Não há dúvidas que a Bolívia é o país mais miserável de um dos continentes mais miseráveis do mundo. Não há dúvidas que o país foi espoliado durante séculos a ponto de, mesmo sendo dono de enormes reservas de gás natural e petróleo, não ter conseguido atingir um nível de desenvolvimento superior ao do Paraguai, outro país espoliado e massacrado, inclusive pelos brasileiros. Contudo, querer nacionalizar reservas de hidrocarbonetos e expropriar instalações de empresas estrangeiras com base no argumento da espoliação é um grande exagero.
É claro que ninguém espera que um líder camponês como Morales, que cresceu plantando coca, entenda de lógica. Mesmo que a educação formal de Morales seja enormemente superior à do presidente do maior país da América do Sul, não se pode supor que ele seja capaz de grandes proezas intelectuais, ou mesmo de pequenas. Ele está apenas se vingando de uma exploração iniciada com os espanhóis, apelando fartamente para uma falácia lógica conhecida como "apelo à emoção".
O apelo à emoção funciona tanto melhor quanto mais baixo for o nível educacional dos ouvintes. O amor à nação, por exemplo, pode ser uma emoção nobre, mas usá-lo para manipular a opinião pública é intelectualmente censurável, pois se evita pensar na trabalhosa pesquisa e apresentação dos fatos, cujo entendimento depende, ainda, dos interlocutores. Esse é precisamente o caso de Morales, que subiu ao poder empurrado por camponeses revoltosos.
O apelo à emoção constitui também em uma solução de curto prazo e deveria ser evitado por verdadeiros estadistas. Morales ganhou notoriedade internacional com a nacionalização dos hidrocarbonetos, mas, depois que a tempestade passar, a Bolívia continuará tão miserável quanto sempre foi. O gás é boliviano, por certo, mas se o preço for abusivo, as indústrias brasileiras comutarão suas as fontes energéticas ou simplesmente fecharão, e a Bolívia ficará com seu precioso gás, mas sem dinheiro.
Outro detalhe é que, por mais emocional, grandiloqüente e teatral que seja o posicionamento de Morales, nada que se faça poderá reverter a espoliação sofrida pela Bolívia. O passado já passou, os custos estão afundados e a Bolívia deveria olhar para frente, como todos nós.
Sem falar que, espoliados, todos fomos e todos somos. Onde estão as toneladas de ouro, prata e pau-brasil existentes em território brasileiro antes da chegada de Cabral? Onde estão as toneladas de minério que exportamos anualmente, a preços de commodities, sendo forçados a comprar tecnologia caríssima? Onde está nosso direito de exploração da Amazônia, no momento saqueada por empresas internacionais? Vamos fazer como a Bolívia ou vamos tentar resolver a situação de maneira racional?
Infelizmente, nessa crise da nacionalização dos hidrocarbonetos, choveram falácias também do lado brasileiro. Depois daquela reunião em Puerto Iguazu, de onde Lula saiu cabisbaixo, humilhado e tendo que concordar com as razões de Morales, a imprensa não tardou a comentar que a atitude do governo brasileiro foi tépida demais. O Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, comentou então que a o Brasil não usaria a "política do porrete", perdendo a chance de perceber que existem infinitas possibilidades entre a humilhação internacional e a invasão militar da Bolívia.
Míriam Leitão deve ter sido a primeira jornalista a perceber que o ministro caiu na famosa falácia da "falsa dicotomia", que ocorre sempre que as possibilidades de atuação são reduzidas a apenas duas ("ou você está comigo, ou está contra mim", por exemplo). O Brasil certamente não precisaria "baixar o porrete" na Bolívia, usando a terminologia elegante do ministro, mas também não precisava ter concordado com Morales, sem divulgar sequer uma nota afirmando a insatisfação do governo brasileiro em ter sido surpreendido pela invasão das instalações da Petrobrás na Bolívia. Afinal, o gás pode ser boliviano, mas a Petrobrás é nossa (pelo menos até que seja privatizada).
Lula, talvez se lembrando de seu tempo de sindicalista, quando paralisava empresas e causava prejuízos gigantescos, concordou que a Bolívia também tem direito de chutar esses imperialistas, esquecendo-se que o investimento da Petrobrás na Bolívia é do povo brasileiro, não do governo FHC. É claro que exigir lógica de Lula, que freqüentemente tem que recorrer a metáforas futebolísticas para ilustrar seus pontos de vista, já seria demais. O problema é que, enquanto Lula se aferra a sua ideologia ultrapassada, Morales percorre o mundo, dizendo que a Petrobrás é contrabandista, que atua ilegalmente na Bolívia e que o Brasil comprou o Acre, em 1900, dando um cavalo em troca.
A esperança é que Lula, que costuma comparar as relações internacionais a um jogo de truco, tenha alguma carta escondida na manga.