segunda-feira, agosto 09, 2021

Livros e cachimbos

Meu pai era um grande colecionador de enciclopédias, tarefa que exigia muita disciplina. Em meio a todas as enciclopédias que ele mantinha em uma pequena biblioteca, que para mim era gigantesca, uma se destacava: "Os Bichos", uma enciclopédia ilustrada em 14 volumes, publicada em 1970 pela Abril Cultural, quando eu tinha 5 anos. O último volume se chamava "Os Bichos Evoluem" e tinha um Triceratops na capa. Um belo dia eu comecei a achar aquilo muito estranho e perguntei ao meu pai porque aquele volume tinha um nome diferente. Ele me disse então que todos os bichos atuais "vieram" de bichos mais primitivos e completou: "Por exemplo, o homem veio do macaco". Não sei se foi exatamente o que aconteceu depois, pois já se passaram mais de 50 anos, mas me lembro claramente de ter dito a ele, como se fosse um desafio: "Então me mostre uma foto de quanto você era macaco!" Não sei qual foi a explicação que ele me deu, mas não tenho dúvidas de que ele sabia a diferença entre "árvore evolutiva" e "escada evolutiva" e não deve ter se atrapalhado com a resposta.

Não tínhamos a "Enciclopédia Britannica" em casa, talvez porque ela não pudesse ser colecionada a partir de fascículos. Mas, uma outra enciclopédia que tínhamos era a "Conhecer", publicada 12 volumes, também pela Abril Cultural, em meados da década de 60. Também me lembro da "Ciência Ilustrada", publicada em 12 volumes, também pela Abril Cultural, e que abrangia assuntos como Astronomia, Biologia, Física e Química. Para quem se dispusesse a ler e tivesse interesse, aquela enciclopédia era um poço sem fundo. Não tenho dúvidas de que moldou meus interesses. 

Entre tantos livros e enciclopédias havia um pequeno livro que fez minha cabeça explodir: um livro ilustrado sobre a conquista da Lua. Eu não tinha mais de 5 anos quando Armstrong deu aquele famoso passo em 1969, de modo que o livro ainda demorou algum tempo para aparecer na estante. Depois disso, Neil Armstrong tornou-se meu herói (Steve Austin veio alguns anos depois), tanto que de vez em quando eu achava muito estranho que algumas pessoas pensassem que Armstrong fosse um trompetista de jaz.

Mas aquilo trazia um problema. Eu já sabia que a Terra era redonda, mas como os astronautas saiam dela? Afinal, se a Terra era redonda, ela devia ser um tipo de "casca esférica" e os astronautas deviam acertar exatamente o "buraquinho" nessa casca para sair dela a ir até a Lua. Então, perguntei ao meu pai e ele me disse algo como: "Os astronautas não estão dentro da Terra, eles ficam em cima da Terra como uma mosca fica em cima de uma laranja". Aquilo foi uma revelação. Eu não me lembro de ter perguntado o que mantinha os astronautas "grudados" em cima da Terra, mas eu também não sabia o que mantinha as moscas "grudadas" em cima da laranja, de modo que a explicação bastava.

Meu pai trabalhou como economista no BADEP (Banco de Desenvolvimento do Estado do Paraná) até a aposentadoria. Ele não tinha enciclopédias de economia, mas tinha vários livros sobre estatística e economia. Eu me lembro de "Trustes e Carteis", de Richard Lewinsohn, cujo título sempre me pareceu muito misterioso e que nunca li, e de outros livros que desapareceu em meio a duas ou três mudanças. Ainda tenho comigo "Ensaios Analíticos", de Mario Henrique Simonsen, um livro de 1994, e "A Revolução Financeira da Idade Média", de Jean Gimpel e "Princípios de Administração Financeira", de Lawrence Gitman. Uma vez ele me disse que ninguém mais tinha o livro do Gitman na época do curso e todos queriam ser amigos dele, pois nem mesmo Xerox existia. Ainda tenho também o "Manual de Economia" de professores da USP e "Dicionário de Economia", de Paulo Sandroni, livros que atrairiam minha atenção quase 15 anos depois da minha formatura, pois, por uma dessas coincidências da vida, durante uma boa parte da minha vida profissional eu vim a trabalhar com avaliação de projetos de investimento e até mesmo fiz um curso de pós-graduação em "Finanças Empresariais". Ninguém poderia prever isso, absolutamente ninguém.

Além do conhecimento em várias áreas e do amor pelos livros, meu pai tinha um hábito que lhe dava um certo "ar intelectual": fumar cachimbos. De vez em quando ele me levava para cortar o cabelo e depois íamos comer pastel. Em algumas dessas vezes ele parava para "abastecer" na Tabacaria Lima. Em uma época em que era mais fácil você encontrar alguém fumando cigarros do que não fumando, em que comerciais de cigarros eram permitidos, em que os professores fumavam em sala de aula e em que as pessoas podiam fumar em seus escritórios, fumar cachimbo dava ao menos um certo "charme". 

Fumar (não cachimbo, mas aquelas porcariazinhas brancas que se seguram entre os dedos) também era um hábito da minha mãe e de algumas irmãs dela. Um belo dia, passou a ser um hábito de dois dos meus irmãos também. E é estranho que se possa ter certeza de que algo aconteceu, embora se tenha certeza de que não aconteceu, mas me lembro claramente de meu pai indo falar comigo, o primogênito, sobre um hábito que ele teria adquirido por causa de seus amigos, que ele estava tentando largar há anos e que esperava que eu não adquirisse.

Depois da aposentadoria ele deixou de fumar, embora tenha adquirido o hábito de mascar palitos de fósforo e cuspi-los no chão.

Eu nunca fumei. Livros bastam.

 








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