quarta-feira, setembro 05, 2007

O ser humano é uma besta quadrada (*)

Da Rússia chegou-nos em fevereiro último mais uma notícia sobre o antigo debate entre religião e ciência. Uma adolescente de 16 anos, de nome Maria Schreiber, abriu uma ação judicial alegando que o livro-texto de biologia usado na escola que freqüenta é ofensivo aos crentes, e que os professores deveriam oferecer uma alternativa à teoria da evolução de Darwin. A corte russa rejeitou a ação, mas a estudante e seu pai afirmaram que iriam recorrer da sentença [1].

Esse é um daqueles casos em que não sabemos se devemos rir ou chorar. O único ponto positivo é que o fato ocorreu na Rússia, não no Brasil, e não iremos nos tornar, ao menos dessa vez, objeto de chacota internacional.

Não tenho certeza que parte da teoria da evolução os crentes entendem como ofensiva, mas imagino que seja aquela que afirma que o homem e os macacos atuais compartilham de um ancestral comum, o qual começou a se diversificar há 40 milhões de anos. Esse fato é geralmente expresso pela frase “o homem descende do macaco”, com a ressalva obrigatória de que se trata de um macaco primitivo, não de um macaco atual. Homens, gorilas, chimpanzés, orangotangos, etc., são, portanto, primos genéticos.

A afirmação de que o homem evoluiu de um ancestral primitivo não me ofende em nada, embora eu não tenha certeza sobre o que os chimpanzés pensam dela. Particularmente, tive a sorte de ser muito jovem da primeira vez em que ouvi meu pai, sempre muito esclarecido, dizer que “o homem veio do macaco”. Tão jovem e ingênuo que me lembro de ter pedido a que ele que me mostrasse uma fotografia da época em que ele era macaco... Aos cinco ou seis anos, eu já era um cético.

Infelizmente, o termo “evolução”, em seu sentido biológico, não significa “melhoramento”, mas apenas “modificação”. Não somos melhores do que chimpanzés, gorilas e orangotangos, mas apenas diferentes deles. Somos mais pelados, mais cabeçudos e temos uma cultura mais refinada, mas não somos melhores do que nossos parentes peludos. Talvez sejamos mais inteligentes, mas apenas no sentido muito humano que atribuímos ao conceito de inteligência. Mas não somos mais éticos, não somos mais divinos, não somos mais santos. Não existe melhor prova disso do que as notícias que nos chegam o tempo todo da África, lar de três das quatro espécies de grandes símios.

O gorila da montanha é provavelmente a subespécie mais conhecida desse magnífico animal. Um gorila macho típico pode pesar 180 kg e atingir até 1,7 m, quando totalmente ereto. A força muscular de um gorila é tão superior à humana que, se você for atacado por um deles, o melhor conselho é fechar os olhos e torcer para que tudo acabe rapidamente. Contudo, a não ser que você se comporte de maneira muito tola, isso dificilmente acontecerá. Os gorilas são pacíficos e vegetarianos e, apesar da força descomunal e dos caninos pronunciados, mesmo os grandes machos dominantes preferem resolver as disputas por meio da intimidação e da demonstração de força, não por meio de lutas mortais [2]. Os únicos inimigos dos gorilas são os homens e os leopardos. Mas, mesmo dos leopardos, eles têm pouco a temer.

Em agosto deste ano, seis meses depois da russa Maria Shreiber ter manifestado sua indignação acerca de seus ancestrais biológicos, nove gorilas da montanha foram covardemente assassinados no Parque Virunga, no Congo. De acordo com a reportagem da revista Veja [3], o massacre teria sido organizado por ordem de madeireiros locais, os quais não conseguiram entrar na reserva para derrubar árvores.

Os mais radicais dentre os defensores dos direitos humanos certamente dirão que as condições de vida dos camponeses africanos não são muito melhores do que as dos gorilas, e que os humanos africanos só conseguem sobreviver à custa da exploração do mercado negro de animais selvagens. Talvez. Todavia, existem mais de 60 milhões de seres humanos no Congo, mas menos de 400 gorilas da montanha. Dentro de 30 anos não haverá mais gorilas andando pelas montanhas, mas os seres humanos continuarão numerosos e famintos.

Talvez seja apenas azar dos gorilas, bem como de tantos outros animais, terem co-evoluído com a espécie mais beligerante que já habitou o planeta. Mas o azar é nosso também. Afinal, talvez alguns se lembrem do massacre em Ruanda, que faz fronteira com o Congo, no qual um milhão de humanos foram mortos em 1994, sem que país algum protestasse. Se não conseguimos evitar nem mesmo o massacre de seres humanos, que esperança haverá para os gorilas da montanha?

Assim, Maria Schreiber não deveria se ofender por descender de símios primitivos ou por ser prima de gorilas e orangotangos e prima-irmã de chimpanzés. Nenhum desses animais, por selvagem que seja, pratica o genocídio.

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(*) Frase freqüentemente citada pelo professor Newton da Costa, matemático e lógico brasileiro, reconhecido internacionalmente por suas pesquisas em lógica paraconsistente, área do conhecimento que ele ajudou a criar. Detalhes adicionais em
< http://www.cle.unicamp.br/arquivoshistoricos/newtondacosta_biografia.html>.

[1] ESTADÃO. Justiça russa se recusa a proibir ensino da evolução. 21 fev 2007. Disponível: <http://estadao.com.br/ciencia/noticias/2007/fev/21/252.htm>.

[2] Berggorilla & Regenwald Direkthilfe. Acesso em: 05 set. 2007. Disponível em: <http://www.berggorilla.org/english/frame.html>.

[3] Veja. E ainda nos julgamos superiores. 02 set. 2007. Acesso em: 05 set. 2007. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/290807/p_126.shtml >.