É sempre curioso ver um religoso argumentando que alguma teoria científica é irracional. Quando o religioso em questão foi professor de teologia dogmática em uma universidade conservadora, isso é ainda mais curioso. Pois é precisamente isso que o Papa Bento XVI tem feito. Ontem, durante uma missa a 230 mil fiéis na cidade alemã de Regensburg, ele declarou:
"O que existe na origem? A razão criadora, o espírito que opera em tudo e proporciona o desenvolvimento, ou a irracionalidade que, despojada de toda razão, produz estranhamente um universo ordenado de maneira matemática, assim como o homem e sua razão?"
Voltamos assim ao problema da regressão infinita: se foi necessário um criador para o universo, quem criou o criador? E quem criou o criador do criador? O papa, sendo dogmático, pode muito bem argumentar que Deus é "incriado" e existia antes de todas as coisas e criaturas, mas tal argumento seria visto pelos cientistas como um dogma irracional.
Os cientistas não se preocupam em viver em um universo onde a vida surgiu por acaso, como o resultado de reações químicas entre macromoléculas orgânicas. A ocorrência de eventos improváveis parece deixar os religosos perplexos, mas não há motivo para tal. Afinal, sabemos que a vida surgiu. Isso é um fato, e se a única resposta racional residir em um evento improvável, tal resposta é melhor do que qualquer outra. Ao cientista interessa saciar sua curiosidade. Recorrer a um poder sobrenatural criador não é suficiente, não por falta de fé, mas porque não sacia a sede de saber. O céu do religioso é habitado por um deus que sabe todas as respostas, mas esse é precisamente o inferno do cientista, que ficaria sem nada o que fazer.
João Paulo II, que era um pouco menos conservador do que Bento XVI, também teve seus atritos com cientistas. Por exemplo, ele concordava que os físicos poderiam investigar tudo o que quisessem, menos o momento da criação, pois esse era o "ato de Deus", conhecido somente por ele. O físico Stephen Hawking estava presente quando João Paulo fez tal declaração, e teria ficado com vontade de dizer que, segundo algumas teorias cosmológicas recentes, o universo pode ter sempre existido, não tendo sido criado e eliminando-se, portanto, a necessidade de um criador. Mas Hawking, lembrando-se dos problemas de Galileu com a inquisção, achou melhor ficar em silêncio.
Apesar dos atritos freqüentes, a Igreja Católica está milhares de anos à frente de outras religiões, com a possível exceção do budismo, no que diz respeito à tolerância de idéias científicas. Bento XVI, ao posicionar-se contra o evolucionismo e, aparentemente, contra a cosmologia, lança alguma sombra sobre essa história de tolerância. É uma pena, pois todos só tem a perder.
Ao comentar sobre a "ordem matemática", Bento XVI revela-se até mesmo desconhecedor de algumas teorias modernas. De fato, a mecânica quântica, com seu princípio da incerteza, e a ciência do caos, com sua sensibilidade às condições iniciais, mostraram que nosso conhecimento da natureza é necessariamente limitado. Há várias décadas sabemos que o universo não é o relógio matematicamente preciso imaginado pelos físicos newtonianos.
Ciência e religião podem, e devem, coexistir, mas não podem se misturar. O objetivo da ciência é procurar respostas para as perguntas existentes e, talvez mais importante, formular novas perguntas. O objetivo da religião é formular um conjunto de regras de convívio social, ancoradas em algum tipo de divindade que só se conhece e só se aceita por meio da fé. Qualquer religião, portanto, baseia-se em algo misterioso e incognoscível, e livrar-se dos mistérios é exatamente o objetivo da ciência. Se confrontadas, a ciência tentará mostrar que os dogmas religiosos não têm fundamento, e a religião tentará mostrar que o conhecimento científico é incompleto. De vez em quando, é claro, o religioso e o cientista habitam o mesmo corpo e, por alguma razão misteriosa, ainda assim a pessoa consegue manter a sanidade mental.
Há também outra diferença importante entre religião e ciência, que é o mecanismo de auto-correção. Embora osacionalmente os cientistas possam agir de maneira tão humana e dogmática quanto os religiosos, a ciência está sempre em busca de conhecimentos mais amplos e mais precisos sobre a natureza. A ciência nunca se contenta com a ignorância, nunca se contenta com menos conhecimento. E a existência de um mecanismo de correção e eliminação de teorias é a única maneira de se evitar que os cientistas caiam vítimas do auto-engano e passem a acreditar em "raios N" ou coisas parecidas. Nas palavras de Albert Einstein:
"O cientista teórico não deve ser invejado, pois a Natureza, ou, mais precisamente, o experimento, é um juiz inexorável e não muito cordial de seu trabalho. Ele nunca diz "Sim" a uma teoria. Nos casos mais favoráveis, ele diz "Talvez" e, na grande maioria dos casos, simplesmente "Não". Se um experimento concorda com uma teoria, isto significa, para esta, "Talvez", e se não concorda, "Não". Provavelmente, toda teoria algum dia experimentará o seu "Não" - a maioria das teorias, logo após sua concepção."