quarta-feira, junho 20, 2007

O fim de “Roma”

O último episódio do segundo ano da mini-série “Roma” [1], co-produção da BBC (Reino Unido), da HBO (EUA) e da RAI (Itália), foi ao ar no Brasil no último domingo, pelo canal por assinatura HBO. É decepcionante saber que não haverá um terceiro ano da série, mas já foi bom ter havido um segundo ano, coisa que não fazia parte dos planos originais. E talvez seja melhor seguir a velha receita de parar no topo, com Augusto assumindo triunfalmente como primeiro imperador, do que arrastar a série por cinco ou dez anos e vê-la terminar com um suspiro e os bárbaros bradando aos portões.

Os criadores de “Roma” fizeram provavelmente a mais perfeita reconstituição do período histórico marcado pela transição entre a República e o Império Romano (o primeiro ano da série culmina com o assassinato de Julio César, enquanto o segundo ano culmina com a coroação de Otávio Augusto). Obviamente, algumas inevitáveis liberdades artísticas foram tomadas pelos produtores, mas nada tão radical e herético como a proposta, feita no filme “Gladiator” (2000), de que o imperador Commodus morreu no Coliseu em uma luta com um gladiador anônimo, fato do qual a história não faz menção.

No seriado, a Roma antiga é mostrada em detalhes, com especial atenção à vida dos cidadãos comuns, tradicionalmente excluídos dos relatos históricos. Dois dos principais personagens da história, por exemplo, Lucius Vorenus e Titus Pullo, são os soldados citados por Julio César em seus “Comentários sobre a guerra da Gália” (“Commentarri de Bello Gallico”). No relato de César, Vorenus e Pullo são centuriões da décima-primeira legião. No seriado, Vorenus é mostrado como o comandante de Pullo, ambos estranhamente pertencentes à décima-terceira legião (provavelmente a décima-primeira não pôde ser mobilizada a tempo para as filmagens).

"Roma” é um seriado graficamente violento e graficamente sexual do começo ao fim, a ponto de várias cenas terem sido excluídas das edições italiana e inglesa. Tais edições também removeram algumas linhas de linguagem mais forte, particularmente no caso da palavra “cunt”, que os britânicos acham ofensiva. Na edição brasileira, felizmente, todas as cenas foram preservadas (até onde eu sei) e a linguagem foi disfarçada com o uso de legendas mais suaves. Por exemplo, “cunt” foi traduzida por “vagina” e a expressão “fuck you”, usada como vírgula por Marco Antônio, foi frequentemente substituída pelo célebre e quase inofensivo “dane-se”.

A explicação dada pelo historiador Jonathan Stamp [2], que trabalhou como consultor para o seriado, quando perguntado pela razão das cenas de sexo, é bastante simples: Roma era assim mesmo. Os romanos não tinham o menor pudor quanto ao sexo e não o associavam a questões de culpa ou vergonha. “Eles faziam e adoravam”, diz Stamp [3]. Havia apenas um pequeno tabu: uma vez em Roma, esqueça o sexo oral, pelo menos na versão não paga. Aparentemente, os romanos consideravam a boca como algo sagrado e não a usavam para algo além de falar, comer e beber (e também para vomitar, prática comum durante os festins, quando o espaço no estômago já havia acabado, mas a comida ainda não).

Quanto à violência, a visão dos romanos antigos também era muito diferente da nossa. Por exemplo, se um escravo fosse intimado a prestar depoimento a favor de seu senhor, o testemunho não seria aceito a não ser que o escravo fosse previamente torturado. A razão disso residia no pragmatismo romano: seria natural esperar que qualquer escravo estivesse disposto a mentir a favor de seu senhor. Logo, era melhor torturá-lo antes de mais nada e eliminar qualquer dúvida. Contudo, a violência da tortura seria inadmissível contra um patrício, pois isso significaria remover-lhe a nobreza e a dignidade. E, de fato, em uma das cenas mais fortes do segundo ano, um verdugo se recusa a prosseguir com a tortura da patrícia Servilia, mesmo a mando de sua senhora, Átia. Jack Bauer não teria tais pudores, mas a moralidade romana sobre a violência dizia respeito à classe social da pessoa atingida pelo ato violento, não ao ato em si. De forma semelhamte, sacrificar um animal em honra aos deuses era permitido e até mesmo obrigatório, mas matar um animal sem motivo algum era visto como crueldade.

Um detalhe que seriado algum poderia reproduzir era o cheiro de Roma. Dizem que, ao aproximar-se de Roma, a cidade poderia ser cheirada muito antes de ser vista. Roma foi durante muito tempo a maior e mais rica cidade do mundo antigo, tinha aquedutos e esgotos, mas a tarefa de remover eficientemente os dejetos de um ou dois milhões de pessoas, em uma época na qual não existiam motores elétricos, era impensável! Considerando-se ainda o fato de que não existia tratamento de esgoto ou hábitos de higiene refinados, a conclusão não poderia ser outra: Roma fedia. Mas tal como a violência e os impostos, o fedor era encarado como mais um inevitável fato da vida. Depois de algum tempo, o cheiro não era nem mesmo percebido.

Apesar da grandeza da cidade, da complexidade da máquina de guerra e da extensão do império, a maioria dos cidadãos romanos vivia em um estado de pobreza extrema. O seriado mostra isso em várias situações. Por exemplo, por causa do embargo do trigo levantado por Marco Antônio, então governando o Egito em conjunto com Cleópatra, Roma tem seus estoques de grãos reduzidos a ponto de faltar pão para os plebeus. Os nobres, naturalmente, continuam comendo de tudo que sempre comeram, mas o povo é entregue à fome e à morte. Uma solução temporária, encontrada por Agripa e Otávio no seriado, envolveu o envio de três legiões para a África, onde os soldados puderam se alimentar à custa de Lépido, o mais fraco dos triúnviros, liberando-se um mês dos estoques romanos para alimentar o povo. Não sei se esse fato ocorreu, mas ele pode ser visto como um prelúdio daquele espírito de decadência e acomodação, tristemente eternizado pelo poeta Juvenal, que teve início depois de Augusto e culminou com a queda do Império: “...o povo, que certa vez teve em suas mãos comandos militares, altos cargos civis, legiões, tudo, agora se contém e espera ansiosamente por apenas duas coisas: pão e circo” [4].

Mesmo descontando-se o problema da fome, e apesar da glória e da riqueza romanas, a vida na Roma antiga era curta e arriscada para muitos patrícios e para a maioria esmagadora dos plebeus. Não importava quão rico você fosse, se você viesse a sofrer de uma mera apendicite aguda, o resultado quase certo seria a morte. Um dente infeccionado deveria ser extraído sem anestesia, fosse você nobre ou plebeu, e mesmo o mais poderoso dos imperadores não poderia obter informações mais rapidamente do que um cavalo poderia se mover. Não havia plano de aposentadoria, não havia plano de saúde, não havia seguro de vida, não havia emprego fixo, não havia universidades, não havia empresas e o crescimento econômico era medíocre. Tudo o que qualquer romano poderia fazer para se proteger das incertezas da vida era oferecer sacrifícios aos deuses. Os deuses romanos, ao contrário das versões mais benevolentes criadas pelas religiões posteriores, estavam lá para pegá-lo e deviam ser aplacados por meio de rituais. É estranho que, apesar da fantástica evolução científica e tecnológica do mundo moderno, muitas pessoas ainda pareçam pensar e agir dessa forma.

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[1] http://www.hbo.com/rome
[2] http://www.hbo.com/rome/cast/crew/jonathan_stamp.html
[3] http://www.hbo.com/rome/behind/rome_revealed/rome.html
[4] Juvenal. Livro IV, Sátira X, sec. I, II dC. Parcialmente disponível: http://en.wikipedia.org/wiki/Satires_of_Juvenal

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