quarta-feira, julho 21, 2010

Criação Imperfeita, de Marcelo Gleiser

Em agosto de 2006 Marcelo Gleiser esteve em Curitiba, para uma palestra sobre seu livro então recém-lançado, "A Harmonia do Mundo", uma biografia romanceada de Johannes Kepler. Naquela ocasião ele lotou o Teatro Regina Vogue, no Shopping Estação, falou sobre alguns modelos cosmológicos, dos gregos antigos a Kepler, e respondeu algumas perguntas formuladas por escrito.

Durante a palestra dei-me conta de que todas essas teorias físicas que buscam harmonia, simetria, etc., baseiam-se em um princípio filosófico muito vago, e não em um princípio científico sólido. Assim, a pergunta que fiz foi: “qual princípio científico nos garante que exista harmonia no Universo?”.

Para minha surpresa, Gleiser leu e gostou da pergunta, a ponto de perguntar pelo autor dela. Ele então revelou que a questão da desordem e da desarmonia no Universo era muito importante e que seria tema de seu próximo livro. O que eu não sabia era que, por aquela época, Gleiser já havia abandonado o clube dos unificadores, que são os físicos que buscam pela teoria final, pela derradeira simetria, pela harmonia total do Universo. “Criação Imperfeita”, lançado no Brasil em março de 2010, relata parte desse processo de “desconversão” e apresenta uma visão do Universo que vai contra o sonho dos unificadores.

Um dos argumentos de Gleiser é que o sonho de uma teoria final, que explicaria todas as interações físicas (gravitacional, eletromagnética, fraca e forte) por meio de simetrias, nada mais é do que um reflexo da origem monoteísta e pitagórica da ciência ocidental. Não podendo entrar em contato com Deus à maneira direta pretendida pelos religiosos, os unificadores passaram a buscar explicações para a Criação em si. E, se Deus é perfeito e belo, a Criação também deve ser.

Será que a ideia de Gleiser procede? Talvez. Coincidentemente, em entrevista recente o físico Michio Kaku disse que o objetivo da teoria das supercordas, a mais famosa candidata a teoria final, é “ler o que se passava na mente de Deus no momento da Criação”. Einstein pensava de maneira semelhante, afirmando que tudo o que desejava era “desvendar os segredos do Velho”. Cabe a ressalva de que para os cosmólogos modernos, dentre os quais Einstein se incluía, Deus não é um ser antropormórfico, mas apenas uma metáfora pitagórica, usada para denotar o “código oculto do Universo”.

Pitágoras, o sábio grego que viveu entre 570 e 495 aC, afirmava que a natureza é construída a partir de princípios de simetria que traduzem a ordem fundamental – o tal código oculto – que existe por trás de todas as coisas. Gleiser reconhece essa origem pitagórica da ciência e argumenta que talvez o sonho de uma teoria final não passe de uma maneira altamente sofisticada de tentarmos forçar o Universo a funcionar da maneira como gostaríamos que funcionasse.

“Criação Imperfeita” é o mais autobiográfico dos livros de Gleiser. Ainda vamos ter de esperar por uma autobiografia completa, mas aqui ele usa fragmentos autobiográficos como pano de fundo para apresentar, em primeiro lugar, uma visão da origem do Universo e da física de partículas e, em segundo, uma visão da origem da vida. Gleiser argumenta que as assimetrias e imperfeições não são apenas importantes, mas essenciais para o Universo e para a vida. Sem elas não estaríamos aqui, pois, por exemplo, as mutações genéticas não seriam possíveis e a vida, caso existisse, consistiria apenas de seres unicelulares. Além disso, sem a violação de algumas simetrias físicas, nem mesmo a matéria teria se formado, pois matéria e antimatéria teriam se aniquilado mutuamente e perfeitamente, logo após o Big Bang. O Universo consistiria de espaço, tempo, energia e mais nada.

Gleiser usa os últimos quatro capítulos para discutir um assunto que deixará desolados muitos fãs de ficção científica: a raridade da vida e nossa decorrente solidão cósmica. Segundo ele, os acidentes e eventos necessários para que a vida inteligente tenha surgido são conjuntamente tão improváveis que não é seguro afirmar que isso tenha acontecido em mais do que um punhado de lugares na nossa galáxia. É essa a solução de Gleiser para o “paradoxo de Fermi”: possíveis civilizações inteligentes estão por demais afastadas entre si para que qualquer contato ou comunicação seja possível.

Diz a lenda que, por volta de 1950, o físico italiano Enrico Fermi (1901–1954) participava de uma discussão informal sobre a existência de civilizações extraterrestres, quando perguntou, quase à queima-roupa: “tudo bem, mas se eles existem, onde estão?”. Essa singela pergunta foi denominada “paradoxo de Fermi” por representar um conflito entre a probabilidade aparentemente elevada da existência de civilizações extraterrestres e a ausência de evidência delas. Em um Universo tão grande como o nosso, vida inteligente deveria ter surgido em algum outro lugar e, como o Universo é também muito antigo, alguém já deveria ter entrado em contato conosco. Como isso não aconteceu, surge um paradoxo.

Existem várias respostas para o paradoxo de Fermi. A mais radical é dizer que não há nenhuma outra civilização no Cosmos além da nossa. Somos um evento único e estamos absolutamente sós. Outra resposta é supor que civilizações inteligentes podem ter surgido em muitos lugares, mas todas acabaram por se destruir logo após terem aprendido a construir bombas atômicas.

Há também respostas aindas mais especulativas e e mais melancólicas, como aquela dada por David Bowie em sua canção Starman (1972), cujo refrão diz: “There’s a Starman waiting in the sky, he’d like to come and meet us, but he thinks he’d blow our minds. There’s a Starman waiting in the sky, he’s told us not to blow it, ‘cos he knows it’s all worthwhile”. Em uma tradução livre: “Há um homem estelar esperando nos céus, ele gostaria de vir nos conhecer, mas acha que explodiria nossas cabeças. Há um homem das estrelas esperando nos céus, ele nos disse para não destruirmos (a Terra), pois sabe que tudo vale a pena”. Em outras palavras, seres extraterrestres ultraevoluídos podem até estar por aí, mas preferem não entrar em contato conosco, por nos julgarem primitivos demais.

Gleiser adota a linha científica de que só podemos conhecer aquilo que podemos medir. E, até onde podemos medir, extraterrestres inteligentes não existem ou estão longe demais para que qualquer contato seja possível. Segundo ele, essa distância nem precisa ser algo como cem mil ou um milhão de anos-luz. Duzentos anos-luz já seriam suficientes para garantir nosso isolamento cósmico.

O livro se encerra com uma sugestão de que nossa solidão cósmica não deve ser motivo de angústia ou depressão. Pelo contrário, se somos um evento tão raro no Universo, devemos valorizar a vida acima de qualquer coisa e lutar para preservá-la, pois ela é o que existe de mais precioso.

Será que Gleiser curte Bowie? Eu apostaria que sim.

5 comentários:

  1. Muito bom esse artigo, que me levou a querer adquirir um exemplar de Criação Imperfeita. Eu, quando estou em discussão com pessoas que crêem em um deus criador de todos e que fala de perfeição e harmonia do universo, principalmente dizendo que fomos criados perfeitos, costumo rir e perguntar onde está a perfeição. Gosto de dizer que na imperfeição e até na desarmonia está à beleza.

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  2. Belo texto.
    O livro vai estar na minha longa fila de leituras.

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  3. Homero4:43 PM

    Parabéns, Alvaro, muito boa resenha. Eu até estava meio desanimado para ler este livro do Gleiser, mas mudei de idéia, vou comprar um com certeza.

    Um abraço.

    Homero

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  4. Anônimo8:24 AM

    Caro Álvaro,

    Tenho lido com crescente interêsse os seus artigos. Continuo achando, e agora com mais convicção, de que são mesmo "prá lá da conta", como já brinquei uma vez, lá no Ciencialist. Pois bem, este artigo, esta excelente resenha, é, precisamente, uma prova de que o 10 inicial continua o 10 inicial. Parabéns, amigo.
    Não vou comentar o artigo em sí, pois concordo inteiramente com as impressões nela registradas por você, além, claro, de concordar com as posturas do Gleiser, que coincidem com as minhas próprias. Mas que dá vontade de citar cada parágrafo e comentar sobre eles, de tão bons que são, isso lá dá!
    Desnecessário dizer que tanto o Gleiser Físico, como o divulgador científico de primeira linha que é, devem ser levados a sério.

    Abraços.
    Victor.

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  5. Em "Inummeracy", John Allen Paulos propõe uma interessante explicação probabilística para os extraterrestres nunca terem nos visitado (depois de outra explicação probabilística sugerindo sua existência).

    Abraço, Rodolfo.

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