A crise pela qual vem passando o setor brasileiro de aviação civil me lembrou de uma viagem a Quito, capital do Equador, para apresentar um trabalho em um congresso internacional da CIER. Era o ano de 1998, quando o Projeto RE-SEB era jovem, o racionamento de energia estava ainda no futuro e o termo “controlador de vôo” não havia sido incorporado ao vocabulário do brasileiro médio.
O trabalho em questão era “Mudanças Estruturais no Setor Elétrico: Formação e Regulação de Preços”, escrito em conjunto com Paulo Born (que era o primeiro autor, mas, com a gentileza habitual, cedeu-me a oportunidade de fazer a apresentação). Na época, Paulo Born, hoje diretor da Light, estava na ANEEL, cedido pela Copel, e eu estava na Copel. Outro colega da Copel, Renê Bettega (hoje na CPFL), também iria apresentar um trabalho sobre o MRE, então uma novidade no setor. Embarcamos juntos e aproveitei para fazer um esforço financeiro adicional e levar a Sandra, minha esposa.
Era minha primeira viagem de longa distância dentro da América Latina e eu esperava ingenuamente embarcar em um MD-11, os aviões então usados pela VASP em viagens internacionais. Qual não foi minha surpresa ao ver um singelo Boeing 727 taxiando na pista de Guarulhos! Pelo que me lembro, o percurso era Curitiba-São Paulo-Brasília-Manaus-Quito, tudo a bordo de uma lata de sardinhas! Apesar do aperto, a viagem de ida foi tranqüila, com direito a uma vista aérea diurna da selva amazônica, sempre impressionante.
O aeroporto de Quito tem aquele jeitão de rodoviária de cidade pequena, mas não é muito pior do que vários aeroportos de algumas capitais brasileiras, com a diferença dos aviões militares misturados aos aviões civis, que conferem aquele toque de filme de Indiana Jones. O táxi que pegamos para o hotel não tinha taxímetro e o preço foi previamente combinado: cinco dólares. Em um época em que um táxi entre o centro de Curitiba e o aeroporto Afonso Pena não saía por menos de trinta reais, cinco dólares (pouco menos de R$ 6,50, a preços da época) pareciam pouca coisa. Mas a formação de preços no Equador guardava ainda outras surpresas.
Logo na primeira manhã em Quito, ficamos sabendo que, como já esperado, o café da manhã do hotel não era no estilo brasileiro “coma tudo que puder”. Não havia, por exemplo, presunto e queijo. Perguntamos ao garçom por esses itens e ele nos informou que eles seriam cobrados à parte. “Quanto é?” – perguntamos. A resposta: “cinco dólares!” Tudo bem, cinco dólares por uma passagem de táxi é pouco, mas por duas fatias de queijo e duas de presunto, já é demais! Mas o Equador atravessava um período de hiperinflação e, com os preços já informalmente dolarizados (especialmente para turistas), as referências de valores flutuavam bastante.
Chegando ao hotel do congresso, um imprevisto: o secretário brasileiro não havia conseguido chegar a tempo e, por razões que sempre me pareceram um pouco obscuras e tinham a ver com minha reduzida compreensão do espanhol equatoriano, fui escalado para a função. O secretário brasileiro tinha a função de resumir as palestras dos brasileiros, acompanhado de um secretário de língua espanhola. Como o secretário brasileiro nunca apareceu, acabei investido dessa nobre função durante todo o congresso. Em resumo, tive que assistir a todas as palestras brasileiras, até mesmo as que não eram da minha área, e, por uma questão de elegância, também assisti a todas as palestras em espanhol. Não conheci quase nada de Quito, a não ser à noite, mas aprendi um bocado sobre o sistema elétrico de outros países latino-americanos.
No segundo dia, fui almoçar com o Renê no hotel onde estávamos hospedados, pois o restaurante do hotel cinco estrelas do evento ainda era caro demais para nós. Em dada altura, percebi que o Renê estava balançando insistentemente a perna, a ponto dos copos sobre a mesa começarem a balançar também. Olhei para a cortina e notei que ela também estava balançando. “Será que ele está nervoso por causa da palestra que vai dar?” – pensei. Uma fração de segundo depois, notei que o barulho era forte demais para ser provocado por um palestrante nervoso, o que também não explicaria o comportamento dos garçons, que àquela altura já estavam correndo para fora do restaurante. Era um terremoto! Logo depois ficamos sabendo que o tremor havia se iniciado no litoral, perto de Guaiaquil, chegando até Quito com intensidade moderada. Naquele dia fiquei sabendo que muitas coisas da vida, como terremotos e orgasmos, não podem ser plenamente apreciadas da primeira vez em que ocorrem, pois simplesmente não sabemos o que se passa!
O congresso veio e se foi, minha participação foi apenas razoável e, após quatro ou cinco dias de palestras, chegou a hora de voltar para casa. Durante o congresso eu havia conhecido Dorel Soares Ramos, atualmente assistente da diretoria da Bandeirante Energia, experiente em eventos da CIER e em vôos pela VASP/Ecuatoriana. Ele rapidamente sugeriu que recolhêssemos nossas trouxas e nos dirigíssemos ao aeroporto, pois, devido ao grande número de congressistas voltando para o Brasil, havia o risco de overbooking.
A Compañia Ecuatoriana de Aviación, fundada em 1957 por equatorianos e norte-americanos, era a empresa aérea nacional do Equador. Durante os anos 70, os americanos se retiraram da empresa, que foi transformada na Empresa Estatal Ecuatoriana de Aviación, adquirindo rapidamente a reputação de baixa confiabilidade, acumulando atrasos e cancelamentos de vôos. Em 1993, com o arresto de alguns de seus aviões por parte de credores, a empresa encerrou as operações. Dois anos depois, a Ecuatoriana foi comprada pela VASP, que retomou as operações durante cinco anos, vendendo sua participação no ano 2000 para a Lan Chile, que posteriormente a vendeu para o Lloyd Aéreo Boliviano.
Imagine voar por uma empresa pós-falimentar, arruinada por vários anos de corrupção estatal, e que havia sido salva pela VASP! Pela VASP! Os equatorianos são gente boa, muito mais cordiais do que outros povos da América Latina, mas devia ser estressante trabalhar em uma empresa dessas.
Após várias horas de espera no aeroporto, onde pude engraxar meu sapato pela módica quantia de cinco dólares, escapamos do overbooking e finalmente entramos na sala de embarque. Pela janela era possível ver os aviões estacionados na pista e lá estava aquela visão paradisíaca, brilhando sob o sol equatorial, pintada com o logotipo da Ecuatoriana: um McDonnell-Douglas MD-11, um trijato comercial wideboy de longo alcance, com nove fileiras de poltronas e máquina de café espresso! A viagem de volta ao Brasil prometia ser muito mais confortável.
Quando nosso vôo foi chamado, um ônibus estacionou do lado de fora, para nos conduzir até o avião (ou “aeronave”, como eles insistem). Embarcamos no ônibus e, quando já havíamos percorrido um trecho do trajeto, notamos um funcionário do aeroporto correndo atrás do ônibus e gritando algo incompreensível. Depois de alguns momentos de confusão, fomos informados que aquele ônibus deveria conduzir os passageiros do vôo Quito-Miami, não nós. Pensei ingenuamente que, apesar das ordens, o motorista do ônibus teria um mínimo de elegância e não se importaria em conduzir ambos os grupos de passageiros, um de cada vez, se necessário. Mas que nada. Fomos levados novamente para a sala de embarque, descemos do ônibus e tivemos que caminhar até o avião.
Naquela altura já havia sido esclarecido que o MD-11 estava na verdade indo para Miami. Nosso avião (adivinhem!) era um 727, que até aquele momento estava estrategicamente escondido atrás do MD-11! Apesar de tudo, poderia ser pior (poderia ser um Legacy, por exemplo).
Muito pacientemente, entramos na lata de sardinhas e esperamos por todo o ritual pré-decolagem. Já era noite e, com um pouco de sorte, conseguiríamos evitar colidir com as montanhas que circundavam Quito. Mas os equatorianos têm sempre algumas surpresas na manga. Após taxiar, o avião dirigiu-se para a cabeceira da pista e aguardou a autorização para decolagem. Ao receber a ordem, o piloto acelerou conforme previsto nas normas, já se preparando para ganhar os céus, conforme previsto nas normas. O avião acelerou, acelerou, acelerou e, quando estava quase decolando, pof, pof, pof..., decepção geral. Os deuses equatorianos ainda nos queriam por uns momentos.
Após muita consternação entre os passageiros, fomos informados que um problema com a torre de controle havia impedido a decolagem. Não me lembro se a mensagem foi transmitida em português ou em espanhol, mas ficamos sabendo que o avião deveria voltar à cabeceira da pista e aguardar nova autorização de decolagem.
Então, voltamos à cabeceira da pista. Éramos vários brasileiros corajosos, alguns argentinos e uma tripulação equatoriana que parecia muito a fim de brincar conosco.
Novamente, o avião acelerou, acelerou, acelerou e ... pof, pof, pof... Tudo indicava que iríamos passar mais uma noite em Quito, dessa vez com a cortesia da Ecuatoriana.
O comandante informou que um problema qualquer com a torre de controle havia impedido a decolagem e, para surpresa geral, avisou que deveríamos voltar à cabeceira da pista para aguardar nova decolagem. Tudo bem, talvez eles já tivessem removido o controlador de vôo que havia desmaiado. Talvez não fosse um problema com o transponder nem nada parecido. Talvez fosse só uma antena solta ou um estagiário que havia apertado o botão errado.
Voltamos à cabeceira da pista. Eu sempre tentara imaginar o que se passa na cabeça de passageiros que estão prestes a sofrer um acidente aéreo. Bem, de maneira geral, ou não se passa nada, ou os pensamentos são irrelevantes ou apenas totalmente impublicáveis.
Novamente, o combalido 727 acelerou, acelerou, acelerou e ... decolou! Gargalhadas, risos histéricos, sorrisos, aplausos. Nunca uma decolagem foi tão esperada! O avião deu um forte solavanco (mais risos histéricos) e estabilizou. Estávamos a salvo.
Com a paciência já habitual, esperamos pelos esclarecimentos do comandante, pois muitos de nós queriam saber qual tipo de problema havia ocorrido (é bom lembrar que o avião estava cheio de engenheiros e esse tipo de bicho costuma ser muito chato). Os esclarecimentos nunca vieram e muitos passageiros passaram a viagem até Manaus segurando certas partes do corpo, tentando evitar a saída do almoço (ou, em alguns casos, tentando evitar a saída do almoço do dia anterior).
O serviço de bordo começou logo, e as comissárias passaram servindo refrigerante, cerveja, whisky, chá de camomila e passiflora. Então a tempestade equatorial mais próxima resolveu entrar na brincadeira. Turbulência, turbulência, turbulência. As luzes da cabine foram reduzidas, as comissárias e um comissário dirigiram-se aos respectivos assentos e amarraram-se fortemente. Eu sempre imaginara que uma das funções dos comissários de bordo era assegurar a manutenção da calma a bordo, mas garanto que não me acalma nada ver um comissário agarrando-se nervosamente a um cinto de segurança, ao mesmo tempo em que segura um microfone para advertir, em espanhol, uma passageira que insistia em ir ao banheiro: “Señora, toma assento! Señora, toma assento” (imagino que em português isso possa ser traduzido como “senta logo, vaca velha!”).
Para finalizar, mais um toque de elegância da tripulação. Pouco antes do jantar, levantei-me para ir ao banheiro. Ao sair daquela caixinha apertada, o chefe da tripulação estava dando instruções para uma das comissárias sobre como servir o jantar. Só me lembro da parte em que ele disse: “Essas são para os pobres”, o que significava que aquelas bandejas eram destinadas à classe executiva, não à primeira classe (que ficava separada da ralé por uma mera cortina). Bem, minha passagem havia sido financiada pela Copel, mas a passagem da minha esposa foi paga com nosso próprio dinheiro, em suaves prestações. E é assim que a tripulação se refere àquele pessoal que economiza bravamente para pagar os salários deles? Em todo caso, achei melhor não reclamar naquela hora. Ninguém gosta de espaguete ao molho de cuspe.
E assim, depois de muitas emoções e apesar de todos os prognósticos, chegamos vivos em Manaus, onde a tripulação equatoriana foi trocada por uma de brasileiros, e seguimos para São Paulo, onde minha passagem para Curitiba foi roubada. Mas essa é outra história!