Imagine um personagem fictício que ficou 10 ou 20 anos em coma e que acordou, subitamente, nesse mundo do século XXI. Ele não veria espaçonaves particulares, bases em Marte e equipamentos de teletransporte, mas o espanto seria grande. Além de ver o cargo de POTUS ocupado por alguém apenas um pouco mais inteligente do que Chauncey Gardiner, último personagem de Peter Sellers, ele se depararia com Arnold Schwarzenegger governando a Califórnia, Gilberto Gil no Ministério da Cultura e Hugo Chávez presidindo uma "democracia militarizada", sem deixar de perceber, é claro, que o PT assumiu o poder e conseguiu se meter na maior confusão que esse país já viu.
O espanto seria certamente a principal emoção que nosso personagem experimentaria. Ele ficaria chocado ao saber do 11 de setembro, mas esta é apenas uma pequena faceta desse mundo novo, com a devida vênia aos parentes dos mortos em Nova Iorque, Afeganistão e Iraque. O mundo ficou pior, muito pior. Não há mais lideranças, não há mais estadistas. Em todos os lugares, desde os EUA até o Oriente Médio, com passagem pelo Brasil, os religiosos procuram influenciar decisões políticas. O Papa é retrógrado, influenciado pelo Opus Dei, organização que representa o que existe de mais atrasado na atrasada Igreja Católica. Intelectuais de direita, que não se sabe se fazem papel de assessores ou de bobos da corte, exercem sua influência nefasta, aconselhando o governo mais poderoso do planeta a despejar toneladas de fúria em países do terceiro mundo, alegando, sem provas, estarem contribuindo para a erradicação de armas de destruição em massa.
Por outro lado, nosso personagem fictício perceberia que, na verdade, não mudamos em nada. Continuamos sendo muito parecidos com os macacos carnívoros e territorialistas que caíram das árvores há cerca de quatro milhões de anos. E, embora os cientistas saibam que somos descendentes de um grupo de menos de 10 mil humanos do paleolítico, sobreviventes de uma explosão vulcânica que quase dizimou a raça humana, e embora tal fato esteja espalhado pelos textos sagrados de todas as religiões, continuamos nos tratando como se fôssemos filhos dos deuses, reencarnações dos deuses ou, no mínimo, eleitos dos deuses. Mas não somos mais do que macacos cabeçudos, o que inclui o Papa, o Dalai Lama, o Arcebispo de Canterbury e Richard Feynman (a propósito, o atual Arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, um professor, teólogo e poeta, é dono de pensamento muito mais avançado do que o da sua contraparte católica).
Mas não é só o mundo humano que nos espanta nesse início de século. Algumas vezes eu acho que Gaia realmente existe, e que está fazendo suas primeiras tentativas para mostrar que nós, humanos, somos irrelevantes.
Encerramos o ano de 2004 com Gaia dando uma lambidinha no litoral de alguns países do Oceano Índico. Do nosso ponto de vista, essa lambidinha pareceu um tsunami, e lá se foram mais de 270 mil vidas. Em 2005, Gaia tem dado mostras de que está um pouco cansada com emissões térmicas e gases de efeito estufa. Como resultado, a Grande Mãe produziu alguns deslocamentos gasosos, para estabilizar a atmosfera. Do nosso ponto de vista, os deslocamentos pareceram furacões, tão intensos que fizeram o Grande Irmão Branco tremer. Um viajante espacial talvez desse alguma atenção a esse furacões, e então prosseguiria para Júpiter, para presenciar tempestades de verdade.
Agora, quando a temporada de furacões parece encerrada, aparecem notícias de uma grande epidemia mundial de gripe aviária, também conhecida como "doença do frango constipado". Gaia deve estar se divertindo conosco, esses macacos cabeçudos. Talvez ela esteja somente com saudades dos dinossauros, que eram muito mais divertidos e econômicos.
Felizmente, Gaia não existe. Ao menos não nesse sentido de deusa mitológica. Gaia é um conjunto de modelos da geo-biosfera terrestre, que indica certo grau de organização da vida em escala planetária.
De acordo com os proponentes da teoria da "Gaia forte", como James Lovelock e Lynn Margulis, Gaia se comportaria como um único organismo vivo de dimensões planetárias, responsável pela criação e perpetuação de um ambiente favorável à vida. Lovelock propõe que vejamos a vida terrestre como um sistema cibernético, capaz de realimentação homeostática e operado de maneira inconsciente e automática pelos biotas. Hipótese radical.
Seja como licença poética, seja como modelo científico de vanguarda, é impossível negar que esse ano de 2005 está sendo assombrado por Gaia. Mesmo longe de furacões e tsunamis, as variações de temperatura foram percebidas em todos os lugares, até mesmo em Curitiba. Como serão os anos vindouros? Não sei, mas imagino que o cenário mais assustador possa ser esse: Lula e Bush se reelegem, a gripe aviária chega ao Brasil, um tsunami atinge o Rio de Janeiro, que submerge, um furacão tropical atinge Santa Catarina e, finalmente, neva de verdade em Curitiba! E, claro, para espanto final do nosso personagem fictício, Hugo Chávez detona um artefato nuclear de pequena potência, apenas como teste.