sexta-feira, maio 25, 2007

A vida não será como em “Guerra nas Estrelas”

É estranho perceber que faço parte daquela geração que assistiu “Guerra nas Estrelas” em sua estréia no cinema, no longínquo ano de 1978, e não na versão remasterizada, digitalizada e plastificada atualmente disponível em DVD. O filme, que está completando 30 anos de lançamento e estreou em 25 de maio de 1977, chegou ao Brasil um ano depois, pois naquela época as coisas por aqui eram bem mais lentas. Assim, parece oportuno comemorar a data com alguns comentários sobre o filme.

Tenho quase certeza que não entendi muito bem a história. Mesmo descontando-se aquelas questões de forças místicas e de alienígenas de outra galáxia, embora incrivelmente humanos (e sem ao menos um pedaço de massinha grudado na testa!), parecia que eu havia caído no meio de uma história que deveria conhecer, mas não conhecia. Já naquela época, “Guerra nas Estrelas” parecia começar no meio, não no começo, mas talvez isso tudo seja uma memória construída, não uma memória de fato. O que me lembro com toda certeza foi de ter ficado muito impressionado com o carro flutuante de Luke Skywalker. Apesar de velho e encardido, aquilo sim era um carro!
Durante muito tempo, embalado pela magia do cinema, pensei em construir um carro flutuante. Estudei mecânica, eletricidade e eletrônica, pesquisei sobre hovercrafts, esses veículos fantásticos que flutuam sobre um colchão de ar, fiz projetos e planos. Naquela época tudo parecia mais fácil, mas, aos poucos, me convenci de que o carro flutuante era impossível. E, mesmo que ele fosse possível, há um problema crucial nele que jamais permitiria o uso prático. Antes de falar sobre isso, porém, é interessante gastar algum tempo analisando outras questões que me deram a certeza de que a vida nunca será como em “Guerra nas Estrelas”.

Em 1997 a Ediouro publicou a tradução do livro “The Dilbert Future”, de Scott Adams, a qual recebeu o título de “O Futuro Dilbert” [1]. Uma tradução ruim, sem dúvida, pois seria mais adequado escrever “O Futuro de Dilbert”, ou então “O Futuro Dilbertiano”. Da maneira como foi feita a tradução, “Dilbert” passa a ser um rótulo, como se disséssemos “As Leis Newton” em vez de “As Leis de Newton”. Um barbarismo inútil, mas que já havia aparecido na tradução do primeiro livro de Adams, que recebeu o título de “O Princípio Dilbert”. Todavia, o pior da tradutora foi reservado para a primeira seção do capítulo 3, cujo título, “Life Will Not Be Like Star Trek”, transformou-se em “A Vida não será como em “Guerra nas Estrelas”. Um pecado mortal no mundo dos tradutores e escritores, comparável a escrever Arthur C. Clarke em vez de Isaac Asimov (ou vice-versa ainda mais freqüente).

O texto original de Adams está publicado em [2]. Mesmo para quem não entende inglês, é fácil perceber, dispondo apenas do texto em português, que Adams está falando de “Jornada nas Estrelas” (Star Trek), não de “Guerra nas Estrelas” (Star Wars). De fato, a tradutora manteve os termos originais holodeck e phasers e traduziu photon torpedo como torpedos de fótons. Ora, esses equipamentos aparecem em “Jornada nas Estrelas”, não em “Guerra nas Estrelas”! Além disso, ela cometeu erros mais graves ao traduzir I got beamed (“fui teletransportado”) como “fui irradiado” e target locked on (“alvo travado”) como “alvo bloqueado”. Na página 34, finalmente, a tradutora revela-se totalmente incapaz de apagar suas pegadas e mantém o termo original trekkies, uma referência clara aos fãs de “Jornada nas Estrelas”, não aos fãs de “Guerra nas Estrelas”.

Apesar de ter errado de forma homérica, a tradutora acertou ao menos parcialmente, pois, se a vida não será como em “Jornada nas Estrelas”, também não será como em “Guerra nas Estrelas”. Não por causa da impossibilidade física de espaçonaves mais rápidas do que a luz ou por causa da inutilidade das aletas de caças espaciais que voam no vácuo, mas por causa de detalhes raramente, talvez nunca, mencionados pelos críticos e comentaristas de cinema. Vejamos alguns deles.

Sabres de luz
Uma presença constante em todos os filmes da série “Guerra nas Estrelas” é o sabre de luz, ocasionalmente denominado “espada laser”, mas somente pelos leigos. O sabre de luz aparece pela primeira vez nas mãos de Obi Wan Kenobi, no Episódio IV (“Uma Nova Esperança”), está constantemente nas mãos dos Jedis e Siths e é visto pela última vez também nas mãos de Obi Wan, após a luta com Anakin no Epísódio III.

Uma análise rápida mostra que o sabre de luz é uma das armas mais fantásticas já concebidas pela ficção científica. Ele é capaz de cortar quase todos os materiais, desde a carne humana até as ligas metálicas mais densas. Paradoxalmente, contudo, um sabre de luz não é capaz de cortar outro sabre de luz. Sem falar, é claro, na estranha propriedade da “luz sólida” da lâmina do sabre, que “acaba” cerca de um metro após a empunhadura, em flagrante desrespeito às leis da física. Mas essas características já foram analisadas centenas de vezes. A inocente pergunta que faço não é sobre a viabilidade física dos sabres de luz, mas sim sobre a visibilidade das lâminas. Por que, afinal, as lâminas dos sabres são visíveis?

Não me refiro à questão da reduzida visibilidade de um feixe de luz cortando o ar limpo. Todos sabem que os tiros de armas laser dos filmes de ficção não seriam visíveis, pois o ar limpo não teria como refletir a luz até nossos olhos. Não é isso. A questão é: por que um Jedi ou um Sith, podendo fabricar uma lâmina invisível, fabricaria uma lâmina colorida e visível?

Uma lâmina invisível seria muito mais mortal do que uma lâmina colorida. É claro que o aprendizado seria muito mais difícil e perigoso, pois seria muito mais fácil cortar a própria mão enquanto se treina com um sabre invisível. De qualquer forma, os Jedis estão acostumados a ter as mãos cortadas, bastando substituí-las por mãos robóticas.

Alguém poderia argumentar que o “cristal” que produz o feixe luminoso é quem dá a cor à lâmina, mas essa explicação é um pouco fajuta. Será que todos os milhares de anos de pesquisa na vastidão daquela galáxia muito, muito distante não foram capazes de produzir um feixe invisível? Outra possível explicação seria a de que os Jedis têm um código de honra que não lhes permite usar sabres invisíveis. Essa explicação também é um pouco fajuta, pois, em primeiro lugar, esse aspecto do código nunca foi mencionado. Em segundo lugar, os Sith, que não têm honra alguma, também usam lâminas visíveis.

Andadores
Os “andadores” (walkers) são aqueles veículos que aparecem pela primeira vez no Episódio V (“O Império Contra-Ataca”). Existem andadores de vários formatos e tipos, bípedes ou quadrúpedes, completamente automatizados ou pilotados por um ou mais soldados. A tecnologia para movimentar e coordenar pernas mecânicas já está a ponto de ser dominada até por nós, meros humanos do século XXI e, portanto, não seria problema. O problema é: se você tem acesso a uma tecnologia antigravitacional fácil e barata, por que iria se preocupar com pernas?

A tecnologia antigravitacional é presença constante em "Guerra nas Estrelas". Até mesmo o Luke Skywalker do Episódio IV, morando em um planeta pobre e decrépito, tem um veículo antigravitacional que flutua como que por mágica. Além disso, a tecnologia antigravitacional de "Guerra nas Estrelas" é também portátil, pois bichinhos e aparelhos flutuantes diminutos estão espalhados por todas as partes. Seria razoável, portanto, que os soldados do Império pilotassem apenas veículos antigravitacionais, que não teriam problemas em se locomover sobre o gelo, água, areia ou sobre o solo de florestas, como no Episódio V (“O Retorno do Jedi”).

Imagino que a única razão que teria levado George Lucas a conceber veículos dotados de pernas foi a satisfação em poder derrubá-los. De fato, é isso que acontece nas primeiras cenas de “O Império Contra-Ataca”, quando a base rebelde do planeta Hoth é invadida e Luke aproveita para derrubar um andador quadrúpede (um AT-AT, All Terrain Armored Transport), dando-lhe um nó nas pernas. Veículos flutuantes não permitiriam tal satisfação! Cena semelhante se repete em “O Retorno de Jedi”, quando um andador bípede (um AT-ST, All Terrain Scout Transport) é derrubado durante a batalha de Endor. É evidente que Lucas está apenas se divertindo, pois nenhum império do mal (ou do bem), dispondo de veículos flutuantes, construiria veículos bípedes, trípedes ou quadrúpedes. A propósito, a culpa não é inteiramente de Lucas, pois a primeira aparição de um veículo desse tipo na ficção científica deu-se em “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, refilmado por Steven Spielberg em 2005, e que mostra a invasão da Terra por tripods alienígenas. Mas ao menos os alienígenas de Wells não mostraram dominar a tecnologia antigravitacional e podemos dar-lhes um desconto.

Carros Flutuantes
Passados 30 anos da estréia de “Guerra nas Estrelas”, ainda não temos carros flutuantes. Isso é frustrante, mas não mais frustrante do que saber que podemos nos comunicar com o mundo inteiro de maneira fácil e barata e que podemos acessar todas as bibliotecas online existentes, mas ainda não temos nossas naves espaciais particulares. Ainda assim, imaginemos durante alguns instantes que carros flutuantes sejam possíveis, talvez por meio da manipulação de algum efeito eletromagnético-gravitacional que desconhecemos. Contudo, mesmo que você consiga fazer um carro flutuar e colocá-lo em movimento, como você faria para pará-lo? Afinal, uma rápida olhada na história da indústria automobilística mostra que os automóveis não se tornaram populares apenas por terem motores eficientes, mas também por terem freios eficientes!

Na verdade, os freios não são tão eficientes quanto os motores dos automóveis. Qualquer um que, ao dirigir na estrada, foi apertado por um caminhão Volvo, com motor de 520 cv, sabe muito bem disso! Mas pelo menos os freios atuais, que usam as forças de atrito de discos e pastilhas, conseguem frear os veículos dentro de certos limites de segurança. Só que as forças de atrito estão completamente ausentes no caso dos carros flutuantes. Como então fazê-los parar? Não haveria como. Talvez alguém possa argumentar que a força de frenagem é do mesmo tipo de força misteriosa e desconhecida que faz o carro flutuar. Talvez. Mas essa é mais uma explicação meio fajuta.

A mão metálica de Anakin Skywalker
Como já mencionei, os Jedis vivem cortando as mãos um dos outros. O sabre de luz tem a vantagem de cauterizar o ferimento, evitando hemorragias intensas, mas é espantoso que ninguém se lembre de recuperar a mão cortada, para fins de reimplante, preferindo-se sempre implantar uma mão artificial.

No final de “O Império Contra-Ataca”, Luke Skywalker tem sua mão direita amputada, logo após descobrir que Darth Vader é seu pai (com um pai desses, ninguém precisa de padrasto!). Após ser resgatado pelas forças rebeldes, Luke tem uma mão biônica implantada. Pode-se ver claramente que se trata de uma mão realmente artificial, pois um robô aparece fazendo pequenos testes nela. Além disso, a mão é recoberta por uma espécie de tecido artificial, que a torna aparentemente sensível e muito semelhante à versão biológica. Para quem passou parte da infância em companhia de Steve Austin, nada muito impressionante.

Ocorre que no final do Episódio II (“O Ataque dos Clones”), quem tem as mãos amputadas é Anakin Skywalker, papel vivido pelo pavoroso Hayden Christensen. O Episódio II se passa 20 anos antes do Episódio V, em uma época mais liberal e em uma galáxia repleta de recursos financeiros. Além disso, quando Anakin tem sua mão amputada, ele ainda faz parte da Ordem dos Jedi, que deveriam ter melhores condições de implantar mãos artificiais do que os amigos rebeldes de Luke. Ainda assim, a mão implantada em Anakin é metálica, fria e insensível! Isso seria o mesmo que dizer que os rebeldes iraquianos recebem melhor tratamento médico do que os soldados norte-americanos! Muito estranho.

Como visto, são muitos os mistérios não esclarecidos em “Guerra nas Estrelas”. Mesmo assim, é sempre bom lembrar que o filme trata da guerra entre duas facções de uma religião mística, cujos adeptos lutam com armas impossíveis e usam espaçonaves mais velozes do que a luz para viajar através de uma galáxia habitada por seres das mais diversas espécies, muitos dos quais vivem em harmonia maior do que aquela existente entre seres humanos e cetáceos, além de nutrirem um gosto especial pelo jazz de certo planeta de outra galáxia muito, muito distante. Esperar maior grau de realismo seria destruir a narrativa.

[1] ADAMS, S. O futuro Dilbert: como prosperar com a estupidez do século XXI. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
[2] ADAMS, S. Life will not be like Star Trek, Harper Business, 1997. Disponível:
<http://scifi.about.com/bladamsstartrek.htm>.

quinta-feira, maio 17, 2007

Darwin na revista Veja

A revista Veja de 9 de maio, motivada pela exposição no Museu de Arte de São Paulo (MASP), que vai até o próximo 15 de julho, trouxe como reportagem de capa a matéria “A revolução sem fim de Darwin”. Na semana anterior, a mesma revista havia publicado uma reportagem sobre a descoberta do planeta Gliese 581, o melhor candidato conhecido ao cargo de planeta habitável fora do Sistema Solar. Duas reportagens científicas em duas semanas consecutivas, publicadas por revista não especializada, é prova de que esse país tão carente de ciência e tecnologia ainda tem jeito. Contudo, é triste perceber que o Brasil faz parte dos países onde reportagens científicas atraem críticas religiosas. É isso que faz, por exemplo, o jornalista Michelson Borges, em artigo publicado no Observatório da Imprensa [1].

Não vou comentar a crítica de Borges em particular. Basta dizer que ela não é científica, muito menos nova. Críticas à teoria da evolução surgiram com o próprio trabalho de Darwin, publicado originalmente em 1859, e se baseiam em um ou mais argumentos da seguinte lista, a qual não pretende ser completa:

(a) A citação de que a bíblia, que representa a palavra de Deus, afirma que o mundo e todos os seres vivos foram criados a um só tempo.

(b) A alegação de que o homem, tendo sido criado à imagem de Deus, não pode ser descendente de seres “inferiores”, tais como símios primitivos.

(c) A citação de frases de filósofos e cientistas contrapondo-se à teoria da evolução.

(d) A afirmação de que a evolução é “apenas uma teoria”, não um fato.

(e) A lembrança de que a repetida menção a Darwin, a quem a teoria da evolução está perenemente vinculada, representa um “culto” e, logo, é irracional.

(f) A alegação de que a vida não poderia ter surgido por acaso, como afirma a teoria da evolução.

Nenhum dos argumentos acima é científico, embora todos sejam muito comuns. Vamos analisar rapidamente cada um deles.

O argumento (a) parte de duas hipóteses subjacentes: a hipótese de que a bíblia representa a palavra de Deus e a hipótese de que a bíblia contém enunciados científicos. A primeira hipótese só pode ser aceita por meio da fé, pois o único lugar onde está escrito que a bíblia representa a palavra de Deus é na própria bíblia. Logo, devemos aceitar este texto sagrado como escrito por Deus antes mesmo de tê-lo aceito como escrito por Deus! A segunda hipótese, a de que a bíblia contém enunciados científicos, subverte a própria razão de existência deste livro. De fato, os hebreus nunca foram um povo científico, nunca se dedicaram a problemas científicos e escreverem a bíblia com propósitos religiosos e culturais. Acreditar que camponeses mediterrâneos, desconhecedores do método científico, possam ter descoberto os segredos profundos do universo é, novamente, um ato de fé. E, tendo-se fé, é possível alegar, talvez até provar, a existência de qualquer coisa, desde o monstro de espaguete até a xícara de chá em órbita de Marte (ou será Saturno? - nunca me lembro. De qualquer forma, esse meu último argumento não é novo nem original, mas é muito bom!).

O argumento (b) é também religioso, não científico, e surge da posição central reservada ao homem pelas religiões judaico-cristãs. Somente os adeptos de tais religiões poderiam se sentir ofendidos por uma teoria que coloca o homem e os outros animais como herdeiros de um ancestral comum. Um budista, por exemplo, dificilmente teria tais temores. Enquanto muitas religiões consideram os conceitos de “criação” e “evolução” como antagônicos, o budismo prescinde do próprio conceito de “deus criador”. Por tal razão, o budismo atual aceita calmamente a teoria da evolução, assim como aceita as teorias modernas sobre a origem do universo. É claro que, à luz de tal constatação, muitos cristãos, especialmente os protestantes mais radicais, rapidamente rotularão o budismo como “filosofia” e não como “religião”, livrando-se da espinhosa tarefa de explicar como um sistema de crenças adotado por milhões de pessoas pode se sentir tão à vontade com o papel não central reservado ao homem (*).

O argumento (c) dificilmente convencerá uma pessoa de certa cultura. Frases de cientistas e filósofos, especialmente quando removidas dos contextos em que foram enunciadas, podem ser usadas com os mais variados fins. Palavras de homens como Kepler, Newton, Galileu e Einstein têm sido usadas por ateus e crentes para seus próprios fins. Retórica, nada mais. Entretanto, a ciência não é uma coleção de frases de cientistas famosos, mas sim uma coleção de hipóteses que devem ser submetidas à verificação experimental. Se uma determinada hipótese, mesmo que levantada pelo cientista mais graduado que se possa imaginar, contradiz um resultado experimental, então, sinto muito, mas tal hipótese é falsa. Recorrer à palavra de cientistas e filósofos famosos, especialmente quando mortos, sem dar atenção à verificação experimental, é um exemplo de “argumento de autoridade”, não de argumento científico.

A afirmação (d), de que a evolução é “apenas uma teoria”, é bastante comum. E errada. Ela se baseia no conceito leigo de “teoria”, que é bastante diferente do conceito científico. Para os leigos, uma “teoria” é um conjunto de idéias e pensamentos que são frequentemente desmentidos pela prática (“na prática a teoria é outra”, dizem). Para um cientista ou filósofo da ciência, por outro lado, uma teoria é um conjunto de hipóteses que podem ser verificadas experimentalmente. Trata-se de uma questão de evidências, não de uma questão de fé. E as evidências a favor da teoria da evolução são avassaladoras, a ponto de não existir uma teoria científica concorrente, aspecto que deixa os criacionistas particularmente irritados. O leitor interessado pode consultar o site TalkOrigins [2], que contém uma grande quantidade de informações sobre evidências a favor da teoria da evolução.

Outro problema com o argumento (d) é uma falha em reconhecer que tudo o que temos são modelos teóricos. A afirmação de que o Sol nascerá amanhã no leste é parte de um modelo teórico, a afirmação de que a Terra é esférica é parte de um modelo teórico, a afirmação de que o coração impulsiona o sangue é parte de um modelo teórico. Quando um modelo pode ser submetido à verificação experimental, dizemos tratar-se de um modelo científico. A afirmação de que o universo surgiu do ato de pura imaginação dos alienígenas verdes do planeta Dreenor, por exemplo, também é um modelo teórico, mas não é um modelo científico, pois não pode ser verificado experimentalmente. Assim, a teoria da evolução é realmente “apenas uma teoria”, mas é uma teoria científica. Outras teorias concorrentes da evolução, como o criacionismo e o design inteligente, também são teorias, mas não são científicas.

O argumento (e) não pode ser direcionado aos biólogos evolucionistas profissionais. A admiração por Darwin pode levar um adolescente a se tornar um biólogo, assim como a admiração por Einstein pode levá-lo a se tornar um físico, mas nenhum profissional sério se mantém ativo na profissão por causa de amor platônico. E embora a idolatria, direcionada a Darwin ou a qualquer outro cientista, seja realmente irracional, nada disso depõe contra a teoria da evolução ou qualquer outra teoria científica. Trata-se apenas de um pequeno ciclo de confusões de alguém que diz: “Minha religião afirma que o homem foi criado por Deus. Logo, o homem não pode ter evoluído a partir de bactérias. Logo, a teoria da evolução é errada. Logo, Darwin, que criou a teoria da evolução, estava errado. Logo, a admiração por Darwin é errada. Logo, devemos combater toda afirmação favorável a Darwin, pois não fazê-lo seria aceitar a teoria da evolução, que nós combatemos”. Vaidade, nada mais que vaidade.

Finalmente, a alegação (f) é fascinante, pois parte de duas hipóteses subjacentes: a hipótese de que a evolução se deu (e se dá) por acaso e a hipótese de que a teoria da evolução diz algo sobre o surgimento da vida. Ambas hipóteses falsas.

A hipótese do acaso tem sido levantada por vários religiosos, especialmente pastores protestantes. Eles frequentemente dizem que acreditar na evolução é o mesmo que acreditar que, colocando-se plástico, tinta e metal sobre uma mesa, em algum momento futuro surgirá uma caneta esferográfica pronta. Mas não é assim que a evolução funciona.

A evolução não se dá ao acaso. A evolução é simplesmente a mudança dos traços hereditários de uma população, de uma geração para outra, e tal mudança ocorre por meio da combinação de dois processos básicos: mutações genéticas e seleção natural. As mutações são aleatórias e tal característica pode dar a impressão de que a evolução também é aleatória, ou seja, se dá ao acaso. Contudo, a seleção natural não é aleatória, pois privilegia a sobrevivência dos organismos mais bem adaptados e não a sobrevivência de organismos selecionados ao acaso. As pressões do meio-ambiente produzem um incentivo suficiente para que a evolução pareça ter um objetivo, embora orientado por uma mão cega. E é sempre bom lembrar que “evolução” não significa necessariamente “melhoria”. Primeiro, porque teríamos que definir o que significa “melhoria”. Segundo, porque há casos em que estruturas mais complexas evoluíram para estruturas menos complexas, como ocorreu com as nadadeiras das baleias. Nossa prosaica caneta esferográfica não se reproduz, não responde às pressões do meio-ambiente e, logo, não sofre seleção natural (mas, caso tal acontecesse, poderíamos dizer com segurança que apenas as canetas mais bem adaptadas sobreviveriam!).

A segunda hipótese do argumento (f) é falsa porque a teoria da evolução não afirma nada sobre o surgimento da vida na Terra. Não se trata de uma teoria da “criação científica” ou da “geração espontânea”, mas sim de uma teoria que afirma que os organismos mais complexos (como nós, os golfinhos, os ornitorrincos e as sequóias) evoluíram a partir de organismos menos complexos (as bactérias primitivas). A teoria da evolução não faz nenhuma afirmação sobre o surgimento das primeiras bactérias em si. Sobre tal fenômeno, no momento só temos hipóteses não verificadas. A mais provável delas, denominada abiogênese, é a de que a vida surgiu a partir de macromoléculas orgânicas contidas no ambiente primitivo. Todavia, não poderemos ter certeza disso até que alguém consiga produzir uma bactéria viva a partir de macromoléculas não vivas. Quando tal feito ocorrer, se ocorrer, ele será mais importante do que a descoberta de vida extraterrestre, mais importante do que a fusão a frio, mais importante do que a reversão do aquecimento global. Se tal feito ocorrer, os cientistas viverão uma época fascinante, embora possam vir a ser acusados mais uma vez de “brincar de Deus”. Os religiosos mais radicais da linha judaico-cristã, por outro lado, enfrentarão tempos difíceis.

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[1] http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=433FDS004
[2] http://www.talkorigins.org/
(*) Obviamente, as afirmações favoráveis ao budismo não me tornam budista.

terça-feira, maio 01, 2007

Como você diz “Google”?

Acabo de assistir à reapresentação do programa “Happy Hour”, capitaneado pela Astrid, e fiquei agradavelmente surpreso em ver todos os participantes pronunciarem corretamente a palavra “Google”. Com um pouco de sorte, a moda pegará e vamos deixar de ver gente irritante falando coisas como “Gâgou”, “Gágou”, “Gôgol”’ ou até mesmo “Gugle”, com o encontro consonantal pronunciado como em “gleba”. Não sou exatamente o maior defensor do purismo lingüístico, mas parto do princípio de que, ao defender minha língua matter de maneira cuidadosa, não posso cometer a falta de elegância de estragar a língua dos outros (com perdão do trocadilho).

Mesmo sendo um neologismo, “Google” é uma das palavras mais simples da língua inglesa e se originou de “googol”, termo que significa o número 1 seguido de 100 zeros (ou 10100, em potência de dez). “Googol", por sua vez, foi criado do nada, em 1920, por Milton Sirotta, sobrinho de nove anos do matemático norte-americano Edward Kasner, que estava escrevendo o livro “Matemática e Imaginação”.

Os fãs do astrônomo Carl Sagan sabem muito bem como pronunciar “googol”, pois esse número apareceu em um dos episódios da série “Cosmos: a Personal Voyage”, de 1980. No capítulo intitulado "A vida das estrelas" (ver abaixo), Sagan precisa dar uma idéia da dimensão do universo e aproveita para falar sobre números muito grandes, como "Googol" e "Googolplexo", este último sendo o número 1 seguido de um Googol de zeros. Um número fantasticamente grande, por certo, mas, como nos alerta Sagan, tão perto do infinito quanto o número 1. O vídeo disponibilizado abaixo é longo, tendo quase uma hora de duração, mas o comentário sobre o Googol é feito aos 7 minutos e 57 segundos (*). A pronúncia de Sagan é clara: "googol" é pronunciado como "gúgol", sem exagerar no "éle" final, mas sem pronunciá-lo como fazia Getúlio Vargas com a palavra "Brasil" e tampouco pronunciá-lo como o "ú" final usado pela maioria dos brasileiros em substituição ao "éle" final.


(Infelizmente o vídeo foi removido após a conclusão deste texto)

Obviamente, “googol” e “Google” não são a mesma coisa. O primeiro é uma maneira sintética de escrever um número enorme. O segundo é o nome de uma empresa e de um aplicativo da web. Diz a lenda que “Google” teria surgido a partir de “Googol” por causa de um erro de digitação. Contudo, agora “Google” faz parte de alguns dicionários, inclusive do famoso Merriam-Webster, que oficializou o vocábulo como verbo, de forma que é possível verificarmos a pronúncia. A versão online desse dicionário pode ser encontrada em http://www.m-w.com/dictionary e o vocábulo em questão pode ser acessado diretamente em http://www.m-w.com/dictionary/google. Um leve clique sobre o pequeno alto-falante revela o mistério da pronúncia.

Entretanto, “Google” não é a única palavra inglesa a quebrar a língua de muitos brasileiros (inclusive de muitos profissionais de TI, que deveriam dominar o inglês como os artistas de outras épocas dominavam o francês). Há inúmeras outras, como “country” e “county”, palavras muito semelhantes entre si, mas cujas pronúncias diferentes apenas revelam algumas das muitas esquisitices da língua inglesa. Mas a palavra inglesa mais maltratada pelos brasileiros deve ser “Yorkshire”, nome de um dos mais famosos distritos históricos da Inglaterra e palavra incorretamente pronunciada por 99,78% dos criadores brasileiros de cães. Se você é um desses, sugiro acessar o endereço http://www.thefreedictionary.com/yorkshire e clicar sobre o pequeno alto-falante. Garanto que você ficará surpreso.

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(*) Agradeço ao Marcos Paulo Serafim, da CienciaList, por ter me indicado o link.