realizado na PUC-RS, arrisco também que o participante não precisou andar muito para encontrar uma loja do McDonald's. Isso sem falar que, a julgar pelas fotografias do evento, era possível encontrar gente de qualquer país perambulando por lá.
O fato, então, é que os participantes do evento usam o termo "globalização" apenas como uma palavra de efeito, uma espécie de símbolo da nova divisão entre Norte e Sul, que substituiu a divisão entre Ocidente e Oriente após o fim da Guerra Fria. E, como todo efeito de retórica, o debate anti-globalização vem recheado de erros lógicos e conceituais.
Um dos erros comuns no debate público sobre a globalização, de acordo com John Micklethwait e Adrian Wooldridge, autores de "O Futuro Perfeito", é que a discussão "sempre parece envolver uma fábrica fechada na Carolina do Sul, nunca um jovem africano sentado em frente a um computador; sempre a floresta amazônica em chamas, nunca um jovem banqueiro de investimentos brasileiro; sempre o Rei Leão ou as Spice Girls, nunca o Museu Guggenheim em Bilbao".
De fato, um dos ícones do movimento anti-globalização é a mal-fadada reunião da Organização Mundial do Comércio, em Seattle, em novembro de 1999. Entretanto, toda a pancadaria que evitou a realização do encontro foi organizada por norte-americanos que temiam perda de subsídios em razão da "reforma agressiva das regras de comércio agrícola", que estaria entre os pontos principais da pauta de discussões. Não teve nada a ver com crianças famintas da Tanzânia, nem com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, nem com florestas em chama.
Outro erro é que a solução proposta para os efeitos adversos da globalização frequentemente esbarra na chamada "Terceira Via", apoiada até pelo presidente Fernando Henrique, em um de seus arroubos intelecuais. Esta Terceira Via seria um meio termo entre o capitalismo, que em sua forma mais pura existe somente nos Estados Unidos e Inglaterra, e o socialismo, que desparecerá da face da Terra quando Fidel Castro se for.
Tal polarização tende a simplificar demais a questão, tentando tornar opostos os sistemas capitalista e socialista. O socialismo é uma coisa tremendamente simples, pois é artificial: trata-se do melhor sistema já imaginado para tornar todo mundo igualmente pobre. Já o capitalismo não é um "ismo". O capitalismo não é uma ideologia e surge naturalmente onde há liberdade de comunicação e ação. Assim, não há apenas três vias, mas infinitas vias. Quando o governo não atrapalha, surge o que Marx chamou de capitalismo. Quando o governo intervém de forma progressiva, restringindo a liberdade de mercado, o sistema econômico sofre uma transição até chegar ao comunismo, que não passa de "capitalismo de estado", regime onde o governo controla todos os meios de produção.
A globalização, assim, á algo muito complicado, mas é necessariamente relacionada à liberdade. E um dos problemas aqui é que a liberdade é perigosa, pois envolve competição e, no fim de tudo, competição envolve perdedores. Da minha parte, vivi quase vinte anos em um regime ditatorial e fico assustado quando alguns brasileiros dizem que "na época da ditadura era melhor". Isso é o mesmo que dizer que "na época de inflação galopante era melhor, pois tínhamos reajuste de salário todo mês.Hipersimplificação do debate, mais uma vez, escondendo pontos essenciais e dirigindo o raciocínio.
Também é comum pensar que estamos vivendo algo novo, que nunca aconteceu antes, e que nunca acabará, mas, você quer ler algo com sabor de dejá-vú? Então preste atenção às palavras do economista John Maynard Keynes relatando a era de tranquilidade que antecedeu a Primeira Guerra Mundial:
"O habitante de Londres poderia pedir por telefone, enquanto bebericava seu chá matinal ainda na cama, vários produtos de todo o globo, na quatidade que quisesse, e esperar razoavelmente que fossem entregues na manhã seguinte à sua porta; da mesma forma, e no mesmo momento, ele poderia arriscar suas riquezas investindo em empresas de todos os cantos do mundo, e compartilhar, sem problema algum, de seus frutos e vantagens ... Mais importante, ele considerava tal estado de coisas como normal, certo e permanente, exceto no que se referisse a possíveis melhorias."
Então veio a guerra, e a era de protecionismo que se seguiu acabou por mergulhar o mundo na grande depressão, de um lado, e no comunismo, do outro. Contudo, Keynes poderia muito bem estar falando da Internet e da economia atual baseada em cliques, capital de risco e logística. E, da mesma forma que os ingleses de Keynes, também nós consideramos tal estado de coisas como permanente, imutável e sujeito a apenas alguns ajustes.
Ainda assim, parece adequado supor que esta nova era de globalização nada mais é do que a continuação da era de globalização dos ingleses de Keynes, interropida por duas guerras. Imagino que a humanidade tende naturalmente a esse estado de coisas, impelida por uma grande curiosidade e pela busca de eficiência na alocação de recursos sempre escassos. Talvez a nova Ciência da Complexidade tenha algo a nos dizer sobre isso, tratando da evolução de sistemas adaptativos complexos como parece ser a economia mundial.
E foi exatamente por sermos organismos adaptativos que chegamos até aqui. Se fôssemos dados ao isolacionismo, ainda seríamos macacos habitando alguma região da África. Se fôssemos dados ao pânico de tudo que se move, ainda estaríamos sentados no topo das árvores, cogitando se a vida nas savanas seria melhor ou pior, como talvez façam as preguiças.
Na minha opinião, a verdadeira globalização ainda não começou, pois nem todos os países que contam estão no jogo. Por enquanto, há um país que está praticamente fora dele, mas que está observando à distância, flexionando os músculos, reunindo forças e aprendendo tudo que pode com exércitos de homens e mulheres espalhados pelo globo. A verdadeira globalização só começará no dia em que os chineses, inventores da pólvora, do papel, da imprensa e do espaguete, entrarem definitivamente no jogo. É impossível saber se o mundo será melhor ou pior, mas será suficientemente diferente para que Davos, Porto Alegre e Seattle empalideçam em insignificância provinciana.
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