sexta-feira, julho 26, 2002

Ânnima, de Toni Casagrande

"Ânnima - A Clonagem e a Busca da Vida Eterna" é o primeiro romance de Toni Casagrande, jornalista e âncora da CBN-Curitiba. Trata-se de um romance de ficção científica que aborda temas como criogenia, clonagem, biodiversidade, efeito estufa e uma boa dose de filosofia e psicologia cognitiva.

O livro é narrado em primeira pessoa. O protagonista, portador de uma doença fatal, tomou a decisão de ser congelado após a morte, no início do século XXI. Sem herdeiros, ele investe todo o seu dinheiro em uma Fundação, cujo objetivo seria pesquisar a cura da doença que o vitimou. Ele é reanimado mais de cem anos depois, quando a Fundação transformou-se em uma mega-corporação, os países não existem mais, uma parte da Amazônia transformou-se em deserto, seres humanos, andróides e robôs convivem agora lado a lado (e até mesmo participam de jogos de futebol!) e há uma profusão de animais e plantas modificados geneticamente, sem falar nas máquinas orgânicas.

O tema da criogenia, ou "criônica", para sermos mais precisos, é recorrente em ficção científica, tendo sido usado tanto no cinema e na televisão (Buck Rogers, Star Wars, Star Trek) quanto em livros (3001: Odisséia Final, por exemplo). Não há problema algum que o tema não seja totalmente original. Em ficção científica, como de resto em toda a literatura, o que vale é a maneira como uma história é contada e não a história em si. É o que acontece em Ânnima. A trama poderia parecer trivial: o protagonista é congelado, reanimado, fica maravilhado com o mundo novo, mas não consegue se adaptar. Contudo, Casagrande vai um pouco além. O processo criogênico a que o protagonista, conhecido simplesmente como "Fundador", foi submetido não é perfeito. Uma grande quantidade de células, inclusive células cerebrais, foi destruída. Após várias tentativas de reparação, os cientistas da Fundação chegam à conclusão que para que o Fundador continue vivo será necessário transferir a mente dele para o corpo de um clone, processo que será feito por meio de um equipamento conhecido como Ânnima, daí o título do livro. As indagações filosóficas do protagonista se intensificam nesse ponto. "Será que continuarei vivo?". "Vou me sentir como eu mesmo?". "Por que tenho que morrer de novo?".

Na vida real, a conservação criônica ganhou novamente as páginas dos jornais quando o jogador de baseball Ted Williams foi submetido ao processo no início de julho de 2002. O mercado criônico parece estar em expansão em várias partes do mundo, especialmente nos Estados Unidos, mas devemos estabelecer uma diferença entre as verdadeiras aplicações da tecnologia e aquilo que é só promessa. A "Criogenia" é o estudo científico do comportamento dos materiais em temperaturas muito baixas, geralmente usando-se nitrogênio ou hélio líquido. Alguns materiais só se comportam adequadamente em temperaturas criogênicas, como é o caso dos supercondutores. Temperaturas mais altas do que a do nitrogênio líquido, mas ainda muito baixas para os padrões humanos, também são usadas rotineiramente para a preservação de materiais e equipamentos e conservação de alimentos. A "Criônica", por outro lado, é um processo criado nos anos 60 que consiste em se congelar, usualmente com nitrogênio líquido (muito mais barato que hélio líquido), pessoas que foram declaradas legalmente mortas. Várias empresas realizam tal processo, como o Cryonics Institute, que cobra preços a partir de US$ 28.000.Outras empresas cobram US$ 120.000 pelo congelamento do corpo inteiro e US$ 50.000 pela opção "neuro" (somente a cabeça). Um grande mercado! O argumento de todas essas empresas é o de que, no futuro, os cientistas saberão como ressuscitar a pessoa congelada e também como reconstruir as células danificadas. Preciosismos terminológicos à parte, no momento a criônica é apenas a segunda maneira mais dispendiosa de se "enterrar" um cadáver (a primeira é colocar as cinzas em uma pequena cápsula em órbita da Terra).

Embora a criogenia seja atualmente utilizada em várias aplicações, nada garante que ela possa ser aplicada em seres humanos como método de hibernação. É verdade que fragmentos do cérebro humano já foram congelados e descongelados com sucesso, mas ninguém pode assegurar sucesso quando se fala do cérebro inteiro e de toda a informação que ele contém. Conjectura-se que o congelamento destruiria as delicadas membranas celulares e deslocaria os neurônios de suas posições, provocando uma espécie de "formatação" no cérebro. Mesmo que a reanimação fosse feita com sucesso, a pessoa que passou pelo processo acordaria com o cérebro "em branco", tendo que aprender tudo de novo e de modo algum se sentiria como a pessoa que foi antes do congelamento.

Casagrande se depara com a necessidade de reparar os danos causados pelo processo criônico, lançando mão de outra idéia da ficção científica conhecida como "transferência de mentes". Esta idéia foi usada por Arthur C. Clarke em "A Cidade e as Estrelas" (1956) e por esse mesmo autor em "3001: Odisséia Final" (1997), embora com outras finalidades e em situações bastante diferentes. Afinal, se a mente é apenas o conteúdo de um cérebro, basta descobrir como as informações estão codificadas para podermos transferir o conteúdo de um cérebro para outro (vamos deixar os detalhes técnicos de lado...), como se faz com discos de computador. A idéia parece absurda, mas não o suficiente para deixar de ser levada a sério por alguns cientistas. Por exemplo, o Dr. Christopher Winter, fundador da equipe de Vida Artificial da British Telecom, calcula que serão necessários cerca de dez terabytes (o número um seguido de treze zeros) para armazenar todas as memórias e experiências de uma pessoa. Winter acredita que esta tecnologia estará disponível dentro de 30 anos (a previsão é de 1997). É claro que, além disso, será necessário saber como ler e gravar as informações em um cérebro humano, tecnologia que parece tão longe de nós quanto a Lua estava dos primeiros hominídeos.

No livro, os cientistas da Fundação decidem então transferir a mente do protagonista para um corpo clonado a partir dele mesmo, só que muito mais jovem. A finalidade seria se livrar de todos os danos orgânicos causados pelo congelamento. Contudo, usando-se a transferência ou não, o processo criônico pode causar mais danos do que o autor deixa transparecer até muito perto do fim do livro. O leitor apressado pode pensar que Casagrande não está a par desses danos, ou que os está deixando de lado para o bem da ficção. Bem, eu garanto que ele está bem a par dos fatos, e a maneira que ele imaginou para tratar dos danos causados pelo congelamento é o que há de mais genial no livro. Infelizmente, revelar o truque seria estragar o desfecho dessa história de ficção que é também uma história de mistério. Para saber o final, só comprando o livro.

O único ponto desabonador é o pequeno tamanho do livro. É claro que mais páginas significariam diminuir as chances de vendagem do livro, o que é uma pena, pois o autor demonstra claramente que poderia ter escrito um livro de 250 ou 300 páginas. Felizmente, algumas pontas ficaram soltas, talvez propositalmente. No fim do livro, o protagonista começa a trabalhar com um cientista que está desenvolvendo um equipamento capaz de intermediar a comunicação entre várias pessoas, colocando os cérebros delas diretamente em rede, não importando a distância entre elas. O impacto social dessa "mente coletiva" seria avassalador e parece um ótimo tema para um segundo livro.

Como leitor de ficção científica de longa data, fiquei muito entusiasmado com a publicação de um autor paranaense nessa área tão pouco valorizada pelo mercado brasileiro de livros. Em países mais avançados, especialmente nos EUA, a ficção científica é uma grande indústria. São publicados mais de duzentos livros por ano e há várias revistas que publicam contos mensalmente. Imagino que isso não seja apenas uma coincidência, mas sim uma demonstração, ainda que tosca, do fato de que países mais avançados dão mais atenção à tecnologia e a seus efeitos sobre a sociedade do que nós. E é disso que trata a ficção científica: não da tecnologia e da ciência em si mesmas, mas sim dos efeitos destas sobre a vida e sobre a mente das pessoas. Nesse aspecto, Casagrande mostrou ser um grande escritor de ficção científica. Em todas as 173 páginas do livro percebemos as inquietações do autor: "Será que sabemos onde vai dar toda essa tecnologia?", "Quantas modificações e impactos ambientais o planeta pode absorver?", "Quem somos nós e porque somos conscientes de nós mesmos?". Ainda não sabemos as respostas para estas perguntas. Tudo que sabemos é que a tecnologia não pode nos dar tais respostas e que devemos procurá-las em outro lugar, talvez dentro de nós mesmos.

Pós-escrito: Esta resenha foi também publicada no jornal O Estado do Paraná, em 06/08/2002, na coluna do jornalista Gladimir Nascimento. Agradeço a ele pela oportunidade.

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