Recebi o livro mais recente do Fabricio Muller, "Rua Paraíba", há dois ou três dias e já o li mais de duas vezes. Para alguém que trabalhou com ele durante pouco mais de cinco anos, além de contatos fora do ambiente de trabalho, é uma obra emocionante e perturbadora, uma verdadeira viagem no tempo.
Conheci o Fabricio no final de 1994, quando entrei no departamento de planejamento da geração da Copel. Ele havia entrado alguns meses antes no departamento de hidrologia, que ficava no mesmo andar. Em poucas horas me dei conta de que todos os engenheiros que trabalhavam naqueles dois departamentos eram engenheiros civis. Eu, sendo um engenheiro eletricista, pensei: "onde foi que eu vim parar?". Me disseram então que o objetivo da minha contratação era fazer uma interface entre o planejamento da geração e o planejamento da transmissão, que ficava no andar de cima e que era dominado por engenheiros eletricistas. Contudo, isso nunca aconteceu de fato e acabei aprendendo mais sobre hidrologia do que sobre planejamento da transmissão. Além de ficarem no mesmo andar, os departamentos de hidrologia e do planejamento da geração eram unidos por uma verdadeira interface: a mesa do cafezinho. Foi aí, até onde me lembro, que comecei a conversar com o Fabrício. Mas não tive essas conversas com todos os outros, o que significa que o cafezinho não é suficiente.
Eu já conhecia vários assuntos do livro: as dificuldades no mestrado, a participação em campeonatos de natação, a paixão por Morrissey, Madredeus (ou, mais apropriadamente, por Teresa Salgueiro do Madredeus) e por música de maneira geral, a experiência de um ano com vegetarianismo (abandonada quando um garçom português lhe disse que "peixe é peixe, carne é carne), as opiniões sobre economia, a paixão por literatura e a conversão ao catolicismo por meio da leitura dos livros de Santa Teresa d'Ávilla.
A parte em que o Fabrício fala sobre natação sempre me lembra de uma grande coincidência. Eu frequentei o segundo grau na mesma instituição que o Fabrício, o antigo CEFET-PR, hoje UTFPR, onde mais tarde cursei Engenharia Elétrica. Na disciplina de Educação Física, de acordo com o cronograma semestral, éramos forçados a enfrentar a piscina, fingindo que sabíamos nadar. Uma coisa que sempre me deixava impressionado durante essas aulas era a existência de gente que enfrentava a piscina voluntariamente durante todo o semestre, sem estarem matriculados. Eram os integrantes da equipe de natação e competiam com outras escolas em nome do CEFET-PR. Outra coisa que me deixava impressionado era uma dupla desses nadadores que estava sempre conversando em francês. Eu sabia que aquela língua era o francês, por causa de alguns filmes franceses que eu sempre assistia. Só nunca havia encontrado pessoas "vivas" falando francês. Quando entrei na Copel descobri que um desses integrantes era o Fabrício. Muito pequena esta cidade.
É claro que o livro traz algumas surpresas, como o fato do Fabrício revelar que acha impossível alguém gostar mais do The Cure do que de Justin Bieber. Acho isso bem estranho, mas, afinal, alguém que é coxa-branca devia ter ao menos mais um defeito.
Nos últimos dois anos em que trabalhei com o Fabricio na Copel ele migrou da hidrologia para o planejamento da geração. Este departamento era pequeno, formado por cinco engenheiros civis, incluindo o Fabricio, e por mim. O Fabricio fala brevemente (e misteriosamente) de três desses colegas. Ele se refere a um deles como "o sujeito que tinha o banco de dados de usinas hidrelétricas" e a outro como aquele que "nunca participava de conversas". Ele fala ainda do terceiro colega como "o ateu de carteirinha, um professor amante de ficção científica, etc.". E acrescenta: "Tínhamos ideias semelhantes sobre economia". Por exclusão (eu não tinha um banco de dados de usinas e, embora fale pouco, não sou exatamente calado), imagino que este terceiro seja eu. Esse trecho é realmente emocionante e quero deixar claro que tudo que está lá é recíproco.
Nossas ideias sobre economia dizem respeito ao liberalismo. No final dos anos 90 o Setor Elétrico estava sendo privatizado e a ideia de mercado livre de energia estava sendo introduzida aos poucos. Se tudo desse certo, hoje estaríamos comprando energia elétrica de maneira muito fácil: bastaria entrar em um site de comparação de preços de energia e escolher a comercializadora que estivesse oferecendo o pacote mais vantajoso na ocasião. Depois de pagar, os respectivos quilowatts-hora seriam creditados pela comercializadora de energia em um medidor eletrônico em nossa casa. Seríamos então avisados por este medidor da situação diária ou horária dos créditos. Os consumidores que não tivessem cartão de crédito poderiam comprar um cartão de plástico com os quilowatts-hora desejados na banquinha mais próxima, que seria então introduzido no medidor eletrônico. É claro que sempre haveria aqueles consumidores desconfiados, que prefeririam permanecer cativos, consumindo energia com tarifas anuais fixas, da mesma maneira de sempre.
Infelizmente, muita coisa não deu certo e apenas os consumidores de alta tensão podem atualmente se tornar livres, operando em um mercado baseado em oferta e demanda e contratos livremente negociados, ainda assim com algumas restrições. Isso ocorreu por várias razões, dentre as quais o racionamento energético de 2001/2002, o atentado ao World Trade Center e a entrada do PT no governo.
Um verdadeiro mercado livre deveria ser composto unicamente por empresas privadas. De fato, Roberto Campos, citado pelo Fabricio no livro, dizia que "No Brasil, empresa privada é aquela que o governo controla. Já empresa pública é aquela que ninguém controla". Não sei se atualmente, depois do caso Odebrecht, Roberto Campos teria tanta certeza disso, mas, de qualquer forma, em um mercado livre, uma empresa estatal poderia contar com mais ajuda do governo do que uma empresa privada, estabelecendo um quadro de concorrência desigual. Depois de tantos anos de mudanças, é quase este quadro que existe hoje. As empresas estatais ainda existem, mas as geradoras e comercializadoras privadas mostraram que têm mais agilidade e flexibilidade operacional, reduzindo um pouco a concorrência desigual.
A Copel estava na lista para ser privatizada em outubro de 2001 e isso teria sido muito fácil de se fazer, não fosse o atentado contra o WTC, que fez os investidores se retraírem. Houve outra tentativa em novembro, mas depois veio o ano eleitoral e o governador eleito, Roberto Requião, era contrário à privatização e até mesmo a ligações da Copel com empresas privadas. No início de seu governo, ele disse enfaticamente que "A Copel não foi vendida pela garra do movimento social e pela desgraça do atentando ao World Trade Center. Foi o atentado que suspendeu o processo”. Mais tarde, em um grande evento do setor elétrico realizado em Curitiba, Paulo Pimentel, o presidente da Copel escolhido por Requião, mostrou que tinha a mesma opinião, dizendo que "Foi um ato de Deus que impediu a privatização da Copel". Não sei se ele estava se referindo ao movimento social ou ao atentado, mas imagino que, se dependesse de Deus, o movimento social bastaria.
Na parte em que fala sobre Roberto Campos, o Fabrício diz que o ápice de sua ligação com este economista, professor, escritor, diplomata e político brasileiro foi a leitura do "monumental Lanterna na Popa, autobiografia de mais de mil páginas". E acrescenta: "...lembro do tamanho (e do enorme peso) do livro a Lanterna na Popa, do tipo de impressão utilizado, das cores, de algumas figuras, da quantidade enorme de notas (boa parte das quais eu não li). Lembro da importância que ele teve na minha vida na época, e como eu gostava dele como uma criança com seu brinquedo preferido."
Esses trechos me deram um certo mal-estar, pois Lanterna na Popa ainda está comigo. Felizmente consegui preservá-lo nas duas mudanças de residência que fiz depois que saí da Copel, pois nessas mudanças alguns livros meus sumiram misteriosamente. Infelizmente, nunca li mais do que um quarto do livro, mas, em minha defesa, ele está guardado entre A Moeda e a Lei, de Gustavo Franco, e The Beatles, de Bob Spitz, dois tijolinhos que ainda pretendo ler. Assim, ainda há esperanças.
Quanto ao ateísmo, o problema não é exatamente esse. Afinal, como dizia Mário Henrique Simonsen, para ser ateu é antes necessário provar que Deus não existe, tarefa tão difícil quanto provar que Deus existe. O problema são as religiões e, como as religiões são uma invenção humana, o problema na verdade são os seres humanos. Imagino que, se Jesus voltasse, ele diria: "O que eu disse foi para pregar o amor ao próximo, não para guerrear e se dividir em nome de Deus, para tentar se mostrar superiores a outras "raças", para subjugar as mulheres, para doutrinar as crianças em vez de educá-las, para tentar provar que o Universo tem 6 mil anos de existência e para enriquecer à custa do dízimo. Vamos recomeçar. Anotem aí!"
Seria interessante discutir todas essas questões com o Fabricio. Quem sabe depois da pandemia.