domingo, julho 01, 2007

Ernst Mayr e a Filosofia da Biologia

A edição n°7 da revista “Scientific American História”, intitulada “O homem em busca das origens”, traz o artigo “O impacto de Darwin no pensamento moderno”, artigo este muito interessante e baseado em uma palestra de Ernst Mayr, quando do recebimento do prêmio Crafoord da Academia Real de Ciências da Suécia, em 1999.

Ernst Mayr (1904 – 2005), nascido na Alemanha, foi um dos mais importantes e influentes biólogos evolucionistas do século XX. Após iniciar seus estudos em medicina, em parte para atender a uma tradição familiar, Mayr concluiu um doutorado em ornitologia, em 1926. Logo após, foi convidado pelo banqueiro e zoólogo Walter Rothschild (1868 – 1937) para participar de uma expedição à Nova Guiné. Após retornar da expedição, em 1931, Mayr tornou-se curador do Museu Americano de História Natural, posição que ocupou até 1953, quando se uniu à Universidade de Harvard, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1975. Em 1942, Mayr publicou seu primeiro livro “Systematics and the Origin of Species” [1]. Ao lado dos trabalhos de Theodosius Dobzhansky (1900 – 1975), George Gaylord Simpson (1902 – 1984) e outros, esse livro contribuiu para a síntese entre a teoria da hereditariedade de Mendel e a teoria da evolução de Darwin, dando origem àquilo que se denomina atualmente de “síntese moderna”, “síntese evolucionária” ou, simplesmente, “neodarwinismo” (apesar das objeções de muitos, este blogueiro incluído, quanto ao uso do sufixo “ismo” para caracterizar um ramo da ciência). Mesmo após sua aposentadoria, Mayr não parou de escrever, publicando 14 de seus 25 livros após os 65 anos de idade.

Ernst Mayr também é considerado o inventor da moderna filosofia da biologia. Para Mayr, a biologia se distingue da física pela necessidade da construção de uma narrativa histórica. A biologia, diz Mayr, especialmente a biologia evolutiva, é uma ciência histórica, pois tenta explicar eventos que já ocorreram e, ao contrário da física e da química, experimentos e leis não são adequados a ela. Na biologia, em vez de leis, temos conceitos. Em seu artigo da Scientific American, Mayr afirma: “Nas ciências físicas, via de regra as teorias são baseadas em leis; por exemplo, as leis do movimento levaram à teoria da gravitação. Na biologia evolutiva, no entanto, as teorias são na maior parte baseadas em conceitos como competição, escolha de fêmeas, seleção, sucessão e dominação. Os conceitos biológicos, e as teorias neles baseadas, não podem ser reduzidos às leis e teorias das ciências físicas”.

A biologia é freqüentemente criticada por não ser científica da mesma maneira como a física é científica. Por exemplo, o filósofo Karl Popper (1902 – 1994), famoso por ter introduzido a falseabilidade como critério de demarcação entre ciência e não-ciência, afirmou, em 1974: “Cheguei à conclusão de que o darwinismo não é uma teoria científica testável, mas um programa metafísico de pesquisa – um esquema possível para teorias científicas testáveis” [2]. Embora tal afirmação tenha servido de munição aos criacionistas e anti-darwinistas desde então, de acordo com Mayr a suposição de que a biologia evolutiva deva ter o mesmo status científico da física não é razoável e nem mesmo necessária, pois a biologia evolutiva é científica à sua própria maneira. Popper, por outro lado, tem sido cada vez mais criticado por não ter compreendido o modo como os cientistas trabalham. Mesmo na física, a rainha dos popperianos, os cientistas não trabalham com o objetivo de expor suas teorias à refutação, pois mesmo os físicos gostam de mostrar que estão certos, não que estão errados.

Mayr também se opunha às tentativas de abordagem matemática da teoria da evolução, tais como a de J.B.S. Haldane (1892 – 1964), que figura, ao lado de Ronald Fisher (1890 – 1962) and Sewall Wright (1889 – 1988), como fundador da genética populacional. Mesmo que tal objeção se deva parcialmente à falta de conhecimento matemático de Mayr, e que desde então a genética populacional tenha experimentado grande desenvolvimento, não podemos perder de vista a idéia geral, que é a de que a biologia não pode ser reduzida à física, nem mesmo à química. Logo, como afirmei recentemente nesse blog [3], a idéia de que a teoria da evolução deva ter uma estrutura algébrica para ser caracterizada como científica não é relevante.

Em seu artigo republicado na Scientific American, Mayr enumera ainda os princípios básicos introduzidos por Darwin em 1859, com a publicação da Origem das Espécies, e que tanto abalaram o mundo científico e filosófico de então:

1) O darwinismo rejeitou todos os fenômenos e causas sobrenaturais, abrindo espaço para a explicação estritamente científica de todos os fenômenos naturais.

2) O Darwinismo, ao introduzir o pensamento populacional, refutou a tipologia, ou seja, o conceito, originado com os gregos antigos, de que toda variedade da vida consistia de um número reduzido de “tipos” ou “essências”, cada uma formando uma classe.

3) A teoria da evolução tornou desnecessária qualquer força de origem teleológica, ou seja, qualquer força ou “causa final” que conduza a vida a graus de perfeição cada vez mais elevados.

4) Darwin eliminou o determinismo. Embora os físicos ainda tenham demorado mais de sessenta ou setenta anos para concluir que “Deus joga dados”, Darwin já aceitava a aleatoriedade como produtora da variabilidade da vida.

5) Embora Darwin tenha removido o homem do lugar central a ele reservado pelas religiões judaico-cristãos, o darwinismo possibilitou uma nova visão da humanidade, onde o homem surge como o único animal dotado de linguagem verdadeira, com gramática e sintaxe, e de uma cultura rica.

6) Darwin possibilitou o estabelecimento de fundamentos científicos para a ética, pois a seleção natural favorece o comportamento altruísta.

Não é surpresa que a teoria da evolução tenha estremecido os fundamentos sobre os quais se assentava o refinado mundo do século XIX, com sua visão antropocêntrica e baseada na crença de que o progresso era a força propulsora da humanidade.

Aos biólogos, peço desculpas por mais essa incursão em um terreno alheio à minha experiência profissional, mas, dada a importância e efervescência do assunto, pretendo continuar.

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[1] MAYR, E. Systematics and the Origin of Species. Harvard University Press (reprint), 1999.
[2] POPPER, K. Autobiography. In: The Philosophy of Karl Popper, Part I, Open Court, 1974.
[3] ALMEIDA, A.A. Sobre a palestra de Eduardo Lütz: “Ciência, Fé, Evolucionismo e Criacionismo”. 2007. Disponível em: <http://alvaroaugusto.blogspot.com/2007/06/sobre-palestra-de-eduardo-ltz-cincia-f.html>.