Chuva, trânsito ruim e contingências múltiplas
O trânsito em Curitiba está cada vez pior, como pode atestar facilmente qualquer um que tenha caído por esses lados nos últimos meses. Mas, com uma ajudinha do tempo e do governo, em qualquer de suas esferas, não há nada tão ruim que não possa ser piorado.
Na última segunda-feira, 28 de abril, o tempo ofereceu sua módica contribuição ao despejar, em um único dia, 70% da precipitação mensal esperada. Desse percentual, pelo menos um quarto deve ter caído entre as 18 e as 19 horas, quando eu estava no trânsito, a caminho das minhas aulas de segunda-feira.
Meu trajeto era simples: eu deveria sair da Av. Sete de Setembro, n° 4476, e ir até o n° 3165 da mesma avenida, onde fica a UTFPR. São apenas nove quadras, que, em dia de sol, podem ser percorridas em menos de quinze minutos de caminhada. Único problema para quem vai de carro: a Sete de Setembro é uma das famosas avenidas cortadas por aquelas abiloladas canaletas dos ônibus expressos, as quais já foram símbolo de arrojo, desenvolvimento e planejamento urbano, mas que hoje nada mais são do que um empecilho ao tráfego.
Por causa da canaleta, a solução ideal de virar à esquerda, indicada até mesmo pelo Google Maps (cujos idealizadores não têm idéia do que se passa na mente criativa dos planejadores urbanos) é impossível. Então, tive de virar à direita, dar uma volta inteira na quadra, com o céu desabando sobre mim, e finalmente tomar a Av. Silva Jardim, paralela à Sete, que deveria me levar rapidamente à UTFPR. O Google Maps, otimista, indica que o percurso pode ser feito em três minutos, mas, mesmo em condições normais de temperatura, pressão e precipitação ("CNTPP"), isso levaria dez minutos.
Os curitibanos estão acostumados a dar essas voltas na quadra, a ponto de já tê-las incorporado ao estilo de vida. Deve ser como desviar de balas perdidas no Rio de Janeiro ou ser empurrado para dentro de um vagão do metrô de Tóquio. O problema é que as condições estavam longe das "CNTPP". A chuva aumentou e, com ela, o congestionamento. Depois de ouvir três canções do McCartney sem ter me movido mais de duas quadras ao longo da Silva, cheguei à conclusão de que iria me atrasar pelo menos cinco minutos para a minha aula. Tudo bem. Caso necessário, meus valorosos alunos seriam capazes de esperar até o dobro desse tempo, embora não muito mais do que isso. Mas a chuva intensa foi apenas a primeira contingência.
Em dada altura, faltava apenas uma quadra para que eu pudesse virar à esquerda na Marechal Floriano Peixoto, andar mais uma quadra, tomar finalmente a Sete de Setembro e deixar o carro no estacionamento de sempre. Então, eis que aparece à minha frente aquela praga tão presente em temporais curitibanos: o carro quebrado! Lá estava ele, com seus pisca-alerta reluzentes, movendo-se a 0,01 quilômetros por hora e bloqueando metade da rua. A cada piscadela, as luzes dessa segunda contingência anunciavam que meu tempo não valia nada. Nesse momento, a chuva atingiu aquela intensidade da qual nem mesmo a limpador de parabrisa mais veloz consegue dar conta. Com algum esforço, um pouco de sorte e visão quase nula, consegui desviar do carro quebrado. Mais um pouco de sorte e eu conseguiria deixar o carro no estacionamento, atravessar a rua a pé e chegar à sala de aula levemente atrasado e apenas um pouco encharcado. A prefeitura de Curitiba, todavia, sempre reserva uma surpresa ou duas aos incautos.
Ocorre que a Marechal Floriano é mais uma dessas ruas anacrônicas com canaletas de ônibus expresso. Para piorar, por razões que ninguém conhece ao certo, a prefeitura resolveu esburacá-la ao longo de várias quadras, inclusive a quadra que eu precisava usar. Os planejadores chamam os buracos de “obras de melhoria”. Assim, aparentemente para proteger a integridade das obras, a URBS, empresa de urbanização de Curitiba, posicionou um nobre guardinha na esquina, cuja função era impedir que os veículos normais entrassem na Marechal, e que ajudava a tornar mais miserável o trânsito daquele entardecer chuvoso em Curitiba.
O trecho que eu precisava percorrer, embora esburacado aqui e lá, era totalmente trafegável, como ficará evidente em mais um ou dois parágrafos. Tentei argumentar com o guardinha, que se mostrou irredutível. Eu disse que só precisava deixar o carro no estacionamento da quadra de cima, e que já estava atrasado para a aula, mas ele disse que ninguém a não ser os ônibus podiam passar. Eu disse que eles estavam de brincadeira comigo, e ele respondeu: “Aqui não tem ninguém brincando, não”. Não adiantava espernear, não adiantava brigar, não havia a quem recorrer. Quando se depara com a autoridade constituída, o cidadão pagador de impostos só tem a lamentar.
Resignado com essa derradeira contingência, e quase perdendo a primeira das cinco aulas da noite, não me restava outra alternativa a não ser percorrer mais quatro quadras Silva Jardim abaixo, fazer o contorno à esquerda e retornar pela Sete de Setembro, percorrendo as mesmas quatro quadras no sentido inverso. Esperançoso, imaginei que eu ainda conseguiria chegar à sala de aula apenas vinte minutos atrasado, a tempo de pegar um aluno ou outro que não tivesse conseguido escapar.
Muitas canções do McCartney depois, consegui chegar ao cruzamento da Sete com a Marechal. Eram 19h, mas havia mais uma surpresa: o trânsito da Marechal havia agora sido liberado a todos! Tudo indica que, no tempo que eu levei para dar aquela volta toda, o expediente diário do guardinha havia se encerrado, ele havia batido o cartão-ponto, liberado a pista e ido embora sem maior peso na consciência. Aquele trecho que, quinze minutos antes, “sem brincadeira”, era proibido ao tráfego, agora estava totalmente liberado a veículos de qualquer natureza!
Deixei o carro no estacionamento e, como a chuva já havia miraculosamente amenizado e minha primeira aula já havia definitivamente ido para as cucuias, resolvi andar até o lugar onde o guardinha deveria estar, só para confirmar o paradeiro do sujeito. De fato, ele havia ido embora, levando consigo a capa de chuva e a cara-de-pau. No fim, fiquei até com pena dele. Afinal, como os nazistas em Auschwitz, ele estava apenas cumprindo ordens.
Desnecessário dizer que meus alunos já haviam sumido há tempos e não mais retornaram. Segundo a assistente de ensino, eles nem mesmo esperaram pela dispensa oficial e simplesmente pegaram o caminho da rua. Talvez tenham ido encontrar o guardinha da URBS em um bar qualquer das imediações, onde teceram planos para me fazer atrasar também na próxima segunda-feira. Afinal, em tempos de contingências múltiplas, nunca se sabe.