quarta-feira, julho 31, 2002

Peter Drucker e o Pentacampeonato

Já faz cerca de um mês que a Copa do Mundo acabou. Dessa vez o governo não conseguiu fazer uso político da conquista de mais um campeonato de futebol. FHC até que tentou, mas os tempos são outros. Dessa vez o pentacampeonato está sendo usado como ferramenta de auto-ajuda, especialmente auto-ajuda empresarial. No lugar do mote "Pra frente Brasil", temos frases como as de Carlos Alberto Parreira: "Enfim, a seleção é um retrato de um Brasil que nos enche de orgulho e ... que dá certo".

As associações parecem simples e óbvias: a seleção brasileira jogou em equipe, minha empresa precisa trabalhar em equipe, então, basta copiarmos o modelo da "Família Scolari" para termos sucesso, certo? Não exatamente. O problema é que existe mais de um tipo de equipe. Em um capítulo do seu livro "Administrando em Tempos de Grandes Mudanças" (1995), Peter Drucker esclarece que existem três tipos de equipe, que são:

1) A equipe de Beisebol

Em um jogo de beisebol os jogadores não atuam como em um jogo de futebol. A posição de cada jogador é fixa e cada um deles é um especialista no que faz. É por isso que, mais no beisebol do que em qualquer outro esporte, fica fácil criar estatísticas para cada jogador (indicadores de produtividade!).

Esse tipo de equipe não é bem visto atualmente. Quando os especialistas em RH falam em "formação de equipes", não é a esse tipo de equipe que eles se referem. Contudo, a equipe de beisebol aparece em algumas situações, como dentro dos hospitais. Por exemplo, uma equipe cirúrgica atua como uma equipe, mas não trabalha "em" equipe. O cirurgião não precisa se preocupar com o trabalho do anestesista e o instrumentador não precisa se preocupar com que parte o cirurgião está cortando. Basta que o instrumento certo esteja nas mãos do cirurgião quando requisitado, que nenhum deles se perca durante o processo, que o paciente esteja corretamente anestesiado, etc.

A equipe de beisebol também é o protótipo para a administração de uma linha de produção clássica, do tipo idealizada por Henry Ford para a produção do Modelo T. Cada trabalhador era responsável por uma tarefa única, bem definida e essencialmente imutável. Nas modernas linhas de produção automobilística esse tipo de equipe será difícil de se encontrar, pois é inflexível e incapaz de se adaptar a mudanças. No beisebol, que já foi definido como a "sublimação do tédio", isso pode ocorrer, mas em uma empresa moderna equipes inflexíveis podem significar a morte. Nesse tipo de empresa a equipe de marketing não falaria com a equipe de projetos e assim por diante. A equipe de marketing requisitaria produtos que não podem ser projetados ou produzidos, a equipe de projetos projetaria produtos que não podem ser vendidos e todos nós conhecemos a tragédia que se sucede.

2) A equipe de Futebol

Drucker se refere ao futebol americano, mas esse tipo de equipe é o mesmo do "nosso" futebol, que os norte-americanos insistem em chamar de "soccer". Os jogadores trabalham em equipe, mas a integração entre eles é muito maior e as posições são mais flexíveis. Não é raro, por exemplo, que um zagueiro ou mesmo um goleiro faça um gol. A diferença principal é que a equipe de beisebol trabalha em série, enquanto a equipe de futebol trabalha em paralelo. Não é a toa que o futebol é muito mais emocionante do que o beisebol. Outra diferença é que a equipe de futebol exige um líder, que pode até mesmo ser o técnico, mas não necessariamente.

A equipe de futebol é mais flexível do que a de beisebol porque ela se assemelha mais a um "sistema adaptativo complexo". Um sistema desse tipo é capaz de se modificar, incorporando novos conhecimentos na sua própria estrutura. É verdade que isso nem sempre acontece. Todos nós já vimos jogos onde uma equipe formada pelos melhores jogadores do mundo acaba por não se dar bem. O que aconteceu? Ora, os jogadores, individualmente, sabem muito bem o que fazer, mas o sistema não sabe. O sistema não teve tempo de aprender, não houve treino suficiente (essencial para equipes desse tipo) ou, simplesmente, entrou em colapso por não conseguir administrar o fluxo de conhecimento a tempo.

As equipes japonesas de projeto adotaram o modelo da equipe de futebol com grande sucesso e fizeram a mesma coisa com as linhas de produção flexíveis. Os japoneses conseguiram derrotar Detroit na produção de veículos não por terem tecnologia mais avançada do que os americanos, mas por terem percebido que novos sistemas de produção exigiam novos modelos de equipe e novos modos de gerenciá-las.

3) A dupla de tênis

Para o terceiro tipo de equipe, Drucker usa o modelo da dupla de tênis, que parece bastante singelo, mas esconde uma grande complexidade em sua estrutura. Os dois jogadores precisam atuar como um só para terem sucesso. Eles não podem parar para pensar no que o outro está fazendo. Eles precisam "sentir" o que o outro está fazendo. O fluxo de informações é muito mais complexo e sutil.

Em bandas de música isso também acontece, especialmente naquelas onde a improvisação é essencial, como em uma banda de jazz. Cada músico pode ser um especialista em determinado instrumento, mas a comunicação entre eles é fundamental. Com um simples olhar, ou nem isso, o trompetista precisa saber em que escala o guitarrista está e o que ele pretende fazer a seguir. O equilíbrio de uma equipe desse tipo é muito instável. Ela vive permanentemente na fronteira entre a ordem e o caos. Exemplo? Quando os Beatles atingiram o auge, após anos de trabalho intenso, eles haviam adquirido esse sexto sentido vital para a criação musical. Nos ensaios, eles atuavam como uma verdadeira "jam session" e desenvolveram uma forma de comunicação não verbal muito sofisticada. Entretanto, foi suficiente a introdução de um elemento externo (Yoko) para que o sistema entrasse em colapso. A presença de Yoko toldou a comunicação sutil entre John Lennon e Paul McCartney e, em um nível um pouco diferente, entre eles dois e George Harrison. O resultado foi que cada um deles passou a criar de maneira individualista e o fim não demorou muito.

Resumindo, as principais diferenças entre esses três tipos de equipe são as seguintes:

  • O fluxo de informação entre os membros individuais aumenta da equipe tipo 1 para a equipe tipo 3.
  • A capacidade da equipe em incorporar novos conhecimentos na sua estrutura aumenta da equipe tipo 1 para a equipe tipo 3.
  • A capacidade da equipe se autogerenciar, determinar seus próprios objetivos e a melhor maneira de atingí-los também aumenta da equipe tipo 1 para a equipe tipo 3.

Quando nos deslocamos da equipe tipo 1 para a equipe tipo 3, a hierarquia e o controle são gradativamente demolidos.

É evidente, portanto, que uma empresa que atua dentro da "economia do conhecimento", ou seja, qualquer empresa moderna, precisa muito mais de equipes do tipo 3 do que equipes do tipo 1 ou 2. Se a matéria-prima da empresa é o conhecimento, a única maneira de gerenciá-lo e torná-lo produtivo é por meio da implantação de equipes da era do conhecimento, e não de equipes da era industrial.

É exatamente esse o perigo que corremos ao tentarmos adaptar o "sucesso do penta" às nossas empresas. Tirando as platitudes de sempre, que dizem que precisamos de "paixão", "disciplina", "coragem", "foco nos resultados", etc., características supostamente apresentadas pela seleção do penta, tudo o que sobra é um modelo de equipe que pode ser adaptado com sucesso apenas em algumas circunstâncias, mas não em todas. Em particular, é interessante notar que muitas das características positivas da seleção do penta não passam de uma releitura pós-vitória. A vitória faz a percepção das pessoas mudar, realçando aspectos positivos e minimizando aspectos negativos. Em alguns casos, até mesmo aspectos negativos, como a "teimosia" de Luiz Felipe Scolari, podem vir a ser encarados de maneira positiva. Henry Ford também era teimoso e foi essa teimosia que o transformou em um dos homens mais ricos do seu tempo. Contudo, foi essa mesma teimosia que o tornou incapaz de perceber as mudanças do mercado e que mergulhou a Ford em uma profunda crise, tendo sido suplantada pela GM em apenas alguns anos. Hoje, nenhuma empresa automobilística adotaria o modelo de produção e o tipo de equipes adotadas por Henry Ford no auge do sucesso do Modelo T. Precisamos de equipes flexíveis, que existem na fronteira entre a ordem e o caos, que são instáveis e podem até mesmo se autodestruir. É um risco enorme, mas não há outra maneira de gerenciar o conhecimento.

sexta-feira, julho 26, 2002

Ânnima, de Toni Casagrande

"Ânnima - A Clonagem e a Busca da Vida Eterna" é o primeiro romance de Toni Casagrande, jornalista e âncora da CBN-Curitiba. Trata-se de um romance de ficção científica que aborda temas como criogenia, clonagem, biodiversidade, efeito estufa e uma boa dose de filosofia e psicologia cognitiva.

O livro é narrado em primeira pessoa. O protagonista, portador de uma doença fatal, tomou a decisão de ser congelado após a morte, no início do século XXI. Sem herdeiros, ele investe todo o seu dinheiro em uma Fundação, cujo objetivo seria pesquisar a cura da doença que o vitimou. Ele é reanimado mais de cem anos depois, quando a Fundação transformou-se em uma mega-corporação, os países não existem mais, uma parte da Amazônia transformou-se em deserto, seres humanos, andróides e robôs convivem agora lado a lado (e até mesmo participam de jogos de futebol!) e há uma profusão de animais e plantas modificados geneticamente, sem falar nas máquinas orgânicas.

O tema da criogenia, ou "criônica", para sermos mais precisos, é recorrente em ficção científica, tendo sido usado tanto no cinema e na televisão (Buck Rogers, Star Wars, Star Trek) quanto em livros (3001: Odisséia Final, por exemplo). Não há problema algum que o tema não seja totalmente original. Em ficção científica, como de resto em toda a literatura, o que vale é a maneira como uma história é contada e não a história em si. É o que acontece em Ânnima. A trama poderia parecer trivial: o protagonista é congelado, reanimado, fica maravilhado com o mundo novo, mas não consegue se adaptar. Contudo, Casagrande vai um pouco além. O processo criogênico a que o protagonista, conhecido simplesmente como "Fundador", foi submetido não é perfeito. Uma grande quantidade de células, inclusive células cerebrais, foi destruída. Após várias tentativas de reparação, os cientistas da Fundação chegam à conclusão que para que o Fundador continue vivo será necessário transferir a mente dele para o corpo de um clone, processo que será feito por meio de um equipamento conhecido como Ânnima, daí o título do livro. As indagações filosóficas do protagonista se intensificam nesse ponto. "Será que continuarei vivo?". "Vou me sentir como eu mesmo?". "Por que tenho que morrer de novo?".

Na vida real, a conservação criônica ganhou novamente as páginas dos jornais quando o jogador de baseball Ted Williams foi submetido ao processo no início de julho de 2002. O mercado criônico parece estar em expansão em várias partes do mundo, especialmente nos Estados Unidos, mas devemos estabelecer uma diferença entre as verdadeiras aplicações da tecnologia e aquilo que é só promessa. A "Criogenia" é o estudo científico do comportamento dos materiais em temperaturas muito baixas, geralmente usando-se nitrogênio ou hélio líquido. Alguns materiais só se comportam adequadamente em temperaturas criogênicas, como é o caso dos supercondutores. Temperaturas mais altas do que a do nitrogênio líquido, mas ainda muito baixas para os padrões humanos, também são usadas rotineiramente para a preservação de materiais e equipamentos e conservação de alimentos. A "Criônica", por outro lado, é um processo criado nos anos 60 que consiste em se congelar, usualmente com nitrogênio líquido (muito mais barato que hélio líquido), pessoas que foram declaradas legalmente mortas. Várias empresas realizam tal processo, como o Cryonics Institute, que cobra preços a partir de US$ 28.000.Outras empresas cobram US$ 120.000 pelo congelamento do corpo inteiro e US$ 50.000 pela opção "neuro" (somente a cabeça). Um grande mercado! O argumento de todas essas empresas é o de que, no futuro, os cientistas saberão como ressuscitar a pessoa congelada e também como reconstruir as células danificadas. Preciosismos terminológicos à parte, no momento a criônica é apenas a segunda maneira mais dispendiosa de se "enterrar" um cadáver (a primeira é colocar as cinzas em uma pequena cápsula em órbita da Terra).

Embora a criogenia seja atualmente utilizada em várias aplicações, nada garante que ela possa ser aplicada em seres humanos como método de hibernação. É verdade que fragmentos do cérebro humano já foram congelados e descongelados com sucesso, mas ninguém pode assegurar sucesso quando se fala do cérebro inteiro e de toda a informação que ele contém. Conjectura-se que o congelamento destruiria as delicadas membranas celulares e deslocaria os neurônios de suas posições, provocando uma espécie de "formatação" no cérebro. Mesmo que a reanimação fosse feita com sucesso, a pessoa que passou pelo processo acordaria com o cérebro "em branco", tendo que aprender tudo de novo e de modo algum se sentiria como a pessoa que foi antes do congelamento.

Casagrande se depara com a necessidade de reparar os danos causados pelo processo criônico, lançando mão de outra idéia da ficção científica conhecida como "transferência de mentes". Esta idéia foi usada por Arthur C. Clarke em "A Cidade e as Estrelas" (1956) e por esse mesmo autor em "3001: Odisséia Final" (1997), embora com outras finalidades e em situações bastante diferentes. Afinal, se a mente é apenas o conteúdo de um cérebro, basta descobrir como as informações estão codificadas para podermos transferir o conteúdo de um cérebro para outro (vamos deixar os detalhes técnicos de lado...), como se faz com discos de computador. A idéia parece absurda, mas não o suficiente para deixar de ser levada a sério por alguns cientistas. Por exemplo, o Dr. Christopher Winter, fundador da equipe de Vida Artificial da British Telecom, calcula que serão necessários cerca de dez terabytes (o número um seguido de treze zeros) para armazenar todas as memórias e experiências de uma pessoa. Winter acredita que esta tecnologia estará disponível dentro de 30 anos (a previsão é de 1997). É claro que, além disso, será necessário saber como ler e gravar as informações em um cérebro humano, tecnologia que parece tão longe de nós quanto a Lua estava dos primeiros hominídeos.

No livro, os cientistas da Fundação decidem então transferir a mente do protagonista para um corpo clonado a partir dele mesmo, só que muito mais jovem. A finalidade seria se livrar de todos os danos orgânicos causados pelo congelamento. Contudo, usando-se a transferência ou não, o processo criônico pode causar mais danos do que o autor deixa transparecer até muito perto do fim do livro. O leitor apressado pode pensar que Casagrande não está a par desses danos, ou que os está deixando de lado para o bem da ficção. Bem, eu garanto que ele está bem a par dos fatos, e a maneira que ele imaginou para tratar dos danos causados pelo congelamento é o que há de mais genial no livro. Infelizmente, revelar o truque seria estragar o desfecho dessa história de ficção que é também uma história de mistério. Para saber o final, só comprando o livro.

O único ponto desabonador é o pequeno tamanho do livro. É claro que mais páginas significariam diminuir as chances de vendagem do livro, o que é uma pena, pois o autor demonstra claramente que poderia ter escrito um livro de 250 ou 300 páginas. Felizmente, algumas pontas ficaram soltas, talvez propositalmente. No fim do livro, o protagonista começa a trabalhar com um cientista que está desenvolvendo um equipamento capaz de intermediar a comunicação entre várias pessoas, colocando os cérebros delas diretamente em rede, não importando a distância entre elas. O impacto social dessa "mente coletiva" seria avassalador e parece um ótimo tema para um segundo livro.

Como leitor de ficção científica de longa data, fiquei muito entusiasmado com a publicação de um autor paranaense nessa área tão pouco valorizada pelo mercado brasileiro de livros. Em países mais avançados, especialmente nos EUA, a ficção científica é uma grande indústria. São publicados mais de duzentos livros por ano e há várias revistas que publicam contos mensalmente. Imagino que isso não seja apenas uma coincidência, mas sim uma demonstração, ainda que tosca, do fato de que países mais avançados dão mais atenção à tecnologia e a seus efeitos sobre a sociedade do que nós. E é disso que trata a ficção científica: não da tecnologia e da ciência em si mesmas, mas sim dos efeitos destas sobre a vida e sobre a mente das pessoas. Nesse aspecto, Casagrande mostrou ser um grande escritor de ficção científica. Em todas as 173 páginas do livro percebemos as inquietações do autor: "Será que sabemos onde vai dar toda essa tecnologia?", "Quantas modificações e impactos ambientais o planeta pode absorver?", "Quem somos nós e porque somos conscientes de nós mesmos?". Ainda não sabemos as respostas para estas perguntas. Tudo que sabemos é que a tecnologia não pode nos dar tais respostas e que devemos procurá-las em outro lugar, talvez dentro de nós mesmos.

Pós-escrito: Esta resenha foi também publicada no jornal O Estado do Paraná, em 06/08/2002, na coluna do jornalista Gladimir Nascimento. Agradeço a ele pela oportunidade.