terça-feira, junho 03, 2008

Administração: como vincular a teoria com a prática (e vice-versa)?

O editor do Portal Administradores, Leandro Vieira, realizou um bate-papo com o Prof. Walter Nique, da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e da Ecole Supérieure de Commerce de Troyes. Para o Prof. Nique, o ensino da Administração requer vivência anterior em organizações públicas ou privadas: “aqueles que entrarem em uma sala de aula com as mãos abanando em termos de experiência, serão ejetados rapidamente do sistema”, afirma.

Embora eu seja um engenheiro, não um administrador, decidi publicar a entrevista aqui, autorizado pelo Leandro, pois a mesma toca em assuntos que me interessam: educação, administração e conflitos entre a academia e o "mundo lá fora".

Administradores: Muitos alunos de Administração se queixam que o curso é muito teórico e carece de prática. O senhor concorda?

Prof. Nique: Sim, concordo plenamente. A prova disso é que minhas aulas estão estreitamente vinculadas à realidade. Penso que QUALQUER matéria ou disciplina - e mesmo as mais árduas como estatística, matemática, entre outras - podem e devem ser vinculadas à realidade. Lembro-me que, no início de minha vida acadêmica, lecionava a disciplina Pesquisa Operacional para as turmas de engenharia da UFRGS. No programa, constavam as medidas de tendência central e de dispersão (que são os primeiros passos da estatística). Para criar o link entre a teoria e a prática, eu mandava os alunos medir e buscar a altura média dos porto-alegrenses (homens e mulheres) e saber qual a percentagem de cada sexo costumava ir aos estádios de futebol para que, de posse desses dados, eles projetassem arquibancadas onde quase ninguém (97% das pessoas) que estivesse sentado à frente de alguém atrapalhasse a visão do jogo. Este é um típico exemplo que comprova que se pode ajustar qualquer disciplina para que os alunos façam o amálgama realidade/teoria.

Administradores: No Brasil, é muito comum a academia e mercado torcerem o nariz um para o outro. O que se produz na academia (inclusive na área de Administração) permanece restrito ao meio acadêmico. O que perdemos com isso?

Prof. Nique: Isso acontece, e é um grande absurdo. Se a nossa missão como universidade é capacitar os nossos alunos para poderem atuar como executivos e empreendedores no mercado (99% dos alunos da graduação vão para as empresas enquanto apenas 1% se dirige ao ensino e à pesquisa), como abstrair-se deste mesmo mercado? Essa prática, que até admito que existam alguns professores que assim agem, é o mesmo do que tomar veneno e esperar que o inimigo morra.

As pontes de aproximação entre a academia e o mundo dos executivos existem, mas elas não são utilizadas. Os bancos de dados de teses, trabalhos, monografias, etc. estão à disposição por internet e vários outros meios. Por algumas razões, até de desconhecimento, os executivos não possuem a reação de vasculhar o que se fez para não ter que inventar a roda novamente. Aliás, eles pensam que o caso deles é específico e único - como muitas vezes fazemos quando nossos filhos nos preocupam. No fundo, a academia é como um Manual de Instruções que ninguém lê...

Administradores: É muito comum entre aqueles que optam por seguir a carreira acadêmica seguirem a seguinte trajetória: graduação>mestrado> doutorado. Entre a graduação e o mestrado, não têm nenhuma experiência no mercado e, após o mestrado, começam logo a dar aulas. Como você encara isso?

Prof. Nique: Em relação e esse percurso clássico de formação de professores (graduação/mestrado/doutorado), aqueles que entrarem em uma sala de aula com as mãos abanando em termos de experiência nas organizações serão ejetados rapidamente do sistema. Aliás, toda a formação dos professores está centrada na pesquisa, que é a busca do conhecimento da realidade, o que necessariamente implica em atuar nas organizações - tanto no conhecimento da realidade com um quadro teórico para o entendimento, como para realizar trabalhos de consultoria, por exemplo. O sujeito que não percorre este caminho está por fora da realidade, é um alienado sem chances de sucesso em qualquer universidade digna deste nome. O tripé da formação de professores de Administração é o ensino, a pesquisa e a consultoria, portanto sempre em contato estreito com a realidade.

Administradores: Em resumo: Para ensinar a administrar é necessário saber administrar?

Prof. Nique: Penso que sim. Administrar é tomar decisões - e tomar decisões necessita um processo de aprendizagem que tem necessariamente uma dupla entrada: a teoria e a prática. Muitas vezes, quando se hierarquiza alternativas para decisão, é muito fácil, na sala de aula ou teoricamente. Entretanto, quando chega o momento real de decidir nas organizações, a conversa é um pouco diferente, pois nunca se leva em conta todos os aspectos políticos (e política é a arte da relação) internos e externos. Isso é fundamental. Tratar com seres humanos requer muita prática, observação e perspicácia.

Administradores: O senhor disse que é possível fazer o vínculo da teoria com a prática em qualquer disciplina do curso de Administração. Como o senhor faz esse link em suas aulas?

Prof. Nique: Vou citar o exemplo da disciplina Pesquisa em Marketing, na qual a turma constrói na prática – do começo ao fim – uma pesquisa de marketing. Essa disciplina que desenvolvemos na Escola de Administração da UFRGS tem um método pedagógico bastante diferente em relação à forma como é ministrada em outras Escolas de Administração do Brasil e mesmo do exterior. Tenho plena convicção de que, se o aluno não consegue ver os resultados nos processos desenvolvidos em sala de aula, ele perde completamente o interesse na matéria. Além disso, o que é pior, no exercício de sua profissão, ele terá preconceitos em relação àquela área. O conhecimento, para mim, é um processo solitário que cada indivíduo desenvolve conforme suas capacidades, valores pessoais e objetivos de vida. A construção deste conhecimento é necessariamente uma mescla dinâmica da teoria com a práxis.

No primeiro encontro com os alunos, discutimos o processo que teremos durante o semestre e proponho que eles discutam possíveis temas que serão o objeto da pesquisa que irão realizar durante o semestre. Duas coisas que faço questão de salientar: o tempo dispensado à disciplina e a característica de utilização dos resultados pela comunidade (no caso, sempre se passa em Porto Alegre. por problemas de aplicação em outras áreas geográficas). Em relação à primeira, eles sabem que no mínimo, os mesmos quatro créditos (60 horas) eles terão de trabalho fora da sala de aula. A sala de aula é o espaço para o desenvolvimento teórico e para as perguntas e dúvidas que necessariamente surgirão. No que diz respeito ao segundo item, não vejo sentido algum um grupo de pessoas dispensar gratuitamente uma enorme energia para satisfazer necessidades comerciais de uma ou outra organização cujo fim é o lucro. A UFRGS é uma universidade pública e gratuita e, portanto, aqui vemos uma oportunidade de fazer um gesto à comunidade que, através de seus impostos, financia o ensino que os estudantes estão usufruindo.

Após dois ou três encontros, definimos o tema a ser abordado e começamos a definição do(s) objetivo(s) da pesquisa. Os alunos se dividem em grupos para racionalizar o processo de pesquisa. Saliento que não existe nenhuma indicação por parte do professor, e os alunos decidem participar em quantos grupos se lhes aprouver. Há um grupo coordenador, um grupo que montará a busca e seleção dos dados secundários, um outro que montará o grupo motivacional ou “focus group”. A partir destes dados, haverá a construção de um questionário que é tarefa de outro grupo. Paralelamente, existe um grupo para preparar o processo amostral que, necessariamente, será aleatório, e todos os procedimentos operacionais de aplicação do questionário. Depois de pré-testar o instrumento de coleta de dados, TODOS os alunos aplicam 20 questionários, o que nos faz uma amostra de umas 600 respostas. Cada estudante digitaliza seus 20 questionários, depois de haver participado de três aulas de manejo do software SPHINX (específico para pesquisas de marketing), e existe um grupo que fará a consolidação do banco de dados e a análise dos dados. Terminada a análise e discussão com o conjunto dos alunos, os coordenadores dos grupos reúnem-se com a coordenação para a construção do relatório de pesquisa que será disponibilizado através do site da disciplina e, às vezes, entregue a autoridades que se achar pertinente. Finalmente, este último grupo responsável pelo relatório, faz uma síntese (máximo de 10 páginas) apoiado por uma apresentação em “power point”, para divulgar para toda a turma em sala de aula. Faz-se um documento também para os meios de comunicação, de maneira a dar a maior visibilidade possível aos resultados obtidos. Seguidamente, os alunos são convidados a participar de programas inteiros de televisão ou de paginas inteiras de reportagens de jornais de grande circulação do Rio Grande do Sul. A discussão inicial do tema tende a privilegiar os assuntos mais na moda e, por conseqüência, tem espaço garantido na mídia.

No final, gosto muito de ressaltar, nesta disciplina não existe “copiar/colar”, prática bastante comum em algumas disciplinas do curso... Nesta disciplina, eles criam conhecimento que não existia anteriormente. E todos ficam realmente muito orgulhosos em ver seu conhecimento sendo entregue à coletividade.

Administradores: Muito interessante! De que forma isso impacta diretamente na formação dos alunos, futuros administradores?

Prof. Nique: Posso citar alguns resultados bastante evidentes. Vários alunos desenvolveram projetos de criação de empresas de Pesquisa em Marketing e de Consultoria. Cito, por exemplo, a Focal, desenvolvida pelo Gustavo Campos (), e a Destaque, criada pelo Marcelo Godói, duas grandes referências de pesquisa no Rio Grande do Sul.Em termos de feed-back, vários ex-alunos me mencionaram que, apesar de não haver feito mais pesquisas como a desenvolvida na disciplina, eles contratam, nas organizações onde atuam hoje em dia, serviços de empresas especializadas, e esta formação contribui enormemente para discutir cada projeto de pesquisa bem como fazer a crítica dos resultados. Este conhecimento é particularmente útil quando da decisão de adquirir esses serviços entre várias empresas/projetos.

Administradores: Quais metodologias adotadas em outros centros de excelência no ensino da administração do mundo que poderiam servir de referência para as instituições brasileiras?

Prof. Nique: Em termos de métodos de ensino adotados no ensino da administração, além do clássico de Harvard com seus estudos de caso, eu gostaria de salientar um curso que julgo ser o melhor (e medi bem as minhas palavras quando disse “o melhor”) curso de administração da América. Trata-se do curso Gestão para a Inovação e Liderança da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Desde logo, ressalto que sou professor da UFRGS, e não mantenho vinculos empregaticios com a UNISINOS, o que fortalece a minha legitimidade em fazer esta afirmação.

Este curso está concebido sobre duas colunas principais. A primeira é o tipo de abordagem, pois ela se diferencia da tradicional que é sob forma de disciplinas e estuda os fatos dos diversos prismas presentes. Por exemplo, vamos falar em renascença e, portanto, a “aula” será coordenada por um economista, um historiador, por um cientista político e por algum professor de arte. Todos os professores, isto é em conjunto na mesma sala, discutirão e apresentarão a realidade da renascença desde sua perspectiva. Posteriormente, os alunos vão às organizações (eu disse organizações por ser muito mais amplo que empresas) ver os vínculos com aquilo que foi discutido em aula. Este é um método absolutamente congruente com a realidade pós-moderna do hiper-espaço e totalmente inovador. A segunda coluna, decorrente da primeira e aflorada há pouco, é a prática sistemática nas organizações daquilo que é discutido em classe. E estas são em todos os sentidos e hierarquias e geografias... O assunto pode ser ligado ao processo produtivo que pode ser comparado entre o que existe no Rio Grande do Sul, na Argentina e no Uruguai, ou em outros estados do Brasil. Os alunos vão para os países citados, além do Chile, Canadá e Estados Unidos para estágios curtos de duas ou três semanas observando, trabalhando, discutindo nos diversos níveis funcionais da administração. Eu sou um grande entusiasta deste curso e lastimo não haver podido fazer um benchmarking aqui na Escola de Administração da UFRGS.

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