No último 1 de junho, o professor Eduardo Lütz esteve na UTFPR, em companhia de sua esposa Maria da Graça, a convite do sindicato dos professores, para proferir a palestra “Ciência, Fé, Evolucionismo e Criacionismo”.
Eduardo Lütz [1] é bacharel, mestre e doutor em física pela UFRGS, embora insista em deixar claro que ainda não defendeu sua tese de doutorado e, portanto, não pode envergar oficialmente este último título. Em física, as áreas de interesse dele são relatividade geral, teoria quântica dos campos, cosmologia e física nuclear. Em matemática, ele se interessa por geometria diferencial, geometrias riemannianas, álgebras e fundamentos. Atualmente, trabalha para a Hewlett-Packard em desenvolvimento de software.
Em uma palestra que durou pouco mais de uma hora, complementada por cerca de meia hora de palestra de Maria da Graça sobre “O Mundo do RNA e o Sonho do Biólogo Molecular”, Eduardo Lütz falou basicamente sobre filosofia da ciência, método cientifico, mitos sobre a matemática e teceu algumas considerações sobre o debate entre criacionismo e evolucionismo. Seguem-se alguns comentários sobre o evento.
Teorias Científicas e Modelos Matemáticos
A tese de Lütz é a de que uma teoria, para ser científica, deve ser dotada de uma estrutura algébrica. Em outras palavras, para ele uma teoria científica deve ser axiomatizável, assunto ligado aos trabalhos do matemático alemão David Hilbert (1862 – 1943).
Em 1900, Hilbert proferiu uma palestra histórica, na qual descreveu 23 problemas dos quais, segundo ele, os matemáticos do século XX iriam se ocupar. O sexto problema de Hilbert, em particular, é justamente o problema da axiomatização das teorias das ciências empíricas: “tratar do mesmo modo, por meio de axiomas, as ciências físicas nas quais a matemática tem importante papel: em primeiro lugar estão a teoria das probabilidades e a mecânica”.
As considerações de Hilbert motivaram o tratamento rigoroso das teorias físicas, do ponto de vista axiomático, a exemplo do que já se fazia e se faz corriqueiramente em matemática. Segundo SANT’ANNA, que escreveu um livro interessante e acessível sobre axiomas, “hoje já temos sistemas axiomáticos para as teorias da física, da biologia, da economia a até mesmo para as geociências” [2].
O tratamento matemático da biologia, contudo, traz problemas inerentes ao próprio objeto de estudo: a complexidade dos seres vivos. A física, a mais bem sucedida das ciências empíricas, não adquiriu esse status apenas por causa da genialidade de seus criadores, mas por estudar sistemas simples em comparação aos sistemas vivos. Exigir um modelo matemático detalhado da teoria da evolução significaria exigir o conhecimento do genoma de todas as espécies que vivem e já viveram, além de se saber como tais espécies se relacionam e se relacionavam, etc. Perto de tal tarefa, até mesmo a versão mais refinada da teoria das supercordas se torna trivial.
Todavia, pode-se obter resultados matemáticos interessantes quando se reduz o nível de complexidade de um modelo biológico. Um exemplo é representado pelas equações de Lotka-Volterra, também conhecidas como “modelo predador-presa”, que são duas equações diferenciais não lineares usadas para se descrever a dinâmica populacional de um sistema onde duas espécies (um predador e uma presa) interagem [3]. Essas equações têm sido estudadas em uma variedade de situações desde os anos 20, quando foram propostas independentemente por Alfred Lotka (1880 – 1949) e Vito Volterra (1860 – 1940). O modelo resultante pode ser estendido para incluir mutações, número de predadores e presas superior a um e pode exibir comportamento caótico, dependendo de alguns parâmetros.
Outro exemplo de “matematização” da teoria da evolução envolve a teoria dos jogos. Esse campo de estudo teve origem em 1973, com a publicação do artigo “The logic of animal conflict”, de John Maynard Smith (1920 – 2004) e George R. Price (1922 – 1975). Em 1982, Smith publicou o livro “Evolution and the theory of games”, onde o conceito de Estratégia Evolucionariamente Estável (ESS – Evolutionarily Stable Strategy) foi formalizado. A ESS é um refinamento do equilíbrio de Nash, onde se supõe que a única força em jogo é a seleção natural (no equilíbrio de Nash o comportamento racional pode entrar em ação).
Sendo assim, esforços para tratar matematicamente a teoria da evolução existem há muito tempo e não é totalmente correto dizer que tal teoria não tem estrutura algébrica. Talvez ela não tenha estrutura algébrica “formal”, mas exigir isso de uma teoria biológica significaria supor a biologia redutível à física e, finalmente, à matemática. Só que nenhuma área da ciência é científica da maneira como a física é científica!
Apesar disso, uma teoria que tenha estrutura algébrica formal não é necessariamente uma teoria correta. Exemplo disso ocorre com as teorias da gravitação. Em 1915, Albert Einstein criou a primeira teoria geométrica da gravitação, que considera o campo gravitacional como uma curvatura do espaço-tempo causada pela presença de matéria. Essa teoria, denominada relatividade geral, permite o cálculo correto da deflexão da luz por corpos pesados como o Sol, dá uma estimativa mais precisa para a precessão da órbita do planeta Mercúrio e prevê outros fenômenos gravitacionais de interesse aos especialistas, como o desvio gravitacional para o vermelho e o atraso do tempo em campos gravitacionais fortes, além de ser compatível com a gravitação newtoniana no limite de campos fracos. Tais assuntos já foram objeto de vários artigos e livros de divulgação científica, mas, fora do círculo dos especialistas, é pouco conhecido que existem dezenas de teorias gravitacionais alternativas à relatividade geral. Nada deixa esse fato mais claro do que o formalismo conhecido como PPN (Parametrized post-Newtonian), usado para comparar teorias clássicas da gravitação (ou seja, teorias “não quânticas”, como é o caso da relatividade geral). Existem mais de 20 teorias da gravitação que tiveram seus parâmetros PPN calculados (o número já foi maior, mas algumas teorias são descartadas de tempos em tempos). Todas são teorias matemáticas sérias e a própria existência dos parâmetros PPN mostra um elevado grau de formalismo matemático. Mesmo assim, apenas a relatividade geral passa em todos os testes experimentais [4].
Conclui-se, portanto, que o requisito de um modelo matemático pode ser visto até mesmo como necessário para que uma teoria seja científica, mas não se trata de um requisito suficiente.
Outro ponto interessante sobre modelos matemáticos é que ninguém sabe ao certo por que a matemática se aplica mesmo às teorias físicas mais elementares. A esse respeito, é difícil resistir à tentação de afirmar que a matemática é algo mais do que uma criação humana. O físico Roger Penrose, por exemplo, afirma categoricamente que “A noção de verdade matemática vai além do conceito de formalismo. Há alguma coisa de absoluto e “divino” na verdade matemática” [5]. Essa é uma visão platônica da matemática, termo usado porque o filósofo Platão acreditava que os conceitos matemáticos tinham uma existência etérea e atemporal, como se criados por Deus. Há, contudo, outras visões da matemática. Para o intuicionismo, surgido com os trabalhos do matemático holandês Luitzen Egbertus Jan Brouwer (1881– 1965), um conceito matemático não têm existência em si mesmo e deve ser pensado em termos das regras que determinam sua existência e comportamento. Essa visão pode ser rapidamente aceita por alguém que usa a matemática como instrumento, como um engenheiro ou um físico, mas tem causado muita discussão entre os matemáticos desde os tempos de Aristóteles, discípulo de Platão e a quem a visão intuicionista remonta. O intuicionismo, assim como outras escolas construtivistas, afirma que a matemática é uma invenção da mente humana, em oposição à visão platônica.
Se a matemática é uma invenção humana, podemos muito bem aventar a hipótese de que a matemática se aplica tão bem à física simplesmente porque os conceitos matemáticos foram inventados para que se aplicassem muito bem à física. O estranho é que ninguém poderia supor, como nos lembra o físico Eugene Wigner [6] (1902 – 1995), que os números complexos, inventados pelos matemáticos em bases puramente teóricas, fossem encontrar aplicação na mecânica quântica (e, em um nível bem menos essencial, na teoria de circuitos de corrente alternada e outras áreas da física). Há vários de tais exemplos, que nos dão a impressão de que a matemática foi criada por Deus, e que os números complexos habitavam o mundo das idéias desde o início dos tempos, esperando calmamente pela hora de entrar em cena. Entretanto, para cada invenção matemática que encontra aplicação em física, outras tantas não alcançam tal destino e passam a eternidade nas páginas dos livros de matemática pura.
Cientistas criacionistas
Em sua palestra, Eduardo Lütz citou quatro cientistas criacionistas, segundo ele: Newton, Maxwell, Hamilton e Einstein. A lista é na verdade muito maior, incluindo cientistas como Kepler, Pascal, Leibnitz, Davy, Faraday, Ramsay e outros. Contudo, é difícil incluir Einstein nessa lista. Em suas “Notas Autobiográficas”, esse cientista escreveu: “A leitura de livros científicos populares convenceu-me de que a maioria das histórias da Bíblia não podia ser real. A conseqüência foi uma orgia positivamente fanática de livre-pensamento, combinada com a impressão de que a juventude é decididamente enganada pelo Estado, com mentiras; foi uma descoberta esmagadora” [7].
Mesmo assim, especulações sobre a posição religiosa de Einstein sempre existiram. Ele mesmo parece ter aumentado a confusão, ao escrever: “Não consigo conceber um Deus pessoal que influa diretamente sobre as ações dos indivíduos, ou que julgue, diretamente, criaturas por Ele criadas. Não posso fazer isso, apesar do fato de que a causalidade mecanicista foi, até certo ponto, posta em dúvida pela ciência moderna” [8]. A julgar por essas palavras, não fica claro se ele não acreditava em um criador, ou se apenas acreditava em um criador que não julgava suas criaturas. Apesar disso, o consenso é que Einstein definitivamente não acreditava em um Deus judaico-cristão. Em vez disso, ele era muito mais um panteísta que acreditava em um deus presente na natureza e representado nela, mas não em um deus antropomórfico. De fato, em mais de uma vez ele se revelou favorável ao “Deus de Spinoza”, filósofo do século XVII, excomungado da comunidade judaica por suas crenças não convencionais.
Apesar de tudo isso, e como já insisti em outras ocasiões nesse blog, a crença de Einstein ou de quem quer que seja não é importante na tarefa de determinarmos a validade de uma afirmação. Ao lado de cientistas criacionistas, podemos listar um número enorme de cientistas ateus, agnósticos, não religiosos ou simplesmente não criacionistas, tais como Richard Feynman, Carl Sagan, Stephen Hawking, Newton da Costa, Marcelo Gleiser, Richard Dawkins e vários outros. A conclusão, como já sabemos, é que o número de adeptos não serve para validar crenças, afirmações ou teorias científicas.
No debate que se seguiu à palestra, Eduardo Lütz argumentou que entendia por “criacionista” apenas uma pessoa que acredita em Deus ou em uma força superior. Tal definição é claramente insuficiente, pois inclui na categoria de criacionistas todas aquelas pessoas que acreditam em um Deus não criador, como é o caso dos panteístas. Afinal, quem garante que Deus, caso exista, não surgiu juntamente com o universo?
Hamilton, Princípio Variacional e Criacionismo
Outro ponto realçado no debate diz respeito às contribuições dos criacionistas à ciência. Lütz citou o princípio variacional de Hamilton como exemplo.
William Rowan Hamilton (1805 – 1865) foi um matemático, físico e astrônomo irlandês que fez grandes contribuições à matemática à física. As equações de Hamilton, por exemplo, são de grande importância em física e o nome de Hamilton estará para sempre ligado à mecânica clássica e à mecânica quântica. Em 1834 e 1835, Hamilton publicou seus resultados da aplicação de um princípio variacional à equação L = T – V, onde T é a energia cinética e V é a energia potencial de um sistema, possibilitando a obtenção das equações do movimento. A função L é modernamente denominada “lagrangeano”, em homenagem ao matemático italiano Joseph-Louis Lagrange (1736 – 1813), criador do cálculo variacional.
Um princípio variacional serve para identificar quando uma função atinge um ponto extremo, que pode ser um máximo, um mínimo ou um ponto de sela. O princípio variacional de Hamilton, em particular, diz que o movimento de um sistema, de um instante t1 a um instante t2, é tal que a integral de linha de L entre esses instantes é estacionária para o caminho que corresponde ao movimento real”. Por “estacionária” entende-se que o valor da integral não varia para caminhos próximos ao caminho real. Um “sistema mecânico” pode ser uma partícula material, um conjunto de partículas ou corpos mais complexos, conhecidos como “corpos rígidos”.
Assim, dentre todas as possíveis trajetórias que o sistema mecânico pode seguir, a trajetória real corresponde precisamente ao caminho para o qual a integral de L.dt é estacionária. Todas as equações do movimento (i.e., as leis de Newton) decorrem desse princípio simples, que pode ser escrito como dI = 0, onde I é a integral de L.dt, frequentemente denominada “ação” (o símbolo usado pelo professor Lütz para a ação foi, se não me engano, l, mas uso aqui a simbologia clássica de Goldstein [9]). Qualquer estudante de mecânica já ficou fascinado, no mínimo intrigado, por esse aspecto de elegante simplicidade do princípio de Hamilton, também conhecido como princípio da ação mínima. É realmente fascinante que toda a mecânica clássica possa surgir de uma equação tão simples. Contudo, dizer que o princípio de Hamilton é uma “descoberta criacionista” é um pouco exagerado.
Em primeiro lugar, é um tanto arriscado dizer que o princípio de Hamilton é um sinal de comportamento ótimo do universo. Falamos em “otimização” em várias situações na engenharia. Por exemplo, é impossível construir uma máquina elétrica (ou qualquer outra máquina) sem que esta apresente perdas, mas podemos minimizar tais perdas, levando em conta alguns detalhes do funcionamento e o custo final desejado. Por um lado, poderíamos super-dimensionar uma máquina, de maneira que as perdas fossem desprezíveis frente à potencia nominal. Entretanto, essa máquina seria tão cara que ninguém a compraria. De outro lado, poderíamos projetar uma máquina de maneira mais displicente, que custaria muito menos do que as versões disponíveis no mercado. Contudo, todo o dinheiro economizado na aquisição seria gasto posteriormente em energia elétrica, por causa das perdas elevadas. Assim, ao menos nesse caso, “a virtude está no meio” e é possível construir uma máquina que, do ponto de vista da tecnologia atual, não seja nem muito cara e nem tenha perdas excessivas: uma máquina ótima.
O mesmo não ocorre no caso do universo, pois não podemos fazer experiências com universos diferentes. Assim, não sabemos se o princípio de Hamilton é um princípio de otimização empregado pelo Criador ou se é apenas uma característica do universo. No momento não há resposta para essa questão, pois a ciência atual apenas descreve o funcionamento do universo, não o explica. A resposta deve ser buscada na filosofia ou na religião e, nessas áreas, não há como ter certeza das respostas.
A segunda razão pela qual não me parece adequado denominar o princípio de Hamilton de “descoberta criacionista” é que o criacionismo é uma invenção bastante recente. Embora os cientistas e filósofos da época de Hamilton fossem todos religiosos, o criacionismo somente surgiu quando as observações empíricas das ciências naturais começaram a entrar em conflito com a tradição judaico-cristã. O próprio termo “criacionismo” não era comum antes do final do século XIX. Alem disso, não me parece adequado argumentar que a descoberta (ou “invenção”?) do princípio variacional esteja necessariamente ligada à religiosidade de Hamilton. Talvez fosse igualmente adequado denominá-la “descoberta irlandesa”.
Teoria da Evolução e Evolucionismo
Durante toda a palestra e durante a discussão que se seguiu, a palavra “evolucionismo” foi usada extensivamente como sinônimo de uma teoria que explica o surgimento da vida na Terra. Há dois erros aqui. Primeiro, a teoria da evolução não é um “ismo”. Não se trata de uma ideologia à qual se adere por meio da fé ou de algum tipo de conversão. Até mesmos alguns biólogos usam tal termo, talvez por economia de linguagem, mas ele não é adequado. Não existe “evolucionismo” da mesma forma que não existe “newtonismo”, “einsteinismo” ou “relativismo”. O segundo erro é que a teoria da evolução não tem nada a dizer sobre a origem da vida na Terra.
Embora esse segundo erro seja comum, a evolução biológica é apenas a mudança dos traços hereditários de uma população de uma geração para outra, produzida por mutações genéticas e orientada pela seleção natural. A evolução biológica é um fato. Há tantas evidências a esse respeito que negá-lo seria o mesmo que negar que as maçãs caem quando soltas a um metro do chão. A evolução histórica dos seres vivos, que decorre da evolução biológica, significa que todos os seres vivos sobre a Terra descendem de um ancestral comum. Embora tal afirmação ofenda a religião de muitas pessoas, que por alguma razão ficam indignadas ao saber que homens, chimpanzés e gorilas descendem de um mesmo ancestral, também há tantas evidências a esse respeito que a evolução histórica é considerada um fato. Não há nem mesmo explicação científica alternativa, da mesma forma que não há explicação alternativa para o fato de uma maçã cair (é a gravidade, e ponto; se iremos usar a mecânica newtoniana, a relatividade geral ou outra teoria para fazer os cálculos, é outra história!).
Entretanto, dizer algo sobre a evolução biológica (que se manifesta no decorrer de poucas gerações de moscas da fruta, por exemplo), ou sobre a evolução histórica (que se manifesta ao longo de milhões de anos) não significa dizer como a vida surgiu na Terra.
Eu citei tal diferença durante a seção de perguntas após a palestra. O professor Lütz então concordou que o termo “evolucionismo” havia sido mal empregado, mas, pelas razões comentadas anteriormente, discordou que a evolução fosse realmente uma teoria científica: a ausência de uma estrutura algébrica formal.
Geração Espontânea, Abiogênese e a Navalha de Occam
Da mesma forma que ocorreu com o termo “evolucionismo”, o termo “geração espontânea” foi empregado durante a palestra com o significado de “surgimento da vida a partir de matéria inanimada”. É fácil atacar a geração espontânea, pois qualquer aluno do ensino médio sabe que tal teoria foi desmentida por Louis Pasteur (1822 – 1895) por meio de uma série de experimentos realizados em 1862 (três anos depois da publicação do livro “A origem das espécies por meio da seleção natural”, de Charles Darwin - note também que o próprio título do livro de Darwin menciona “origem das espécies”, não “origem da vida”). Contudo, a hipótese da origem não biológica da vida não significa que tal origem tenha sido “espontânea”. É mais correto falar em “abiogênese” (do grego a-bio-genesis, ou “origem não biológica”).
No momento, não podemos dizer com certeza que a vida surgiu na Terra há pouco menos de 4 bilhões de anos, no meio de uma sopa ou barro pré-biótico, como resultado de reações químicas entre macromoléculas orgânicas. Trata-se apenas da hipótese mais provável, mas ainda não há provas suficientes. O que podemos dizer com certeza é que, se tal processo ocorreu, ele não teve nada de espontâneo. Ele ocorreu por causa da afinidade química entre certas moléculas, decorrente das leis físicas que governam o comportamento microscópico da matéria, e também da presença de fontes de energia na Terra primitiva (descargas atmosféricas e o calor do Sol), bem como de uma versão primordial da seleção natural: as moléculas orgânicas que não sucumbiram à degeneração espontânea após a formação tiveram mais tempo para se reproduzir e aumentar a população.
Outra hipótese para a origem da vida na Terra é a panspermia: a hipótese de que a vida foi trazida de outros lugares no universo, por meio de asteróides que aqui caíram ou sob a forma de esporos interestelares. O argumento mais óbvio contra a panspermia é o de que tal hipótese apenas transforma a tarefa de se explicar a origem da vida na Terra na tarefa muito mais complexa de se explicar a origem da vida em outro lugar do universo.
Finalmente, temos a hipótese do criacionismo: a vida na Terra surgiu por obra de um criador ou planejador inteligente. Na versão mais forte da hipótese criacionista, Deus cria e mantém toda a vida na Terra, sem se importar com seleção natural, mutações ou extinção de espécies. Na versão mais fraca, Deus apenas cria as primeiras bactérias e deixa o resto por conta das leis da física (criadas também por ele, presumivelmente). Podemos imaginar também uma “versão fraquíssima”, onde Deus interfere somente o bastante para assegurar que as primeiras moléculas de RNA, formadas por abiogênese, sobrevivam o tempo suficiente para dar origem ao mundo de DNA e proteínas atual. Nenhuma dessas três versões, contudo, é muito bem aceita pela comunidade científica, por duas singelas razões: (a) é difícil imaginar hipótese mais simples do que a da abiogênese; (b) a hipótese da existência de um ser dotado de super-poderes é complicada demais.
Em ciência, quando tudo o mais está confuso, é costume usar-se um princípio de seleção de hipóteses conhecido como “navalha de Occam”. Não se trata de um princípio científico, mas sim filosófico e, embora seja comum no meio científico, foi criado pelo monge franciscano Guilherme de Occam (1288 – 1348) com a finalidade de explicar a existência de Deus. A navalha de Occam nos diz que, quando duas ou mais teorias concorrem, devemos escolher aquela que considera o menor número de hipóteses. Por tal razão, esse princípio é frequentemente conhecido como “princípio da economia de hipóteses”.
Como ocorre com toda navalha, a de Occam deve ser usada com bastante cuidado, pois, tratando-se de um princípio estético, boa parte do critério depende dos preconceitos do selecionador e de conceitos subjetivos. No caso do problema da origem da vida, a navalha de Occam nos diz que a hipótese da abiogênese é mais simples do que a hipótese da origem divina, pois contém menos pressupostos básicos e pode ser comprovada empiricamente, ao menos em princípio. Logo, devemos exaurir a hipótese da abiogênese antes de recorrermos ao salto de fé necessário à hipótese divina. Tal conclusão certamente teria surpreendido o próprio Occam, mas não é de hoje que sabemos que as criaturas frequentemente se voltam contra seus criadores.
Considerações finais sobre a palestra e o debate
Não tenho certeza se muita gente entendeu a palestra do professor Lütz em toda sua extensão. Durante quase toda a exposição ele falou sobre física e matemática, não sobre criação e evolução. Na tela apareceram expressões matemáticas como o princípio de Hamilton e a equação de Dirac, as quais estão muito além do domínio dos alunos normais dos cursos de Tecnologia e Engenharia que compunham a platéia. Além disso, somente com muita dificuldade tais conceitos podem ser relacionados aos problemas da origem da vida ou da evolução das espécies.
A exposição da professora Maria da Graça, interessante por si mesma, serviu apenas como pretexto para o argumento da improbabilidade do surgimento abiótico da vida (infelizmente referido como “geração espontânea”).
O debate que se seguiu às palestras deixou claro que o público que lotava o mini-auditório da UTFPR estava mais interessado nos aspectos religiosos do tema. É de certa forma decepcionante ver uma exposição razoavelmente científica ser seguida de referências a Hebreus, Salmos e, obviamente, Gênesis. Apesar disso, o professor Lütz manteve os pés no chão em relação a muitos assuntos. Ele não cometeu os erros tradicionais dos criacionistas sobre as leis da termodinâmica e afirmou que a hipótese da “Terra jovem” é uma bobagem sem fundamento científico. Ele também entende que a evolução por seleção natural realmente ocorre e tem argumentos apenas contra a hipótese da abiogênese. Ainda assim, não considero que a insistência dele em descaracterizar a teoria da evolução como teoria científica, com base na ausência de estrutura algébrica da mesma, seja realmente relevante. Também me preocupa o já mencionado descuido terminológico, que coloca teoria da evolução, abiogênese e geração espontânea no mesmo pacote. Talvez fosse interessante alguém organizar uma palestra com o objetivo de esclarecer tais conceitos.
[1] Eduardo Lütz Page. Disponível em: <http://edlutz.totalh.com/>.
[2] SANT’ANNA, A. O que é um axioma. Manole, 2003, p. 10.
[3] WEISSTEIN, E. W. "Lotka-Volterra Equations." From MathWorld--A Wolfram Web Resource. Disponível em: <http://mathworld.wolfram.com/Lotka-VolterraEquations.html>.
[4] WILL, C.M. The confrontation between general relativity and experiment. Living Rev. Relativity, 2006, v.6. Disponível em: <http://relativity.livingreviews.org/Articles/lrr-2006-3>. [5] PENROSE, R. A mente nova do rei. Ed. Campus, 1991, p. 124.
[6] WIGNER, E. The unreasonable effectiveness of mathematics in the natural sciences. 1960. Disponível em: < http://www.dartmouth.edu/~matc/MathDrama/reading/Wigner.html>
[7] EINSTEIN, A. Notas autobiográficas. Nova Fronteira, 3ed, 1982, p.14.
[8] DUKAS, H., HOFFMANN, B. (org). Albert Einstein, o lado humano. Ed. Universidade de Brasília, 1979, p. 53.
[9] GOLDSTEIN, H. Classical Mechanics. Addison-Wesley, 2ed, 1981, p. 36.