A vida não será como em “Guerra nas Estrelas”
É estranho perceber que faço parte daquela geração que assistiu “Guerra nas Estrelas” em sua estréia no cinema, no longínquo ano de 1978, e não na versão remasterizada, digitalizada e plastificada atualmente disponível em DVD. O filme, que está completando 30 anos de lançamento e estreou em 25 de maio de 1977, chegou ao Brasil um ano depois, pois naquela época as coisas por aqui eram bem mais lentas. Assim, parece oportuno comemorar a data com alguns comentários sobre o filme.
Tenho quase certeza que não entendi muito bem a história. Mesmo descontando-se aquelas questões de forças místicas e de alienígenas de outra galáxia, embora incrivelmente humanos (e sem ao menos um pedaço de massinha grudado na testa!), parecia que eu havia caído no meio de uma história que deveria conhecer, mas não conhecia. Já naquela época, “Guerra nas Estrelas” parecia começar no meio, não no começo, mas talvez isso tudo seja uma memória construída, não uma memória de fato. O que me lembro com toda certeza foi de ter ficado muito impressionado com o carro flutuante de Luke Skywalker. Apesar de velho e encardido, aquilo sim era um carro!
Durante muito tempo, embalado pela magia do cinema, pensei em construir um carro flutuante. Estudei mecânica, eletricidade e eletrônica, pesquisei sobre hovercrafts, esses veículos fantásticos que flutuam sobre um colchão de ar, fiz projetos e planos. Naquela época tudo parecia mais fácil, mas, aos poucos, me convenci de que o carro flutuante era impossível. E, mesmo que ele fosse possível, há um problema crucial nele que jamais permitiria o uso prático. Antes de falar sobre isso, porém, é interessante gastar algum tempo analisando outras questões que me deram a certeza de que a vida nunca será como em “Guerra nas Estrelas”.
Em 1997 a Ediouro publicou a tradução do livro “The Dilbert Future”, de Scott Adams, a qual recebeu o título de “O Futuro Dilbert” [1]. Uma tradução ruim, sem dúvida, pois seria mais adequado escrever “O Futuro de Dilbert”, ou então “O Futuro Dilbertiano”. Da maneira como foi feita a tradução, “Dilbert” passa a ser um rótulo, como se disséssemos “As Leis Newton” em vez de “As Leis de Newton”. Um barbarismo inútil, mas que já havia aparecido na tradução do primeiro livro de Adams, que recebeu o título de “O Princípio Dilbert”. Todavia, o pior da tradutora foi reservado para a primeira seção do capítulo 3, cujo título, “Life Will Not Be Like Star Trek”, transformou-se em “A Vida não será como em “Guerra nas Estrelas”. Um pecado mortal no mundo dos tradutores e escritores, comparável a escrever Arthur C. Clarke em vez de Isaac Asimov (ou vice-versa ainda mais freqüente).
O texto original de Adams está publicado em [2]. Mesmo para quem não entende inglês, é fácil perceber, dispondo apenas do texto em português, que Adams está falando de “Jornada nas Estrelas” (Star Trek), não de “Guerra nas Estrelas” (Star Wars). De fato, a tradutora manteve os termos originais holodeck e phasers e traduziu photon torpedo como torpedos de fótons. Ora, esses equipamentos aparecem em “Jornada nas Estrelas”, não em “Guerra nas Estrelas”! Além disso, ela cometeu erros mais graves ao traduzir I got beamed (“fui teletransportado”) como “fui irradiado” e target locked on (“alvo travado”) como “alvo bloqueado”. Na página 34, finalmente, a tradutora revela-se totalmente incapaz de apagar suas pegadas e mantém o termo original trekkies, uma referência clara aos fãs de “Jornada nas Estrelas”, não aos fãs de “Guerra nas Estrelas”.
Apesar de ter errado de forma homérica, a tradutora acertou ao menos parcialmente, pois, se a vida não será como em “Jornada nas Estrelas”, também não será como em “Guerra nas Estrelas”. Não por causa da impossibilidade física de espaçonaves mais rápidas do que a luz ou por causa da inutilidade das aletas de caças espaciais que voam no vácuo, mas por causa de detalhes raramente, talvez nunca, mencionados pelos críticos e comentaristas de cinema. Vejamos alguns deles.
Sabres de luz
Uma presença constante em todos os filmes da série “Guerra nas Estrelas” é o sabre de luz, ocasionalmente denominado “espada laser”, mas somente pelos leigos. O sabre de luz aparece pela primeira vez nas mãos de Obi Wan Kenobi, no Episódio IV (“Uma Nova Esperança”), está constantemente nas mãos dos Jedis e Siths e é visto pela última vez também nas mãos de Obi Wan, após a luta com Anakin no Epísódio III.
Uma análise rápida mostra que o sabre de luz é uma das armas mais fantásticas já concebidas pela ficção científica. Ele é capaz de cortar quase todos os materiais, desde a carne humana até as ligas metálicas mais densas. Paradoxalmente, contudo, um sabre de luz não é capaz de cortar outro sabre de luz. Sem falar, é claro, na estranha propriedade da “luz sólida” da lâmina do sabre, que “acaba” cerca de um metro após a empunhadura, em flagrante desrespeito às leis da física. Mas essas características já foram analisadas centenas de vezes. A inocente pergunta que faço não é sobre a viabilidade física dos sabres de luz, mas sim sobre a visibilidade das lâminas. Por que, afinal, as lâminas dos sabres são visíveis?
Não me refiro à questão da reduzida visibilidade de um feixe de luz cortando o ar limpo. Todos sabem que os tiros de armas laser dos filmes de ficção não seriam visíveis, pois o ar limpo não teria como refletir a luz até nossos olhos. Não é isso. A questão é: por que um Jedi ou um Sith, podendo fabricar uma lâmina invisível, fabricaria uma lâmina colorida e visível?
Uma lâmina invisível seria muito mais mortal do que uma lâmina colorida. É claro que o aprendizado seria muito mais difícil e perigoso, pois seria muito mais fácil cortar a própria mão enquanto se treina com um sabre invisível. De qualquer forma, os Jedis estão acostumados a ter as mãos cortadas, bastando substituí-las por mãos robóticas.
Alguém poderia argumentar que o “cristal” que produz o feixe luminoso é quem dá a cor à lâmina, mas essa explicação é um pouco fajuta. Será que todos os milhares de anos de pesquisa na vastidão daquela galáxia muito, muito distante não foram capazes de produzir um feixe invisível? Outra possível explicação seria a de que os Jedis têm um código de honra que não lhes permite usar sabres invisíveis. Essa explicação também é um pouco fajuta, pois, em primeiro lugar, esse aspecto do código nunca foi mencionado. Em segundo lugar, os Sith, que não têm honra alguma, também usam lâminas visíveis.
Andadores
Os “andadores” (walkers) são aqueles veículos que aparecem pela primeira vez no Episódio V (“O Império Contra-Ataca”). Existem andadores de vários formatos e tipos, bípedes ou quadrúpedes, completamente automatizados ou pilotados por um ou mais soldados. A tecnologia para movimentar e coordenar pernas mecânicas já está a ponto de ser dominada até por nós, meros humanos do século XXI e, portanto, não seria problema. O problema é: se você tem acesso a uma tecnologia antigravitacional fácil e barata, por que iria se preocupar com pernas?
A tecnologia antigravitacional é presença constante em "Guerra nas Estrelas". Até mesmo o Luke Skywalker do Episódio IV, morando em um planeta pobre e decrépito, tem um veículo antigravitacional que flutua como que por mágica. Além disso, a tecnologia antigravitacional de "Guerra nas Estrelas" é também portátil, pois bichinhos e aparelhos flutuantes diminutos estão espalhados por todas as partes. Seria razoável, portanto, que os soldados do Império pilotassem apenas veículos antigravitacionais, que não teriam problemas em se locomover sobre o gelo, água, areia ou sobre o solo de florestas, como no Episódio V (“O Retorno do Jedi”).
Imagino que a única razão que teria levado George Lucas a conceber veículos dotados de pernas foi a satisfação em poder derrubá-los. De fato, é isso que acontece nas primeiras cenas de “O Império Contra-Ataca”, quando a base rebelde do planeta Hoth é invadida e Luke aproveita para derrubar um andador quadrúpede (um AT-AT, All Terrain Armored Transport), dando-lhe um nó nas pernas. Veículos flutuantes não permitiriam tal satisfação! Cena semelhante se repete em “O Retorno de Jedi”, quando um andador bípede (um AT-ST, All Terrain Scout Transport) é derrubado durante a batalha de Endor. É evidente que Lucas está apenas se divertindo, pois nenhum império do mal (ou do bem), dispondo de veículos flutuantes, construiria veículos bípedes, trípedes ou quadrúpedes. A propósito, a culpa não é inteiramente de Lucas, pois a primeira aparição de um veículo desse tipo na ficção científica deu-se em “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, refilmado por Steven Spielberg em 2005, e que mostra a invasão da Terra por tripods alienígenas. Mas ao menos os alienígenas de Wells não mostraram dominar a tecnologia antigravitacional e podemos dar-lhes um desconto.
Carros Flutuantes
Passados 30 anos da estréia de “Guerra nas Estrelas”, ainda não temos carros flutuantes. Isso é frustrante, mas não mais frustrante do que saber que podemos nos comunicar com o mundo inteiro de maneira fácil e barata e que podemos acessar todas as bibliotecas online existentes, mas ainda não temos nossas naves espaciais particulares. Ainda assim, imaginemos durante alguns instantes que carros flutuantes sejam possíveis, talvez por meio da manipulação de algum efeito eletromagnético-gravitacional que desconhecemos. Contudo, mesmo que você consiga fazer um carro flutuar e colocá-lo em movimento, como você faria para pará-lo? Afinal, uma rápida olhada na história da indústria automobilística mostra que os automóveis não se tornaram populares apenas por terem motores eficientes, mas também por terem freios eficientes!
Na verdade, os freios não são tão eficientes quanto os motores dos automóveis. Qualquer um que, ao dirigir na estrada, foi apertado por um caminhão Volvo, com motor de 520 cv, sabe muito bem disso! Mas pelo menos os freios atuais, que usam as forças de atrito de discos e pastilhas, conseguem frear os veículos dentro de certos limites de segurança. Só que as forças de atrito estão completamente ausentes no caso dos carros flutuantes. Como então fazê-los parar? Não haveria como. Talvez alguém possa argumentar que a força de frenagem é do mesmo tipo de força misteriosa e desconhecida que faz o carro flutuar. Talvez. Mas essa é mais uma explicação meio fajuta.
A mão metálica de Anakin Skywalker
Como já mencionei, os Jedis vivem cortando as mãos um dos outros. O sabre de luz tem a vantagem de cauterizar o ferimento, evitando hemorragias intensas, mas é espantoso que ninguém se lembre de recuperar a mão cortada, para fins de reimplante, preferindo-se sempre implantar uma mão artificial.
No final de “O Império Contra-Ataca”, Luke Skywalker tem sua mão direita amputada, logo após descobrir que Darth Vader é seu pai (com um pai desses, ninguém precisa de padrasto!). Após ser resgatado pelas forças rebeldes, Luke tem uma mão biônica implantada. Pode-se ver claramente que se trata de uma mão realmente artificial, pois um robô aparece fazendo pequenos testes nela. Além disso, a mão é recoberta por uma espécie de tecido artificial, que a torna aparentemente sensível e muito semelhante à versão biológica. Para quem passou parte da infância em companhia de Steve Austin, nada muito impressionante.
Ocorre que no final do Episódio II (“O Ataque dos Clones”), quem tem as mãos amputadas é Anakin Skywalker, papel vivido pelo pavoroso Hayden Christensen. O Episódio II se passa 20 anos antes do Episódio V, em uma época mais liberal e em uma galáxia repleta de recursos financeiros. Além disso, quando Anakin tem sua mão amputada, ele ainda faz parte da Ordem dos Jedi, que deveriam ter melhores condições de implantar mãos artificiais do que os amigos rebeldes de Luke. Ainda assim, a mão implantada em Anakin é metálica, fria e insensível! Isso seria o mesmo que dizer que os rebeldes iraquianos recebem melhor tratamento médico do que os soldados norte-americanos! Muito estranho.
Como visto, são muitos os mistérios não esclarecidos em “Guerra nas Estrelas”. Mesmo assim, é sempre bom lembrar que o filme trata da guerra entre duas facções de uma religião mística, cujos adeptos lutam com armas impossíveis e usam espaçonaves mais velozes do que a luz para viajar através de uma galáxia habitada por seres das mais diversas espécies, muitos dos quais vivem em harmonia maior do que aquela existente entre seres humanos e cetáceos, além de nutrirem um gosto especial pelo jazz de certo planeta de outra galáxia muito, muito distante. Esperar maior grau de realismo seria destruir a narrativa.
[1] ADAMS, S. O futuro Dilbert: como prosperar com a estupidez do século XXI. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
[2] ADAMS, S. Life will not be like Star Trek, Harper Business, 1997. Disponível:
<http://scifi.about.com/bladamsstartrek.htm>.