O racionamento de energia elétrica de 2008
Em entrevista recente, o engenheiro Jerson Kelman, dono de um impresionante currículo acadêmico e que deixou o cargo de diretor geral da Aneel no último dia 13, afirma que o risco de racionamento no início de 2008 era maior do que em 2001. Isso pode parecer surpresa para muita gente fora do Setor Elétrico, mas, como tenho insistido há algum tempo, não só o risco era grande como de fato ocorreu um racionamento no início de 2008. Tudo depende da definição que se dá a esse conceito.
De modo geral, existem três tipos de racionamento de energia elétrica. O primeiro deles é o corte de carga puro e simples. Esse é o tipo de racionamento ao qual, por exemplo, a Àfrica do Sul recorreu no início de 2008. O corte de carga é radical, impopular e potencialmente devastador. Dificilmente um governo brasileiro recorrerá a ele em um futuro próximo.
O segundo tipo de racionamento é o incentivo à redução de consumo, seja por meio de campanhas de conscientização, seja por meio da aplicação de multas. Campanhas em prol do bem comum nunca funcionam, pois a população fica prisioneira de um tipo de tragédia dos comuns ("para que economizar se meu vizinho já está economizando?"). Multas por insuficiência de redução do consumo funcionam muito melhor e foi isso que o Governo Federal fez em 2001. Essa medida também é impopular (aliada a outros fatores, custou ao PSDB a continuidade no poder), mas não é tão radical nem tão devastadora, embora possa afetar negativamente o crescimento econômico.
No Brasil, os racionamentos dos tipos 1 ou 2 podem ocorrer em uma situação hidrológica altamente desfavorável ("falta de chuva") ou na insuficiência de usinas hidrelétricas para atender à demanda, mesmo que haja água nos reservatórios existentes. O racionamento de 2001, que introduziu no Brasil o termo “apagão”, foi resultado de uma composição desses dois fatores.
O terceiro tipo de racionamento, que é feito pelo lado da oferta, pode ser operacionalizado de maneira mais eficiente em países com matriz energética semelhante à do Brasil, onde as usinas termelétricas são usadas como uma espécie de “seguro anti-apagão”.
Segundo dados da Aneel, nossa capacidade instalada de geração, em números aproximados, divide-se hoje da seguinte forma: 75,7% de hidrelétricas (incluindo PCHs e microcentrais), 22% de termelétricas convencionais (carvão, gás e óleo combustível), 2% de termelétricas nucleares (Angra I e Angra II) e 0,3% de usinas eólicas.
Quando postas a operar, as hidrelétricas, mais baratas do que todas as outras, aumentam sua participação para 80% ou 85%, dependendo da época ao ano. As termelétricas são acionadas por “ordem de mérito”, à medida que a situação hidrológica indica uma maior necessidade de economia de água dos reservatórios. Angra 1 e Angra 2 são exceções, entrando em operação sempre que disponíveis. Usinas nucleares à parte, nosso sistema elétrico é então predominantemente hidrelétrico, com complementação termelétrica.
No final de 2007, início do período úmido do Sudeste, as chuvas tardaram a chegar. O crescimento econômico do país, que já fazia a demanda por energia crescer a 5% ao ano, tornava a situação ainda mais complicada. Em 31 de dezembro de 2007, para fins de comparação, os reservatórios do Sudeste estavam com armazenamento de 46,2%. Um ano antes, esse armazenamento era de 53,3%.
Em vez de pedir que povo economizasse energia, o governo, sob a forma do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), decidiu ligar todas as usinas termelétricas disponíveis, fora da ordem de mérito, inclusive aquelas movidas a óleo diesel. Dessa forma, a geração hidrelétrica foi aliviada e os reservatórios puderam se recuperar.
No racionamento de 2001, feito pelo lado da demanda, muitas indústrias e instalações comerciais alugaram ou compraram geradores a óleo diesel ou gasolina, como forma de compensar a redução do consumo de energia da rede. No início de 2008, essa substituição por óleo diesel e outros combustíveis fósseis, como gás natural e carvão, foi feita diretamente na geração. Assim, não se tratou propriamente de um racionamento da oferta de energia elétrica, mas sim da oferta de energia hidráulica.
Atualmente, decorrido um ano dessa situação crítica que ficou conhecida como “janeiro negro”, os reservatórios do Sudeste, sub-sistema responsável por 70% do armazenamento hidráulico do Brasil, já estão razoavelmente recompostos. Contudo, o custo de se ter ligado as termelétricas em janeiro de 2008, mesmo com redução progressiva até agosto, foi de R$ 1,7 bilhão. Parte desse custo foi imediatamente absorvida pelos consumidores livres e demais agentes do mercado livre, mas não foi absorvida com a mesma velocidade pelos consumidores cativos, que ainda representam 70% do consumo nacional de energia elétrica.
A razão dessa diferença é que, quando as termelétricas são acionadas fora da “ordem de mérito”, ou seja, sem que haja razão estritamente técnica para tal, o custo decorrente desse acionamento é creditado em uma conta denominada “Encargo de Serviços do Sistema” (ESS). O ESS é pago mensalmente por consumidores livres e distribuidoras. A distribuidora, por sua vez, repassa o ESS aos consumidores cativos somente por ocasião dos reajustes tarifários, realizados a cada 12 meses, ou por ocasião da revisão tarifária periódica, que ocorre geralmente a cada quatro anos. Estima-se que, do montante de R$ 1,7 bilhão gerado com o acionamento das termelétricas, pelo menos R$ 1,20 bilhão deva ser repassado aos consumidores cativos. Só para citar dois exemplos, o reajuste médio da Escelsa, distribuidora que atende o estado do Espírito Santo, foi de 12,17%, enquanto o reajuste médio da Celpa, que atende o estado do Pará, foi de 17,24%. Ambos os reajustes foram afetados pelo repasse do ESS e são válidos a partir de agosto de 2008.
Quando analisado do ponto de vista de 2008, um ano difícil para o Setor Elétrico, o panorama energético para 2009 também não era muito confortável. O crescimento do consumo e a insuficiência de novas obras de geração tornavam cada vez mais provável um racionamento pelo lado da demanda já em 2009. Entretanto, a redução do consumo acarretada pela crise financeira internacional e o aumento das afluências no final de 2008 talvez tenham empurrado esse racionamento para depois de 2011. Só que cedo ou tarde a crise irá acabar e a demanda voltará a crescer. Precisamos então usar o pouco tempo que temos para investir em infraestrutura, especialmente geração e transmissão, de modo a não termos que enfrentar uma situação ainda mais difícil no futuro.
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